Xavier Placer
VI
O U T R A S I M A G E N S
ODORES DA CIDADE
Pois também há cheiros nacionais? – dirá o leitor, – Que dúvida! Cada nação tem a sua crença, a sua língua, e o seu cheiro.
Herculano, In Lendas e Narrativas.
HÁ quem diga que o Rio cheira a mar. Não é de espantar, sendo a cidade toda cingida de água, engastada, como canta o poeta, “na dobra azul de um golfo pensativo”.
Se assim é globalmente, em detalhe tem o Rio muitos outros odores. Não me digam que a zona Sul não cheira a gasolina da profusão de “rabos de peixe”, “gostosões” e caminhonetas que rodam, dia e noite, na macieza de seu asfalto. E zona Norte, o esquecido subúrbio, não é de carvão de pedra dos trens sórdidos, o cheiro picante que paira na sua atmosfera enfumada e poeirenta?
POR sua vez, tem cada bairro personalidade odorífera. Deixemos os morros, onde se pendura a população mais pobre, nos milhares de barracos de tábua e zinco, gente para quem só resta o consolo triste da cachaça, da macumba e do jogo do bicho… O morro não cheira; o morro – perdão pela crueza do verbo – o morro fede! Subam lá um dia, hora de sol a pino, e hão de ver, para vergonha da Cidade Maravilhosa, escorrendo ao ar livre, por valas cavadas pela chuva, ribanceira abaixo, entre lixo e varejeiras, a exalação berrante de águas servidas e dejetos humanos.
Não se inclui aqui o morro de Santa Tereza, evidente. Este é morro grã-fino; e o conforto escoa civilizadamente as suas necessidades. Santa Tereza cheira a mato. Ora, quem de tal modo distraído, que viajando no ferro-carril da Carioca, Arcos afora, França, Silvestre, o olhar perdido no cenário panorâmico da urbs não se apercebe desse cheiro de verde, a que se casa o aroma das flores invisíveis, a umidade dos grotões, inserindo no presente fragmentos afetivos do passado?
Esse mesmo cheiro se encontra na Tijuca. Não, certo, logo às imediações da Praça Saenz Peña, logradouro civilizado, mas à medida que se vai alcançando o Alto da Boa Vista. E mais ativo, talvez que em Santa Tereza, cheiro de mato virgem, vindo dos esplêndidos maciços verde-oliva das montanhas que Alencar adorava…
Já o centro tem outros odores. A zona do comércio atacadista, vielas de feição colonial, onde pombos esvoaçam entre as pernas dos transeunte a comer o milho caído dos sacos, exala um cheiro de cereais, de charque, de especiarias e tabaco, numa sugestão gorda de satisfações alimentares. A Esplanada apresenta um odor subjetivo. Zona ministerial, tresanda a burocracia. Na Cinelândia é a fragrância dos perfumes franceses das jeunes filles e balzaquianas desnudas, axilas giletadas, não esquecendo o odor di femina… O Catete, com suas mobiliárias, umas geminadas às outras, cheira a cola e verniz. Um pouco antes, a Glória e a Lapa – sabem-no os rapazes – cheira a pecado, apesar das proximidades do paço arquiepiscopal e do templo positivista…
Estes os odores cotidianos. Pelas festas, a cidade se impregna de odores próprios da ocasião, característicos da festividade. No Carnaval, por exemplo, seria inverdade dizer que a Metrópole não faz uma parada de odores. No primeiro dia tudo limpo ainda, é até aprazível aspirar o quase aroma do cachorro-quente, das belas maçãs e peras em tabuleiros na rua; nos dois últimos, porém, é preciso ter pervertido o olfato para não sufocar em meio à multidão, cadinho de cheiros, bodum à milésima potência… Depois, na Semana Santa, as igrejas exalam incenso. No meio do ano, pelas festas joaninas, não se goza o cheiro da batata doce, que não se acendem fogueiras na cidade. Mas um cheiro de pólvora queimada, dos fogos, erra à toa no ar nas noites estreladas de balões. Natal? Pelo Natal, quando os cachos inodoros das acácias decoram jardins domésticos e o braseiro dos flamboyants arde nas praças, mergulha a cidade num odor complexo de bons negócios, azáfama, dinheiro fácil, presentes e castanhas…
ENTRE os odores da cidade, tais e tantos, qual o de sua gente? O carioca, pode-se afirmar sem receio de falsa fisiologia, o carioca não tem cheiro. Que cheiro, de resto, pode ter um povo que, sufocando num calor de 40º à sombra, vive sob a orgia do chuveiro ou seminu, como peixe, na praia?
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