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N A T A L

            Mudaria o Natal ou mudei eu?

  Machado de Assis, Soneto de Natal, In Ocidentais.

 

TRISTE, cansado de si, algo perturbado pela consciência do isolamento, deixou o solitário a sua torre. Por que alhear-se à magna festa, por que não participar um pouco da universal alegria?

   Fazia uma noite de muitas estrelas. Um tanto frio, as ruas estavam desertas, mas nas residências eram evidentes os indícios de Natal. Prosseguia o solitário, quando seus olhos se voltaram para o interior iluminado de uma vivenda.

    Num relance, apreendeu todo o quadro. Sob os galhos em candelabro de um pinheirinho ornamentado de lâmpadas multicores, mandíbulas mastigavam; e mastigavam avidamente, numa glutonaria agressiva. à cabeceira da mesa, um velho erguia uma taça, bebendo com os olhos, antes de levá-la aos lábios. Gesticulando, aos berros, uma senhora teimava em manter à cadeira um garoto, que esperneava ruidosamente.

    Afastou-se ligeiro. O espetáculo do egoísmo satisfeito, da estreiteza mental, da estúpida felicidade, fazia-lhe mal. Bem quisera dominar-se; em vão: aquilo despertava-lhe um sentimento de repulsa surdo, negro, intolerável.

 

AGORA estava no Largo da Matriz. Sentou-se num banco, sob a copa da amendoeira, deixando-se a olhar homens e coisas melancolicamente.

    Blém-blém!  Blém-blém!

    Era o chamado para a missa do galo. Entrar na igreja? Durante minutos houve um movimento maior de fiéis, que chegavam apressados. Um grupo de rapazes passou gargalhando, o de suéter verde largou um palavrão. Jovem par de namorados ocupou o banco fronteiro. A amendoeira desprendeu uma folha seca, que veio tombando em silêncio… Foi quando, sintonizado no último ponto, um alto falante anunciou a mensagem de Natal do Presidente. Levantou-se, rumo à igreja, mas ainda pode ouvir:

    “ – Brasil, nossa Pátria querida… terra abençoada pela Providência… na vanguarda das nações civilizadas… ano próspero e feliz… justiça social…”

    Havia pelos bancos menos gente do que julgara. Na maior parte velinhas, desfiando “terços” num mover mecânico de lábios, sem perder o que se passava em torno. Ao fundo, no altar de flores artificiais, padre e coroinha eram desembaraçados – evidentemente despachavam a sua missa. Um vira-lata surgiu e cheirava o tapete da mesa eucarística, quando foi vilmente escorraçado por uma devota.

    A ausência de espiritualidade do ambiente e da cerimônia desinteressaram-no por completo. Foi olhar o presépio. GLÓRIA IN EXCELSIS DEO; ET IN TERRA PAX HOMINIBUS BONAE VOLUNTATIS, proclamava o dístico, sobre um róseo Menino-Jesus de celulóide.

    Saiu pela porta da sacristia.

 

DE novo no Largo, sob o “refúgio” onde os bondes faziam ponto, indeciso no rumo a seguir, ficou-se a namorar a loura gentil no anuncio fluorescente de Coca-Cola no bar da esquina.

      –  … porque ele nasceu em Belém! Aleluia!

     Era um vulto andrajoso. Veio se aproximando. A resmungar, guinando ora para um lado, ora para outro, cai-não-cai, postou-se o bêbado no meio da rua. Sem largar a lata, de onde pedaços escuros se entornavam, entrou a discursar:

    – Meus senhores e minhas ilustríssimas senhoras! Ele nasceu em Belém… Está lá… na Bíblia de Deus. Ele é o maior, o Rei dos Reis. O quê? Estão pensando que eu estou na água? Não estou não, meus irmãos. Eu sei perfeitissi...limamente. Não interessa! Eu sei o que estou dizendo. Eu sei. Jesus nasceu, esta noite em Belém. Aleluia! O lema dele é: Amor. Amor, meus irmãos, o resto é conversa! Esta humanidade é que não vale nada… não vale um caracol. Eu presto? Um cachaça é o que eu sou… Perdão, Jesus! Senhor Jesus, perdão! Mas eu confesso a verdade, não presto mesmo, está aí. E vocês não, seus canalhas… Dez vezes canalhas!

    O bonde estacou em cima dele. O motorneiro queria passar com seu veículo: dlén-dlén... dlén-dlén… dlén-dlén…

     – O que? Passa por cima! Vocês se acham bons, bons até demais. Canalhas de uma figa! Só Jesus é bom. O Natal não é nada disto que estão pensando. Eu sei o que estou dizendo. Não é, meus irmãos… O lema dele é: Amor, Amor! Sabe lá o que é isso? Aleluia! Ele nasceu em Belém, até os reis vieram adorar ele. Aleluia! Aleluia!

    O motorneiro começou a imprecar o orador; mais expedito, sem dizer nada, o condutor foi a ele e, tomando-o a jeito pelo braço, conduziu-o para a calçada com boas palavras.

    O bêbado sentou-se docilmente no meio-fio. E na sua voz rouquenha, pôs-se a entoar fragmentos confusos de cânticos religiosos.

    E estribilhava:

 

Que viva Jesus, no meu coração!

Que viva Jesus, no meu coração!

 

    Então o solitário recolheu à sua torre. Singular paradoxo. Saíra de casa à procura do Natal e já desistia, quando enfim o surpreende entre gíria, álcool e trapos, na alma humilhada mas luminosa de um bêbado… E a seu ouvido repercutia ainda aquela voz empastada:

    – O Natal não é nada disto que vocês estão pensando. O lema dele é: Amor! Amor, meus irmãos!

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