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O   C I R C O

Lembras-te da maior emoção que já tivemos?

Tão forte

que ficamos parados

olhando-nos mutuamente:

aquela tarde em que chegou

"O Grande Circo Internacional de Vigo"?

                 Jorge de Lima, Meninice, In Poemas escolhidos.

 

UMA tarde, sem aviso prévio, o circo aportou ao terreno baldio com a sua traquitana: tábuas, lonas, cordas, bichos, homens, Para a gente grande aquilo era nada; para os meninos, que acontecimento!

   – Chegou o circo! Eta, chegou o circo!

    E horas depois a garotada do bairro estava no local, reunida por um toque de chamada audível apenas aos ouvidos infantis. Não demorou que se confundisse aos empregados-artistas na faina liliputiana de armação, pois era um desses circos miseráveis, sem nome, que vegetam pelos subúrbios. Já no dia seguinte amanheceu de lonas estiradas. Dir-se-ia um cogumelo-gigante brotado ali para espanto do bairro.

 

ERA um desses circos miseráveis, sem nome. Mas não lhe faltavam os elementos essenciais: o elefante e o palhaço.

    Ao meio dia saíram ambos para a rua. Ei-los que apontam na rua principal e vêm avançando. O elefante, grave, episcopal, apertado na costura da pele; o palhaço, em contraste, fácil, hílare, encarapitado no dorso do animal, qual viva labareda nas suas vestes de cetim vermelho, a tirar sons festivos de uma corneta que faiscava ao sol. Num instante calçadas e janelas povoam-se de curiosos: ninguém tem mais o que fazer. Toda a gente quer ver, mas a dupla elefante-palhaço não espera. Ruidosa, avança sempre. Então os mais curiosos não resistem: mães de família, mocinhas, homens, rapazolas, deixam-se todos levar. São vinte, são trinta? De repente, o número de admiradores cresce espantosamente. É que chegaram à altura do grupo escolar. Hora da saída das crianças, o portão despeja um mundo de uniforme azul-e-branco na rua.

    – É o palhaço do circo!

    – Olha o elefante!

    – Vamos ver! Vamos ver!

    E correm, gritam; e chamam-se mutuamente. Os menores choram, abandonados pelos irmãos. As meninas não são menos afoitas. Uma professora esganiça-se vociferando uma ordem a que ninguém atende. Sobrepondo-se ao tumulto, indiferente, o velho vendedor de pipocas estertora inutilmente o pregão habitual:

    – Pipoca! Pipoca com mel!

    E do chão sem calçamento da rua esquecida de subúrbio sobe uma nuvem de poeira, que envolve tudo.

    Imperturbável, o elefante avança, passos matemáticos, em deslocamento silencioso de borracha. Seguro em seu pedestal móvel, o palhaço aqui entra a improvisar números: equilibra-se um instante na tromba da cavalgadura, desce ao solo, torna a alçar-se, leve como brinquedo, ao tempo em que, triunfante, ora vibra a corneta em floreios agudos, ora em voz soberana convida o “respeitável público”, para a “formidável”, inesquecível função” daquele dia, às vinte horas em ponto. E remata:

    – Cavalheiros, senhoras e crianças, não percam a oportunidade de apreciar o grandioso elenco de malabaristas, acrobatas, trapezistas, contorcionistas, aramistas e bailarinas da “Grande Companhia Espanhola de Variedades”. Completando o artístico espetáculo de hoje, será encenado o famoso drama francês: “O Conde de Monte Cristo”. Todos, todos, todos à Grande Companhia Espanhola de Variedades, às vinte horas em ponto!

    A procissão caminha. Deixemos a gente grande, que vai ficando naturalmente saciada do espetáculo. E reparemos nas feições da gente miúda. Na verdade é com sentimento de posse que a gurizada contempla o elefante; e o palhaço é a seus olhos um ser extraordinário, um herói, um deus; sua profissão, a mais alta glória a que se pode chegar… Quem sabe um dia, não terão também um elefante e não serão tão gloriosos quanto o palhaço! E, magnetizados, berrando vivas, seguem o elefante e o palhaço. Lá se vão…

 

PARA onde vai o elefante? Para onde vai o palhaço? Para onde vão as crianças, presas a ambos como enfeitiçadas? Não importa. Vão até o fim do bairro, até o fim da cidade, talvez até o fim do mundo…

    Deixá-los ir, mães. Não temais, que eles tornarão da lírica viagem, sãos e salvos, os vossos filhos. Jamais alguém se perdeu – e se se perdeu foi para melhor se achar – nos mágicos caminhos que levam ao país da poesia… E eles, ó mães temerosas, eles vão para lá, os vossos filhos. É toda a infância deles este brevíssimo instante, deixá-los ir, eu vos peço, deixá-los ir!

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