top of page

OS  DESAPARECIDOS

              E resta a espera, que sempre é um dom.

 

Carlos Drummond de Andrade, In Desaparecimento de Luiza Porto.

 

NADA me comove mais do que ao abrir o meu vespertino (é sempre nos vespertinos) dar com a nota de “Os desaparecidos”. Na primeira página, não; nem na segunda; tampouco na terceira. Da quarta em diante, invariavelmente, entre conclusões da primeira, anúncios e matéria sem importância, é que figura o apelo. Apelo aflitivo de gente humilde.

    Sim, porque filhos e parentes outros de ricos não se somem nunca. Melhor: não têm motivos para sumir-se. Ou quando tal acontece, gozam a honra de um Sherlock de boina e cachimbo ao seu encalço, sem nome nem retrato em jornal. Suponho que seja isso…

    Assim, o apelo não parte nunca da burguesia, raras vezes da classe média, mas sempre da proletária. E ainda se diz que este mundo de Deus é muito pequeno. Grande é este mundo, pois gente existe que se some, que desaparece em seus ínvios caminhos.

 

FRANCAMENTE, nada me comove mais do que esses apelos. Não é, todavia, o drama do desaparecido o que me perturba. Longe de mim a intenção de menosprezar o seu sofrimento. Respeito-o. De fato, afora casos de rebeldia juvenil, quanto drama triste nas entrelinhas das notícias!

    Os que levam a curiosidade até aí, conhecem. Ora é uma jovem que saiu para fazer compras no armazém próximo; ora um rapazola que foi levar um recado; ora uma senhora de meia-idade que abandonou a casa do filho casado; ora uma esposa, mãe de filhos menores, foram-se todos, dizendo que iam aqui ou ali, que já voltavam, ou não dizendo nada – e não voltaram mais!

   Infelizes, evidente. Mas – reafirmo – não é o drama dos desaparecidos o que me perturba. O que me perturba é a dor dos pais, irmãos, filhos e maridos abandonados, a dor dos que ficam.

     Por que os trânsfugas, afinal tiveram força para reagir, romper cadeias, pôr termo a uma situação intolerável, numa palavra, deram evasão à sua queixa. Não há qualquer coisa de romanesco em, depois de acalentar dias e noites a ideia favorita, sair uma tarde de casa, a bagagem resumida num lenço, ou simplesmente de mãos abanando, sem compromissos, sem deveres, sem destino – leve, livre, ironicamente livre a caminho do desconhecido?

 

JÁ os que ficam… Triste o quinhão dos que ficam. No primeiro momento é a estupefação diante do fato consumado:

    – Meu Deus, não é possível! Por quê? Não disse nada! E nem desconfiar! Ajudem, pelo amor de Deus! onde estará, onde estará! Façam tudo, daremos gratificação. Não é possível!

     Depois o remorso, a auto-punição:

     – Fomos duros demais, ofendemos com aquela palavra. Mas foi por bem querer. Para que batemos, também! Se voltar, há-de-voltar, não seremos tão severos. Ó Deus, que desgraça!

     Tríduos, novenas, Súplicas a Terezinha do Menino Jesus, a Frei Fabiano de Cristo, com promessa de publicidade da graça alcançada. Velas, consultas a cartomantes.

    Entra noite e sai dia. Vai-se o tempo: nenhum sinal. E a vergonha diante dos vizinhos, os diz-que-diz-que, as perguntas indiscretas, as surpresas fingidas, a satisfação dos perversos…

      A ausência prolonga-se, não tem fim. Cada objeto, cada coisa do ser amado é uma acusação, uma saudade, dolorosa ausência-presença. Voltará? Não voltará? Houvesse certeza de que morreu, a confiança de que ao menos estaria em Deus era um consolo. Mas quem pode garantir que não está, a esta hora, passando fome, dormindo ao relento, doente, desencaminhado, sequestrado por maus elementos? Viram-no cerca das catorze horas numa estação, de relance; escapuliu-se; o repórter-amador também telefonou; foi-se ver; rebate falso, não era; era quase, o nome era outro…

    Prossegue, semanas afora, a angustiosa procura. E na aflitiva situação que se prolonga, resta apenas a dor certa e o apelo hipotético, alimentados, cada manhã, pela esperança, a última que morre.

Pag

 31/37

cmp

bottom of page