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M A N G U E

Ah, jovens putas das tardes

o que vos aconteceu

para assim envenenardes

o pólem que Deus vos deu?

                          Vinicius de Moraes, In Balada do Mangue.

 

DURANTE o dia é sem mistério. As fachadas berrantes, encardidas e velhas, e o lixo espalhado, onde vira-atas farejam, exibem-se  cruamente, num despudor que desagrada.

    À noite, porém, transfigura a zona das mulheres perdidas. Os detalhes sórdidos apagam-se na meia sombra. Uma multidão circula nas calçadas. Guardas perambulam proibindo aglomerações, vigiando o porte de armas, prontos a intervir ao menor sinal de desordem.

    As esquinas, pilantras apregoam fotos aguçando a curiosidade:

     – Só para homem! É só para homem, mulher não pode ver.

    Regurgitam de frequentadores os botequins. É uma súcia. Pelas mesas, marujos louros emborrachados enlaçam mulatas, que os depenam.

    – Yes! Very Well! Money, gringo, eu quero é teu money!

    Falso contrabandistas, de sotaque castelhano, impingem aos incautos cortes de tecido made in England na etiqueta, e perfumes franceses, cheirosos só na rolha, fabricados no subúrbio. Chegam rufiões em terno de linho, cachecol de seda e chinelo cara-de-gato; boêmios batem samba em caixa de fósforo; pederastas namoram fardas; curiosos olham, à porta. Na atmosfera toldada de fumo, saturada de cheiro nauseante de cachorro-quente, entorna-se cerveja barata e parati. Vozerio, palavrões, gíria. Eletrola automática, a cruzeiro o disco, embala de música sentimental o ambiente:

 

Acorda, patativa, vem cantar!

Relembra as madrugadas que lá vão…

 

-VEM cá, vem cá, meu amor!

    Busto e coxas de fora, pintadas com exagero, elas se expõem, mercadorias à venda, nas rótulas das portas. De relance excitam. Umas são claras, morenas outras, outras queimadas; há grandalhonas e mignonnes; exóticas e simples; extremas juventudes e maduronas; debochadas e quietas.

    – Entrez, entrez, chéri!

    Promessas. Voluptuosas promessas. Senhores graves quebram o chapéu sobre os olhos e entram, serenos do precário disfarce, que a experiência reforça. Já os rapazes, ardentes mas inquietos, os rapazes esgueiram-se afobados.

    – Vem cá, meu bem! Vamos fazer um amorzinho !

    De relance ateiam desejos. De perto desgostam. Cabelos espichados, brancuras macilentas, dentes de ouro, faces anavalhadas, vozes rouquenhas, e rugas, e perfis boçais, e expressões cínicas.

   – Vem cá, vem cá, filhinho!

   Cega é a carne. A obsessão animal torna a escolha – ai, são tantas – um problema. Que todas, em verdade, são interessantes até o ante-momento da posse.

    Amor a preço fixo, e módico. Que ainda assim, às vezes, um freguês não quer pagar. Expulso do quarto, a cena vem terminar na rua. Até que a autoridade intervenha, ensaia-se um espetáculo com bofetões, berros histéricos, acanalhamento, obscenidades.

    Estralam gargalhadas. E a ronda do Desejo, mãos dadas à Loucura, ciranda à vigília das estrelas noite a dentro.

 

AO amanhecer, a rua das mulheres perdidas retorna ao bom senso. Quase honesta rua residencial. Recolheram-se as mulheres, os transeuntes da véspera desvaneceram-se. Garotos batem bola de meia no calçamento. Domésticas levam compras para apartamentos da redondeza. Respeitáveis senhoras e pudicas donzelas cruzam, sem apressar o passo, certas de que não serão importunadas.

   Mas não ignoram. Não ignoram e condenam, no coração, com dureza e rancor. Oh ilusão, oh cegueira! Não enxergam que a virtude delas se salva no pecado das outras, as mulheres perdidas.

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