Xavier Placer
LITERATURA DE CORDEL
Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas, da memória e da imaginação popular.
Luis da Câmara Cascudo, In Contos tradicionais do Brasil.
PENDURADOS em barbante, ignominiosamente seguros por pegadores de roupa, os folhetos populares exibem-se à venda nas bancas de jornais e engraxates. Na inconfortável montra, castigam-nos o sol, a chuva e a poeira – mas eles resistem audazmente. Suas capas berrantes, de ilustrações monstruosas e títulos grotescos, são um convite. Não os compra a gente culta – no fundo tão ignorante, em arte, quanto a outra – mas a gente simples, operários, vendedores ambulantes, soldados, domésticas.
"O VERDADEIRO Grande livro de S. Cypriano”, “O Livro Completo das Bruxas”, “O Tesouro dos Sonhos”. São os manuais práticos. Há neles solução para tudo, desde as misérias físicas aos males morais. Com simples rezas, “simpatias”, bruxedos ou palavras mágicas, maridos rebeldes tornam-se fidelíssimos, mulheres frias passam a ardentes, atam-se ou desatam-se felicidades, curam-se doenças, retornam ausentes, ganha-se infalivelmente no jogo; em suma, como a um brinquedo, torce-se o destino em qualquer direção.
Freud debruçou-se uma existência sobre psicoses para avançar um nada na alma humana. Trabalho inútil, tempo perdido. No “Tesouro dos Sonhos”, transmitido pelos “magos do Egypto e da Chaldea”, há séculos estão sistematizados em definitivo todos os símbolos oníricos. Já eles, os grandes iniciados do ocultismo, sabiam que os sonhos têm sentido, que podem ser prósperos, desfavoráveis, contrários, duvidosos ou nulos. Sonhaste com grinalda? Para mulher solteira, rompimento de relações amorosas; para casada, infelicidade. Comprá-la, mudança próxima. Não satisfaz? Vê ainda: Dor, Flores, Matrimônio, pois trata-se de ciência em que tudo foi esquadrinhado e caracterizado, um conhecimento exato.
Passando à ficção e à poesia, a matéria não é menos rica: “A Princesa Magalona”, “A Rosa do Adro”, “A Mortalha de Elvira”, “Elzira, a morta virgem”. Absolutamente populares? Nem há que desdenhar. Ao lado desta sub-vegetação, alteiam-se espécies de alta literatura, estrangeira e nacional: “O último dia de um condenado”, “Paulo e Virgínia”, “A Dama das Camélias”, “A Escrava Isaura”, e Alencar, Macedo, etc.
A poesia é toda de fundo folclórico. Peça interessante é a de Pedro Malasartes, “o menino plebeu, sem eira nem beira, que embrulhou meio mundo com seus truques e artes, ficando milionário e acabando ministro e secretário do Rei”, Pedro Malasartes, que, quando narrava suas aventuras, terminava com o verso desabusado:
Não pedi para nascer
nem gosto de trabalhar
o mundo é feito de quengos,
eu também quero quengar.
Não é tão eufórica a história de Pedro Sem. Blasonava nos tempos felizes:
Sou soberbo, meu tesouro,
de tão grande não tem fundo;
com a força do meu ouro,
posso até comprar o mundo.
Mas a soberba desagrada a Deus, e Pedro Sem – que trazia no nome a fatalidade de seu fim – depois de tripudiar sobre a alheia dor, terminava como Jó:
Dai esmola a Pedro Sem,
o soberbo desgraçado,
que foi rico no passado,
que já teve, hoje não tem.
A nota terrível, a mais comovente – que o povo ama as emoções fortes – é a história de “Inês de Castro”, a que morta foi “rainha”. Como adverte em prólogo o poeta, “nem à história nazarena se compara”, e:
… Só lhe falta um Sheikespir
para lhe dar alma em casa.
Obras de cantadores populares, há ainda os que homenageiam os heróis do dia: apaixonados, esquartejadores, criminosos-monstros; as que fazem o elogio de ladrões honestos “que tiram do rico para dar ao pobre”; e as que cantam os valentes, nobres criaturas jamais vencidas, pois:
morreu de morte matada,
mas ferido à traição.
FLORAÇÃO silvestre, de que a literatura oficial não se digna tomar conhecimento, mas curiosa e significativa, essa! Que delícia os seus velhos termos, os neologismos, refrões, a sua liberdade sintática e ortográfica! E entre o cascalho de imagens grosseiras, ridículas, que profusão de metáforas líricas, originais e fortes. Que importa não consiga transpor o limbo da verdadeira arte! Prosa ou verso tecidos em cores básicas, nada pretende, é apenas instrumento de emoção – e como atinge o objetivo! E o povo simples, que não quer senão emoção, dessedenta-se nessa fonte, que não seca nunca.
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