Xavier Placer
M. P.
Ser amigo é repartir a vida.
Murilo Mendes, In O Discípulo de Emaús.
AGORA que ele se foi, agora que partiu para longe, e talvez para sempre, tento fixar espírito e coração desse companheiro admirável. Tenho diante de mim seu último retrato. De retângulo marrom, onde apôs uma dedicatória na sua caligrafia vertical, ele está a fitar-me aqueles olhos plácidos, inteligentes e acariciadores, olhos que tudo sabem e silenciam sempre…
Evidentemente me fita. Prefiro, porém, cerrar as pálpebras que a contingência humana não perturbe esse encontro singular. Chamo-o baixo pelo nome, escandindo uma a outra as sílabas. Ei-lo que se aproxima… Não; não é o prestígio da distância, no tempo e no espaço, que o torna grande! Ei-lo que se aproxima e, já agora, não fragmentado como quando o tinha perto, mas total, completo e perfeito. Boa noite, irmão!
SIM, és tu mesmo. Não te houvesse viajado em todos os sentidos! Descobrir-te-ia numa multidão. É tua essa atitude, esse personalíssimo jeito de ser, que não diz nada e diz muito a um tempo, como os teus olhos. Sim, porque o silêncio é o teu traço característico, a tua eloquência, e também a fonte dessa simpatia que te torna irresistível para quem de ti se aproximou uma vez. Para alguns parecerás melancólico; e o és, por temperamento. Um sábio auto-conhecimento, ciência que praticas sem descanso, implacavelmente, faz-te todavia guardar para a solidão esse estado de espírito. Em sociedade, se te surpreendes mergulhado nele, apressas-te em sacudir essa poeira malévola e não raro com uma saída de zombaria a tua gravidade, originalíssima de humor. Assim, não sendo um importuno folgazão, não chegas também ao gênero sombrio, e o que seria defeito em outrem, tu transformas em qualidade apreciável.
Leva isto a pensar em bom senso. Com efeito, é outro traço do teu caráter, por que velá-lo? Injustiça seria dizer, porém, que esse traço assuma em ti feição antipática, dando impressão de mediocridade, de inteligência em três dimensões. Não; tu usas do bom senso como de um recurso indispensável e nada mais. É na tua natureza harmoniosa o claro sentimento da proporção das coisas, inato em parte e por outro lado conquistado através da lição da experiência, do domínio da razão sobre o sentimento. Bom sem sentimentalismo; otimista sem tolo romantismo; simples como uma criança – és um poeta que se ignora.
A cultura, é verdade, não constitui o teu forte; mas a cultura, entenda-se, no sentido de assimilação livresca de teorias e princípios abstratos, de erudição. Porque, instintivamente refratário à meia-ciência, inimigo mortal do preconceito e da convenção, possuis a intuição ontológica da vida, dom carismático dos anjos e dos santos. Homem de fé, fé pura e robusta, gozas a ventura da perpétua alegria, segredo da tua força. Sensível, os revezes e as injustiças ferem-te profundamente. Mas, o que é admirável, ao invés de te abater, são, ao contrário, outros motivos para continuares a crer e a lutar, mais forte, mais animoso, mais audaz.
Numa palavra, és uma criatura privilegiada. Por isso tantos te disputam. És o que está conosco na hora amarga e solitária, para dizer a palavra que levanta a alma ferida; és um irmão mais velho que não julga nunca, mas prefere amar-nos e amar-nos; és, enfim, aquele cuja simples presença é uma benção.
DESCERRAM-SE-ME as pálpebras. Lá se esvaneceu a imagem do amigo. Não importa; longe embora, tenho-o no coração, vivo e presente. Na verdade ele é aquele tesouro escondido de que fala o Livro. E a mim – a minha alegria! – a mim coube a ventura de o descobrir. Longe ou perto, não o perderei jamais.
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