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ESSA  QUE  ORA  AÍ  VAI...

    Graves deveres me esperam nessa terra      noturna, nessa Pátria ultrajada.

 

                                               Maria Isabel, In Rosa Leve.

 

ESSA que ora aí vai, desconhecida na multidão; essa que aí passou envolta em mistério, silenciosa e esquiva – romanesca; essa que eu conheci um dia. Amigos, não a fixeis com olhos admirativos. Olhai-a como o faríeis a vossa irmã. A sua história é invulgar; ou, se vos parecer comum, direi que a repercussão em sua alma foi profunda, de consequências fatais. Daí, agora, seu jeito de quem tem medo da vida, seu ar de sombra, essa auréola de mistério que a marca. Sim, eis a maneira humana de compreendê-la: uma criatura marcada.

 

NUNCA chegaram a aproximar-se intimamente. Mas a verdade é que ela estava apaixonada por ele. Perdidamente apaixonada. Os dias em que o via, embora de longe e ligeiramente, eram grandes dias para o seu amor. Duas palavras pelo telefone faziam-na feliz por uma semana. E como era sensível, como tinha imaginação, envolvia-o por escrito com as mais belas expressões, nascidas do coração.

    E as que não dizia! Ah, o seu amado! Um simples detalhe levava-a para viagens imaginárias. Ele era o refúgio, o consolo, o porto. E nos seus lábios evocados colhia flores, beijos. Na verdade abdicava toda de si – amor próprio, liberdade, orgulho –  para toda com ele se identificar, ao ponto de poder dizer-lhe: “Eu sou tu mesmo!”

      Mas ele recebia estas homenagens com indiferença. Evitava os encontros, era o primeiro a desligar-lhe o telefone, jamais respondia às cartas, que, de resto, lia de corrida, deixando-as de lado, não raro perdendo-as, algumas vezes mostrando-as aos amigos, para comentar: “–  Que mulher aborrecida!” Ou, julgando fazer uma frase de espírito “–  Mas que fiz para merecer tal castigo?” E ria, zombava da intensa paixão que inspirava.

    O Tempo, inimigo tenebroso, prosseguia. Nas águas do rio imenso, lá iam o amor de uma mulher e o desamor de um homem… Que importava uma dor a mais, se é delas que o rio engrossa as águas, se é delas que se alimenta? Pobre coração humano!

    E ela, cega de amor, esperava. Que pode fazer um coração senão esperar? Impossível que um milagre não se realizasse. Foi quando alguém, que lhe queria muito, delicadamente lhe mostrou a realidade. Ela sorriu, descrente: na verdade não a compreendiam, o mundo julgava pelas aparências. Se soubessem de certas coisas, se vissem a sinceridade com que lhe apertara a mão no último encontro, as palavras que dissera, a entonação de sua voz… Impossível fingir com tanta astúcia, impossível fosse tudo um sonho. Sentia, sentia que o momento do milagre não podia tardar. E então…

    Não, não me demorarei nos detalhes de um desengano. Dir-vos-ei apenas que veio num momento em que esperava exatamente o contrário, tal o requinte da vida em ferir. Então sofreu muito, durante meses o espectro da morte rondou-lhe o frágil corpo,

    E de volta da terrível experiência sentiu que o ódio se aninhara ali onde outrora habitara o amor. Analisou-se com horror, mas era a verdade. Exausta da luta antiga, abandonou-se à sinceridade do sentimento. Com a mesma força, odiou. E muito tempo deliciou-se nesse prazer satânico, muito tempo viveu desse amargo licor.

 

ALMA naturalmente generosa, porém, o tempo ensinou-lhe quão mau companheiro era o ódio. Aos poucos um novo sentimento a dominou e nova fase se abriu em sua vida solitária. Como éramos frágeis, indefesos, pobres! Sombras de um dia, vimos para as crucificações incruentas, para as longas abdicações silenciosas. Demo-nos as mãos, apertemo-las firmemente: somos todos irmãos na dor. Só uma forma de amor nos assiste: a piedade. Piedade, por nós mesmos, por aqueles que passam a nosso lado, pelos que vieram e pelos que jamais veremos. Piedade por tudo e por todos!

      Esta, agora, a sua compreensão, o segredo de sua vida. Daí seu ar esquivo, silencioso, romanesco. Em verdade, ela é uma exilada neste mundo.

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