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S O L A N G E

                       Ó dançarina frágil como as rosas...

                                  Augusto Frederico Schmidt, In Mar

                                                                desconhecido.

 

CHAMAVA-SE Solange. Fina, pequena, trigueira. Cabelos apartados ao meio em duas tranças negras, vivaz de gestos e palavras, lembrava uma ciganinha. Treze anos recém-feitos. Quer dizer: há muito que deixara para trás o medo do escuro, as bonecas, as pirraças infantis… Com a força dos seres virgens, adolescia. Tinha momentos de inexplicável tristeza e de súbita alegria inexplicável; conhecia já os pressentimentos, os sobressaltos, as dolorosas perguntas sem respostas. E à noite sonhava sonhos que guardava em segredo, que calava de pudor… Sem o saber… vivia aquele minuto azul do qual se disse:

 

entreaberto botão, entrefechada rosa,

um pouco de menina e um pouco de mulher.

 

E Solange morreu. Contam-no, numa coluna em itálico, retrato e abundância de detalhes, os matutinos de hoje. Na linguagem brutal de noticiário, sob um cabeçalho de sensação –  o último carnaval de Solange –  lá está na primeira página, curto e doloroso.

    Foi o caso que, satisfazendo antigo sonho da filha, a mãe fizera-lhe este ano, pela primeira vez, uma fantasia de havaiana. Ligada à vizinhas, a pequena Solange vinha brincando o Carnaval, o seu primeiro Carnaval. Sábado, domingo, segunda… Oh, com que rapidez para a sua alegria iam os dias correndo! Se ela pudesse fazer parar o tempo; se a vida fosse um Carnaval todos os dias! Precisar estudar latim e matemática, fazer deveres, copiar pontos… E agora chegava o terceiro dia. O último dia! Era preciso aproveitá-lo bem. Dirigiu-se para o quarto dos pais: ia pôr-se bonita. Mirou-se um instante ao espelho, súbito afastou-se para o interior da casa, e ei-la logo de volta, uma caixa de fósforos na mão.

    Pobre Solange. Não sabe que a fatalidade ronda à espreita de uma presa. A intenção de Solange é, naturalmente, marcar com o palito apagado um sinalzinho na face, igual a tantos outros que em outras ocasiões lhe marcara a mãe, numa operação rápida e fácil. Mas para que a ajuda da mãe se já agora não é mais aquela criança de outros tempos? Ela própria, por suas mãos e a seu gosto, dará aquele último na toilette. Depois, quando os pais a virem, hão de admirar-se… sorrir e gostar. E risca o fósforo, mas eis que, ao fazê-lo, o fósforo parte-se, escapando-lhe aceso das mãos.

    Foi tudo num relâmpago: o fogo incendeia as tirinhas de celofane de sua saia de havaiana, transformando subitamente numa labareda a fantasia. Desesperada, Solange corre aos gritos. Mas o vento alimenta o fogo e, quando pessoas acodem, é com dificuldade que dominam as chamas. Minutos após, entre comentários de curiosos, o carro branco da assistência leva Solange com ruído…

    –  Não resistirá.

    –  Talvez….

    –  Deus é grande!

 

TRANQUILA amanhece a cidade nesta quarta-feira de cinzas. Nos escassos vestígios das ruas, varridas pelos garis, mal se adivinha a loucura dos dias de Carnaval. As coisas têm um ar ingênuo, repousado, casto. É como se a cidade tivesse de repente submergido; atmosfera de vida submarina. Na transparência esverdeada das águas alonga-se a mancha azul de pequeno caixão. Carros fantásticos, em movimento de câmera lenta, acompanham o féretro minúsculo.

    Por quê? Efeito da hora ou insensibilidade? Lúcido, olho o cortejo passar e não consigo comover-me. Nem ao menos ter surpresa…

   Perdoa, Solange! É que em teu nome eu sempre pressenti este epílogo. Solange, nome de noiva impossível, de musa, irmã de Natércia, Marília, Josefina; Solange, nome para ser gravado sobre uma lousa, junto a duas datas brevíssimas entre lírios, mistério, poesia…

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