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A  PARTIDA  JOGADA

                     Dói-te a festa feliz da verdade da vida ...

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                       E és náufrago de ti, a harpa caída, agora

                                     Pedro Kilkerry, In Harpa esquisita.

 

AS horas avançam implacáveis, as horas fogem. Há um rádio vizinho que grita sambas e anúncios o dia inteiro; há ruído de tímpanos e buzinas, agudos como pontas de aço no ar quente e seco; há ecos de vozes perdidas, distantes… Numa palavra, todos os ruídos da urbs trepidante, da vida vertiginosa.

    Entretanto, o corpo largado no leito humilde, o olhar fixo num ponto abstrato, ele nada ouve. É o fim. É o fim e não o ignora, nem teme: serenamente espera o que tem de ser. Que lhe importa o ritmo das horas, que lhe importa a vida? Mais que nunca, é agora uma criatura liberta do fardo do Tempo. Caíram ao chão as algemas do escravo… Identificado consigo próprio – enfim! – apenas um grave pensamento o preocupa. Ardentemente se interroga. Afinal que espécie de homem foi ele, onde o segredo de seu destino invulgar?

 

A IMAGEM dos dias antigos, para sempre perdidos, anima-se com singular relevo ao fundo do seu espírito. Quão longe o tempo em que o ódio aos homens o malsinava, o agitava atormentada e dolorosamente. Depois, aos poucos, a sombra da indiferença que se colocou entre ele e o mundo. E, por fim, o silêncio, o exílio. Só, absolutamente só, agora. Mas, ele não o ignora, se alguém viesse, como sempre seria ainda uma vez para acusá-lo. Vencido. Quantas vezes esta palavra não fora a explicação menos ofensiva nos lábios dos parentes” Na verdade nunca tivera jeito para a vida, para o que eles entendiam como a vida…

      E a voz dos amigos, recriminando-lhe o temperamento, aquilo a que chamavam o seu “maldito espírito de originalidade”, que o levara a ousar reinventar a vida por conta própria, através das pretensões de uma pseudo-arte, como se fosse possível, como se Deus claramente não houvesse “criado todas as coisas em número, peso e medida”.

     E, mais grave, mais doloroso porque vinha dela, a sua indignada palavra, a última: “Ninguém o compreendeu melhor que eu. Não fui para você senão uma experiência a mais; por isso o odeio, o desprezo”.

    Sim, ele sabia, ainda agora todos os acusariam, e pelos mesmos motivos, talvez com as mesmas palavras. E, como sempre, ele ouviria ainda uma vez estas interpretações e deixar-se-ia ficar em silêncio, pois há muito que não mais o perturbavam. É que estas interpretações, na sua ligeireza, não continham senão metade da verdade – o seu aspecto exterior. Mas a essencia, o sentido profundo, quem lho revelaria? Senhor, onde o segredo de seu destino invulgar? Por que não fora como os demais? Por que terminava assim?

 

NESTAS divagações, as horas fugiam e os dias, Até que certa manhã, que devia ser a última, aproximando-se com dificuldade da janela, descobriu uma criança no jardim de uma “vila” fronteira. Brincava. Súbito reparou que ela comia uma fruta. Era uma maçã, rubra maçã maior que suas claras mãozinhas.

    A alegria da criança! O sentimento de posse de suas pequenas mãos. A avidez de seus lábios ao mordê-la. Encantado, sem poder retirar os olhos daquela cena, deixou-se a contemplá-la. Mas, um instante depois, surpreendeu-se a monologar: “Como tudo é simples, criança. Terrivelmente simples. Compreendo agora o segredo de minha vida, lucidamente o compreendo: tudo que eu amei, amei com paixão.

    Deteve-se algum tempo no círculo destes pensamentos; depois, fisicamente cansado, afastou-se dali, mas no fundo de seu coração apaziguado sentiu que tudo estava bem, e que perdoava, perdoava.

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