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FLOR  OBSCURA

                Para tristezas, para dor nasceste.

 

                            Antero de Quental, In Os Sonetos Completos.

 

     

LÁ vem num passo indolente. Conheço-a? Esguia e frágil. Seu rosto, levemente maquilado, emerge qual botão de rosa do capote que a envolve nesta ventosa manhã carioca. Singular mulher. Pálida e bela como visão romântica.

      Passou... Que vejo! Reconheço esses enormes envelopes azulados: são chapas de Raio X. Lá se vai num andar cansado e, com ela, a sentença de seu destino. Compreendo agora a razão do pesado capote, aquela ligeira inclinação de ombro, a palidez. Compreendo, adivinho-a. Certo, é uma débil flor de tronco arruinado. A condenação fatal corre em suas veias e, inexorável, há de cumprir-se. Pobre Leilah!

 

SIM, deixem-me supor, já que é esguia e frágil, deixem-me supor que se chama Leilah. Imagino sua infância: foi uma criança a quem a fragilidade não permitiu seguir regularmente o curso escolar. Enquanto as outras de igual idade seguiam para o grupo, contentes em seus uniformes, a menina triste ficava espiando da janela... Para ela vinha a professora a domicílio e as aulas eram uma obrigação monótona. Mais tarde, em casa, o piano exigia um esforço que Leilah não podia fazer. E de renúncia em renúncia ficou-lhe apenas - doloroso refúgio - o mundo dos livros. Os romances de Leilah. As suas fantásticas viagens entre quatro paredes!

      Mas aquele cansaço, aquele desânimo. E a pontinha de febre todas as tardes. Levaram-na ao médico. Não era nada, apenas minúscula mancha no pulmão direito, afecção que tratamento rigoroso faria desaparecer. Um ano. Dois anos. E desde então, além dos romances, que já não lhe proporcionavam prazer, mas tornaram-se um vício, os dias de Leilah encheram-se de trabalhosa ocupação: estas chapas mensais de Raio X. Pobre Leilah.

       Mas, pior que tudo isto - ela não sabe - amanhã terá que seguir para melhor clima, num sanatório de cidade serrana. De novo um médico afirmará que não é grave, e que em meses estará completamente curada. Uma esperança animará durante dias sua vida triste. Quem sabe! A Deus nada é impossível. Sanatório é para doentes: Leilah ficará sozinha, na sociedade de outros condenados. Cartas de casa. Palavras animadoras. Bençãos. Ela responderá dizendo-se melhor, que não tenham cuidado. Haverá alegria na família; atribuirão a um milagre. Conselhos piedosos. E ela atenderá; que não faz o desespero de um condenado?

     Mas... Ai, esta esperança, durará pouco mais de um mês, se durar tanto. Simples melhora com mudança de ambiente, os antigos sintomas voltarão. E mais tirânicos. Fastio, insônia, suores noturnos, e aquele nervosismo, aquela irritação a um tom de voz mais alto, um gesto indiferente, um rosto grosseiro. Certos dias o termômetro acusará 39º. Que pesadelo! Para que viver? Cartas sobre a mesa... Onde vontade para responder? E o espelho, meu Deus, que diz o espelho! Será mesmo ela? Largada na cama, aqueles olhos de negros cílios deixarão cair as pálpebras, não cheias de sono, mas de infinito desânimo... Viver ou morrer - ser-lhe-á indiferente. Até que uma noite, a um acesso mais violento de tosse, o lenço se maculará de vermelho. Serena, murmurará: "Acabou-se.  Antes assim". Não tocará a campainha. Para que chamar? Tudo é inútil. Deixar-se-á recostada nos travesseiros. Se o sono viesse e, com o sono, a morte libertadora!

 

"–LEILAH morreu! Leilah morreu!" - será a notícia brutal, uma manhã no Sanatório. Para que a ocorrência não perturbe os outros doentes, entender-se-ão por meias palavras; para não impressioná-los, depressa levarão dali Leilah morta. Prantos, desesperos, flores, muitas flores - presente inútil para Leilah. E à tarde, talvez uma tarde chuvosa, um coche seguido de dois ou três automóveis arrastar-se-á numa estrada lamacenta conduzindo um caixão pouco maior que o de uma criança, para um abandonado cemitério de vilarejo... O branco caixão de Leilah, a que nasceu para a morte.

 

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