Xavier Placer
IV
S I L H U E T A S
A D O L E S C E N T E S
.. vão, espaço afora, estrelas enamoradas.
Raul Pompéia, In Canções sem metro.
A Sombra é amiga sob as árvores. As copas altas, livres umbelas a desafiar a severidade do sol, rendilham claros-escuros pelo chão… Ao ruído de passos, os pardais esvoaçam dos canais que serpeiam em curvas de águas ornamentais. Num ruflar barulhento de asas, vão pousar nas hermas dos homens célebres, mergulhados num sono – a glória é tão confortável! – de que ninguém os arrancará, como suas obras à poeira das estantes. Entediado, sem ter com quem perturbar a ordem, o guarda municipal senta-se, acende um cigarro, dá uma volta, torna ao ponto de partida, acende outro cigarro; dá uma volta, torna ao ponto de partida, acende outro cigarro, Ah, esta serenidade de três horas da tarde em dia útil no Passeio Público! Esta serenidade está à espera de um poeta. Onde estão eles, que a não vêm cantar?
DEIXAR os poetas. Hoje têm inspirações menos virgilianas: a questão social, uma viagem aos Estados Unidos. E o Passeio Público, onde poder-se-ia ainda encontrar os criadores de Iracema e Capitu, em discreto colóquio, fica para os fotógrafos ambulantes; para os desempregados; para as grisettes; para o senhor aposentado que traz migalhas para os peixinhos e vem ler à fresca o seu jornal; para o basset da solteirona; – fica, sobretudo, para os adolescentes.
Os adolescentes! Reparai como esses jovens pares romantizam a atmosfera idílica do jardim: sem eles o quadro estaria incompleto. Eles é que não atentam para nada, os adolescentes. O passeio Público é hoje um Panteon. Um mundo histórico vive em torno deles. Mas que lhe importa este mundo, aos adolescentes! Sim, que lhes dá quem tenha sido Chiquinha Gonzaga, a maestrina; o poeta Bilac; o jornalista Ferreira de Araujo; os pintores Pedro Américo e Victor Meireles, seres tão distantes, tão vagos… Que lhes pode falar o portal lavrado em pedra, encimado pelas efígies da Rainha Maria e Pedro II !, obra de mestre Valentim, o mulato de gênio? Nem lhes pergunteis quem foi Castro Alves. Não é que desconheçam o poeta dos escravos; deste já ouviram falar, mas através da resposta anedótica do Deus! ó Deus, onde estás que não respondes? do “Navio Negreiro”.
Vede: os livros estão caídos no chão, instrumentos inúteis. Com as folhas secas, o vento arrebata as folhas dos cadernos onde foram garatujados os pontos de aula. Lá se vão em remoinho… Ora, que mais dá! Eles ignoram literatura e história, francês e álgebra, mas bem sabem que “a árvore da ciência não é a árvore da vida”. Na verdade é saber bastante… E ei-los, os adolescentes, mãos unidas, bem juntos, sentados no banco – ali, mas quão longe, quão longe dali!
CURIOSO saber o que dizem os adolescentes. Impossível que já agora estejam arrependidos de ter gazeteado a aula, Difícil admitir que discutam as vinte e cinco do que… Provavelmente vieram para ali a fim de melhor combinar o noivado em segredo, com planos de casamento ao fim do curso. Cedo? Se for preciso, ele deixará os estudos, romperá com a família, assassinará o Presidente da República! Encontrou a eleita e por ela, o seu tipo, fará impossíveis. Que lhe peça a lua numa noite de verão, e ele irá buscá-la.
Mas, reparem, é ela quem fala, enquanto ele, a cabeça inclinada em seu ombro, ouve-a em grave atitude de cavalheiro, a beber-lhe as palavras. E se a interrompesse, seria decerto para dizer uma frase que começaria: “–Querida, na doçura musical de tuas palavras…” Ela calar-se-ia de súbito, não porque achasse estranha a linguagem, mas porque… ele saberia porquê… E deixar-se-iam estar longo tempo em silêncio a fitar-se nos olhos, as janelas da alma. Ó adolescência! Ó primavera!
Que foi? Eis que se atiram cada qual para o lado, numa cristalina risada que põe em debandada os ariscos pardais. Levantam-se. E rindo ainda, Dáfnis e Cloé de mãos entrelaçada, lá se vão entre as árvores, sob a sombra amiga, alameda afora – confiantes, belos, alegres e transparentes qual dois raios de sol…
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