Xavier Placer
ZONA SUL
Copacabana arde num delírio de cor e de forma, e se sente na multidão palpitante que abraça as ondas...
Barreto Filho, In Sob o olhar malicioso dos trópicos.
FLAMENGO
CHUVA sobre o mar... (Clima absurdo, sai-se de manhã com o sol, volta-se à tarde encharcado). Desce em bátegas à entrada da barra. Doce de contemplar. Caem os pingos isolados: risos oblíquos! Como em gravura a ponte seca. Instalado no conforto relativo deste CASTELO-COPACABANA, aqui te vais. Quase vazio… Aquele senhor tem um jeitão espanholado de argentino. Veio conhecer o Rio. Como fuma a… será uma Fräulein ? Aqueloutra tem um ar de pomba triste. Como voa este ônibus! Olá, chofer, mais respeito à vida alheia! Seria inútil. Ficou para trás a Glória. Quando me decidirei, enfim a galgar o outeiro para ver de perto a ermida da virgem? Certo, a aproximação distância. Lá está a Urca; o fotogênico Pão-de-Açúcar – postal para turistas! Largada no banco, tão suja, esmulambada, em pleno Flamengo. Quantos a notarão? Indiferente ao chuvisco. Passam tão céleres os carros… A velocidade elimina as derradeiras possibilidades de fraternal comoção. Vida vertiginosa, tumultuária – triunfo cego de egoísmo. Quanto mais gente, mais sozinhos. Civilização. Somos os novos bárbaros. O quê? “– Foi o lotação que abalroou o jeep”. Há sujeitos que sabem tudo! Terei a notícia pelo meu vespertino. Cidade maravilhosa, não. Melhor cidade dos desastres. E contudo… todos querem viver aqui, de qualquer jeito. Os que moram na província querem vir para o Rio; no Rio, não descansam enquanto não se instalam na zona sul; na zona sul, o sonho dourado é Copacabana… E vai estiando a chuva.
BOTAFOGO
ACOLHEDORA como um abraço. Sempre amei esta enseada. Num desenho de Debret, era bem diferente… Cajueiros na areia. Homens do mar abicavam aqui as suas canoas e estendiam as redes sobre as copas redondas. Ignorados do mundo – e felizes! “Chácaras” ao longo da praia, com muros espetados de cacos de vidro coloridos. Conselheiros barbudos bebericando cafezinho, faziam e desfaziam a política do Império. Pedro II exercitava rimas e estudava hebraico – o Magnânimo. Tempos tranquilos! Patriarcalismo. O negro escravo sustentava tudo. Saraus, sinhazinhas, admiração babosa por “la France eternelle”. Um dia a república sacudiu a modorra. E ergueu palacetes. Agora os palacetes democratizam-se em colégios, habitações coletivas, guarda-móveis. Jardins abandonados. Não tardará a ser invadida pelo apartamento. Ficou por aí (percebe-se) um ar característico: as fachadas respiram história, tradição. Mourisco. Curioso entorno. Ah, um cego. Cuide! não mais existem tais músicos ambulantes. Toca, ceguinho, expande a tua queixa! Toca, engana-te a ti e aos mais. Que só a música esquece essa outra melodia que em surdina, no fundo da gente, lá na última galeria… Duas ciganas. Linda, a mais nova. Quebraram para a Praia Vermelha os multicores vestidos. Vão ler a buena dicha para a granfinagem da Urca. Uá, uá, uá… Uá, uá, uá… Atordoante. Inventado esse túnel de propósito para separar Copacabana do resto da cidade?
COPACABANA
EI-LA! É a zona sul, o coração da zona sul! Copacabana. Como se entrega sem pudor! Sigamos a pé, pisando o mosaico da calçada elegante. (Içada a flâmula vermelha do Posto 2: Cuidado, praieiros, o oceano está enfurecido!). Verde e branco, verde e branco. Civilização e natureza. Distante tempo em que tudo isto era deserto areal, coberto de pitangueiras!. Hoje, quase outra cidade, com uma vida que lhe pertence. De tudo. Desde a lojinha de quinquilharias ao magazin de grandes proporções. Casas de arte, de bric-à-brac, de curiosidades, um empório de coisas raras e deslumbrantes, luxo e conforto. Ciclistas. O mau tempo proíbe-lhes a delícia da água e areia. Juventude esportiva, sadia, sem amielianas complicações. À noite, blusão ou short, espalha-se ao ar livre por esses bares de nomes sofisticados: O.K., Bolero, Shangri-la… Perfis judaicos, carapinhas espichadas, louras, morenas, bronzeadas. Cosmopolitismo. Os homens graves, de péssima memória, horrorizam-se, falam em “viço grosseiro dos tempos”. Moralismo. Novos tempos, eis tudo. Nesta areia, foi nesta areia a arrancada dos 18… Continuam avançando, fuzil na mão, em desalinho mas desassombrados, no quadro famoso e nas imaginações… Edifícios, edifícios, edifícios. Uma festa para os olhos a alva colmeia desses arranha-céus do Leme ao Forte… Como todos os outros bairros são tristes, encardidos! Aqui até a pobreza dos morros se disfarça para não afear a Praia-Cidade. Cenário translúcido em tecnicolor. Vem de longe esta brisa, impregnada de salsugem. Ondas bravias. Aqui os sargaços não fazem morada… Aprazível senti-la roçar na face, a brisa marinha, bebê-la e aspirá-la a fundos haustos. Lavam-se os pulmões de puro oxigênio. E a alma torna-se ingênua, jovial, a alma sorri de feliz. Deixamo-nos ir! Toca uma eletrola, por aí, uma canção exótica. Hula-hula. Guitarra:
Bali Ha’i!
May call you
Any night and day.
In your heart
You’ll hear it call you:
“Come away, come away”.
Bali Ha’i!
Bali Ha’i!
Bali Ha’i!
Estou às margens da Guanabara ou numa ilha dos mares do sul?
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