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"DESTES É O REINO DOS CÉUS"

Mister Smith, le traigo palabras en aceite donde nadan los dulces sentidos de la vida.

 

J. Boadella, Pórtico, In La Caravana de los elefantes.

 

IGNORO se existe a Felicidade, substantivo abstrato. Sei entretanto que, apesar de tudo, existem pessoas felizes neste mundo. Não interessa no caso o número, gênero e grau dessa felicidade, mas a veracidade da observação.

       Ora, esta é autenticíssima. Surpreendi-a num flagrante de rua, aqui está a saltar-me nas mãos, viva como peixe recém-tirado da água…

     Graciosamente, dedico-o a você. A você, sim que tem todos os motivos de queixa contra a vida; a você que não passa dia sem pensar em suicídio, chegando a redigir (mentalmente) as cartas acusadoras que deixará; a você que anda com uma desconsolada flor amarela na botoeira. Só lhe rogo uma coisa, meu caro: leia-me sem prevenção.

 

ERAM oito da manhã. Isto não tem importância, mas é que sendo oito horas, seguia eu para o trabalho. Estava no ônibus. A certa altura, como me parecesse curiosa, pus-me a prestar ouvido à conversa de um desconhecido. Que não é lá muito correto, bem o sei; mas viajava ele no banco imediatamente atrás de mim, era fluente a sua palavra, agradável o timbre, deixei-me ir em seu ritmo.

      Diziam os lábios invisíveis ao companheiro monossilábico:

      “– Afinal esta vida são dois dias, e é levá-la da melhor forma. Para que arranjar motivos de aborrecimento? Eu penso assim, José. Não quero convencer ninguém, mas penso assim. E olhe, tenho-me dado bem até hoje. Ai deste seu amigo, se quisesse levar tudo a ferro e fogo. Getúlio foi uma calamidade para este país, mas um slogan que no Estado Novo andou aí pelos muros é de muita sabedoria: “Só o Amor constrói para a Eternidade!” Também casei com uma mulher que é companheira de verdade. Você conhece Clérida, não é preciso que lhe diga. Graças a Deus! Aliás, não dou razões de queixa. Não sou melhor que os outros maridos, mas é esta a verdade. Minhas paixões são ela e o filhos. O lar… Há aí no momento um programa, na Mayrink ou Tupi, do qual uma coisa ao menos se salva: o título. Chama-se: “O mundo não vale o seu lar”. Fora da ternura da família, digam o que disserem, é tudo ilusão, José. Até dinheiro. Dinheiro não traz felicidade a ninguém. Figure você: pode haver maior satisfação do que, após um dia de trabalho, chegar em casa, à tarde, e encontrar a esposa e os filhos preparados, esperando a gente para o jantar? Esquecem-se as preocupações, esquecem-se todas as misérias. Tanta ternura vai nos tornando menos maus, fique certo. Evidente esta felicidade não é perfeita. Surgem casos. Hoje é o caçula atacado de sarampo, amanhã o mais velho que exige um gasto extraordinário na escola, a mulher que se aborrece porque há quinze dias está sem empregada… Mas até essas alterações na rotina são interessantes, fazem parte do programa e têm função de corretivo. Acrescente ainda um cinema por semana com a mulher, praia aos domingos, a sociedade de meia dúzia de amigos, a leitura de um bom livro, e diga-me se isto não é ser livre, ser realmente dono da vida ? Dirão: felicidade estúpida. Mas isto é a felicidade, José, nada mais que isto. Por que exigir das coisas o que elas não dão, o que não podem dar?  Mediocridade? Alto lá, amigo. Em que impede isto que se realize algo de mais alto ? Egoísmo? Deixe falar o mundo, que tem sempre que falar. Burguês? Eis um dos termos mais deturpados da nossa época. Quer saber de uma coisa ? No fundo, e no bom sentido, todo homem é naturalmente burguês  isto é, gosta de vestir uma camisa limpa… Vamos levantando?”

 

GRANDE sujeito! Como será? Conjeturei: meia idade, bem vestido, bem calçado, ár próspero e saudável…

    O ônibus chegava; aguardei e pude vê-lo da janela. Não, não me enganava, era ele. Apenas não tão moço quanto imaginara, terno azul-marinho, cerzido em mais de um ponto, sapatos velhos bem engraxados… No todo, um ar de modéstia arranjada, limpa. Destes é o reino dos céus!

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