Xavier Placer
UM BIBLIÔMANO
Pour arriver à la possession de cet exemplaire, il n'est pas de lâchetés qu'il ne fît, et il en est quelques-uns qui iraient volontiers jusqu'au crime.
Albert Cim, In Le Livre.
HÁ uns que compram livros a metro, não os leem. Outros há que só se interessam pelo aspecto material deles: juntam edições prínceps e exemplares raros – estes não são para serem lidos. Outros há, ainda que têm exclusiva predileção por determinado autor, a quem se dedicam com uma paixão absurda, verdadeira monomania.
DAÍ aconteceram coisas curiosas. Aconteceu que, uma tarde, ao deixar o escritório, o nosso herói descobriu por acaso um exemplar de certo autor de sua predileção, num “sebo” da rua São José. Se eu disser que há muito o vinha procurando, julgo que terei explicado a alegria que lhe alvoroçou a alma, pondo-lhe nos olhos um brilho de puro gozo. Era exatamente aquele, o esquivo, o invendável. E agora tinha-o ali! Com a delicadeza de um cavalheiro que beija a mão à sua dama, curvou-se para tomá-lo. Deteve-se a folheá-lo, gostosamente procurou uma frase que lhe sabia de cor. E a edição, embora modesta, apresentável. Encurtando razões: comprava-o. Mas levando a mão à carteira, encontrou-se desprevenido. Maçada. Enfim, era ter paciência. Viria buscá-lo no dia seguinte. Acariciou-o ainda uma vez, como quem se despede, e recolocou-o no primitivo lugar. Comprava-o. Era seu.
No outro dia madrugou à porta do “sebo”. E qual a sua emoção quando, ao aproximar-se da prateleira, não topou com a obra. Tentou iludir-se: talvez o idiota do caixeiro a tivesse retirado do lugar. Buscou nas prateleiras vizinhas, acima e abaixo.
Dirigiu-se aos balcões centrais. Foi à vitrina. Nada. Nem uma vez acudiu a ideia, plausível em cérebro normal, de que tivesse sido comprada. Falou ao rapaz.
– Vendi-a ontem, meu senhor.
O nosso herói fixou-o com desapontamento e ódio. O caixeiro adoçou:
– Se tivesse avisado, era um prazer reservar…
E, em tom anódino de amabilidade comercial, pôs-se a falar daquela edição, esgotada havia muito, daquele exemplar que dias antes aparecera num saldo, e entrava na apreciação intrínseca da obra – ousadias de caixeiro – quando o nosso herói, voltando-lhe as costas, bruscamente ganhou a porta, rua afora.
Naturalmente, nem se faz mister dizê-lo, sua alma vai em pedaços. Em duas partes, ao menos, dilacera-se. Uma delas arma pequenas frases soltas, mais ou menos assim: “ – ORA. EIS AÍ, NÃO ENCONTREI O LIVRO !” Ao que a outra murmura em surdina: “– Quem o teria adquirido?” “– BEM, NÃO FAZ MAL!” “Certo, qualquer idiota”. “– FOI ATÉ MUITO BOM, ECONOMIZEI UNS COBRES!” “– Foi, não tenho a menor dúvida de que foi um perfeito imbecil!” “– AFINAL ATÉ GANHEI, AMANHÃ ME APARECE UMA EDIÇÃO MELHOR”. “– E que pode um tal sujeito entender do estilo e pensamento de Z…?” “– SE NÃO ESTOU MESMO ENGANADO, PENSO QUE NA JOSÉ OLÍMPIO HÁ OUTRO EXEMPLAR”. “– Como se Z… fosse autor para qualquer! Como me rio de tais tipos!” “– CRETINO, IMBECIL, IDIOTA !”.
A manhã é de sol, o asfalto negro rebrilha, há buzinas e colorido de vestidos de mulheres que passam. Que passam, tão belas! Mas o nosso herói não enxerga nada. Mal comparando, como ao rei Édipo, vazaram-lhe os olhos. Está estragado o seu dia, tudo lhe correrá às avessas. É que há no mundo, nesta mesma cidade, e ainda ontem o ignorava, outra pessoa que se interessa pelo incomparável, pelo genial autor Z…, que ele vem lendo e anotando – entenda-se: colecionando – há nada menos de vinte e cinco anos!
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