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III

I N S T A N T Â N E O S

O   C A M E L Ô

         ... demiurgos de inutilidades.

                             Manuel Bandeira, In Libertinagem.

 

VAI-SE andando, rua afora, e, ao dobrar uma esquina, depara-se um ajuntamento. Desastre? Desastre não aparece. Então foi um moleque que larapiou qualquer coisa à porta da casa de comestíveis… Alguns passos, e a realidade se evidencia – o camelô.

    É o camelô. Antes mesmo que se lhe veja o rosto, pois compacto é o grupo, sua oratória, fácil como água de fonte, no-lo revela.

      – Verão os ilustres cavalheiros, que me dão a subida honra de ouvir, que não se trata de mera habilidade ou truque, porquanto…

    Em torno: olhos, olhos, olhos. Graves senhoras de alma curvada de preocupações, mocinhas aos pares, colegiais ou comerciárias, rapazolas, uma honesta mãe de família com seus dois rebentos, entregadores de embrulhos, um alfaiate lá da sacada de um terceiro andar, esquecem todos os seus negócios, escravos um instante do homem de dicção perfeita e entonação convincente. Demóstenes de sarjeta.

 

FAZ-SE agora uma brecha. Aproximemo-nos. É quase sempre um mulato espigado, terno de linho não muito limpo, mas de qualidade, sapatos de salto carrapeta ou chinelos, e, em lugar da gravata, um cachecol de seda, presente de seu xodó, que tanto pode ser uma alva polaca como uma morena nacional das rótulas do Mangue ou das “pensões” da Lapa. As vezes é mesmo um preto, mas então com menos bossa… Outros ainda estrangeiros, belos tipos humanos, italianos ou espanhóis, decadentes, mal vestidos, que a má sorte levou àquele expediente salvador.

    Alvo das atenções, perfeitamente dono de si, o nosso herói agita-se no círculo que lhe é reservado, a mercadoria espalhada sobre um jornal. Trata-se, por exemplo, de frágil objeto de folha, simples lâmina com arame. Em seus dedos demiúrgicos a bugiganga descasca batatas, dá-lhes formas de flores, arranca chapinhas, abre latas, corta vidros e uma centena de outras funções que a nossa personagem vai enumerando e demonstrando. Por último, como se fora nada, dobra-se em minúscula peça de bolso, invisível, portátil… Maravilha!

    – E quanto custa isto, senhores? É de graça, isto é, cobra-se apenas a ínfima quantia de … dois cruzeiros, nada além de dois cruzeiros, ao passo que em qualquer loja do ramo ser-lhe-ia pedido três, cinco, dez vezes mais, e que a massa falida Massif & Cia. tem o grato prazer de ofertar ao respeitável público pelo preço de custo, a ínfima quantia, repito, de – dois cruzeiro, nada além de dois cruzeiros. Um para este cavalheiro, mais outro para esta senhorita. Pois não, um momento, mais outro para a madame

     Que são dois cruzeiros? Ora o diabo do camelô. Vá lá! E todos compram; compram e saem felizes com o bom negócio. Também o nosso herói está contente, acende um cigarro, tira uma tragada, e, mão no bolso do paletó, agita sonoramente as pratas numerosas, a um tempo gozando o ganho e atraindo novos fregueses. Qual relógio de repetição, com as mesmíssimas palavras, minutos depois, a coisa volta ao ponto de partida, e o número recomeça.

    Poderá recomeçar ou não. Eis que surge, de repente, com a autoridade perigosa de seu cassetete, um guarda civil. Está tudo acabado: ligeiros, espertos, eles arrebanham os apetrechos e azulam. Apagam-se na multidão. Deveras? Quinze minutos após renascem numa esquina adiante.

    – Verão os ilustres cavalheiros, que me dão a subida honra de ouvir…

 

FABULOSOS sujeitos! É verdade que o instrumento maravilhoso, em casa, não funciona; nem o pozinho mágico presta para nada. Que importa! Então por dois cruzeiros, nada além de dois cruzeiros, não é de graça uma ilusão? Ora quantas pagamos mais caro, quiçá mais reles!

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