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C O N T R A S T E S

    Singular  associação de personagens, que constituem esta população brasileira, onde os tipos mais primitivos andam lado a lado com os mais evoluídos.

            Pierre Deffontaines, In Geografia humana do Brasil.

 

A par da famosa beleza natural, de seus arranha-céus, praças e jardins; das movimentadas artérias por onde escoa o tráfego nervoso; e das suas noites, com uma sinfonia de luzes contra o fundo negro das montanhas, refletindo-se à beira-mar como colunas submersas – féerie de conto oriental – o Rio constitui um espetáculo.

       Orgulhosa de si, a mui leal São Sebastião de Estácio de Sá, a Corte de vielas tortuosas e casario acaçapado das estampas de Debret, traveste-se em Capital Federal, Cidade Maravilhosa, Rio, para femininamente sintonizar com o momento – esta hora vertiginosa de televisão, dos aviões a velocidade supersônica, era apocalíptica da bomba atômica…

 

MAS – delicioso contraste ! – há recantos da Sebastianópolis que por sortilégio vão se esquivando ao surto civilizador.

       – Olá, Mestre Gonçalo, como vai essa força?

    Não, nem é preciso ter muita imaginação para sentir na Ferraria do meu amigo Mestre Gonçalo, no seu barracão em meio ao descampado, à Avenida Suburbana, logo à margem do asfalto, que ali perdura de passado, de romanesco, e reportar-se a uma novela de capa-e-espada – justo no capítulo em que o herói se detém um instante na estrada para ferrar o “corcel de patas mais ligeiras que asas”.

       – Por cá, como Deus queira, senhoire dutoire.

      Calça de mescla, tenho diante de mim um homem de peito largo, rudes braços, afeitos ao trabalho, rijo como rebento de velha cepa, malgrado os oitenta anos. Português, tem mais anos de Brasil que qualquer de nós. Rapazola, para aqui emigrou, aqui se enraizou, casando com mulata, que lhe deu filhos e filhas, belos latagões e raparigas morenas, que vivem pelo subúrbio. Há sessenta anos que ganha o pão neste mesmo lugar, neste duro e honesto mister de ferrador de animais.

        É de vê-lo, no trabalho. Expedito, ao chegar um freguês põe-se logo em ação, avivando com velho fole as brasas do fogão. Vai aos espetos, dispostos ao longo da parede, onde tem arrumadas as ferraduras. Escolhe algumas, deixa-as a incandescer. Enquanto espera, depois de acender pela vigésima vez o cigarro colado ao lábio, prepara os cascos do animal. Agora as ferraduras estão rubras. Na bigorna, a seguros golpes de martelo, bate aqui, bate ali, amolda-as num último retoque. Estão prontas. Achega-se ao animal, cuidadoso como se tratasse com uma criança, num carinho que o animal parece compreender, pois abandona a pata confiantemente. Questão de minutos, está calçado, pisando com segurança, escarvando a terra, nitrindo satisfeito.

       Mestre Gonçalo guarda o dinheiro com indiferença. Substitui o cigarro e, mãos nos bolsos, vem à porta do barracão. Observo-o. Noto em seu rosto uma radiante alegria – alegria que jamais se surpreende nas fisionomias cansadas, revoltadas ou melancólicas, dos operários de fábrica. Mestre Gonçalo está contente de seu trabalho. Como não ser assim? Vejam, vejam o cavalo afastando-se, e afastando-se cada vez mais. Reparem só com que aprumo; ouçam a música picada das ferraduras novas no asfalto da Avenida Suburbana – plaque-plaque! plaque-plaque! plaque-plaque!

 -ENTÃO, Mestre Gonçalo, o ofício é rendoso?

      – Com ajuda de Deus, vai dando pra comer, senhoire dutoire.

      – Sempre sobra para o “martelo” dp carrascão, hein?

      – Qual, senhoire dutore, lá isso só pelas festas.

      Mestre Gonçalo é de pouco falar, mas eu puxo por ele:

      – Por quanto ferra um animal, mestre Gonçalo?

      – Trinta mil réis, senhoire dutoire. (O bom velho não se ajeita a essa inovação de cruzeiro, centavos. Para ele são os mil réis).

      – E é muita a freguesia?

     – Cada vez menos, senhoire dutore. São poucos os que por cá aparecem. E na mor parte burros, que os cavalos estão desaparecendo com os automóveis. Deram cabo d’ofício de ferrador, as máquinas. Bom ofício, bom ofício, em tempos que lá vão.

       Na pista livre da Suburbana, um após outro, qual mais veloz, comentário vivo ao que acaba de dizer, passam os automóveis.

       Estendo-lhe a mão cordialmente:

       – Adeus, Mestre Gonçalo.

       – Até mais ver senhoire dutore.

      Parto. Mas a frase castiça de Mestre Gonçalo, quiçá o último ferrador do Rio de Janeiro, fica-me ao ouvido: Bom ofício, bom ofício, em tempos que lá vão.

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