Xavier Placer
VELHAS CASAS
A casa parecia suspensa na luz trêmula, e tudo afastava de si, num esquisito encantamento.
Cornélio Penna, In Dois Romances de Nico Horta.
É uma casa assobradada, ao centro do amplo terreno invadido pelo mato. Um renque de esguios eucaliptos, ao fundo, e um desmantelado caramanchão de bougainvilles, à esquerda, completam o quadro. Gretado muro de pedras, avivado de liquens e musgo, cerca-a em quadrilátero, isolando-a do mundo. Dois leões, fauces enegrecidas, jubas e garras destroçadas, montam guarda à entrada, no portão de grades enferrujadas.
Até bem pouco, ainda se ouviam aqui sons melancólicos de piano. Esses mesmos emudeceram. Venezianas perpetuamente cerradas, silêncio, viv’alma. Dir-se-ia que os pardais numerosos, perseguindo-se em bulha pelas árvores, são os únicos senhores da casa em ruínas…
Na travessa recém-aberta, vaidosa de fachadas beges, varandas claras, jardins ingênuos, que vão surgindo de um lado e outro, a “Chácara” (chamavam-na assim de longa data) chega a ofender os olhares impacientes. Que faz ali aquela excrescência que ainda a não arrasaram?
E mais dia, menos dia, executar-se-á a sentença. Então um bungalow sem arquitetura, sem história, há de tomar o lugar, pretensioso como um novo-rico.
Que querem? É o estatuto universal: “Uma geração vai-se e outra vem”... Não há que estranhar, senão curvar-se ao cutelo do Tempo. Também as casas morrem. E morrem, está visto, porque têm alma. Quem não vê que as casas têm alma, quem não lhes adivinha na fachada o longo passado romanesco?
Cruzai por ela mais devagar ou menos distraídos, atentai bem: aquelas verdes janelas, de vidraças partidas, não foram sempre assim, pálpebras mortas. Quantas vezes não se escancararam para o azul em louras manhãs de sol e asas! Quantas vezes, em noites de Natal, em festas de família, não jorraram luz generosa sob o dossel das árvores da chácara! Sob esse telhado, onde à noite os gatos amam sem pudor, indiferentes aos fantasmas, dentro dessas paredes forradas de papel, quanta vida passou. Quanta alegria e dor!
Então tudo isto haveria de perder-se? Não e não. Silenciou, mas não se perdeu. Nada se perde de todo. O frêmito de vida ali ficou, ali palpita; imprimiu à casa essa fisionomia bondosa de gente velha. Reparai, reparai, se não tem mesmo o jeito amigo de uma avó… Ah, a alma das coisas, a alma das casas, que não morre nunca!
AGORA ela agoniza, a velha casa vai-se docemente. Como o último sobrevivente de nobre família, abandonada e só, num mundo estranho. Um olhar de piedade para ela! Em breve, não mais existirá; e, ao passarmos, talvez sem palavras, murmuremos: “Arrasaram a Chácara”, coitada!” E então será como se um pedaço de nós mesmos (ínfima porção, é verdade) tivesse sido amputado: ficaremos mais pobres, porque algo faltará. Um olhar de piedade para ela!
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