Xavier Placer
MINHA CIDADE
Niterói ! De onde vem este nome suave como uma canção?
Charles Ribeyrolles, In Brasil Pitoresco.
UM cego, na barca, tira de uma flautinha de lata as marchas e sambas do dia. Um gordo, sentado a meu lado, queixa-se da falta de conforto das conduções marítimas da Cantareira. Lido o meu vespertino, ponho-me a ouvir o cego habilidoso. Seus falsos semitons sibilantes lembram-me ss, caravanas de ss luminosos, e é doce ouvi-los casados ao ritmo do balanço da barca…
Mas o gordo exuberante descobre-me desocupado e toma-me para seu interlocutor.
– Niterói só irá para diante no dia em que se ligar ao Rio por uma ponte. Ponte ou túnel.
– Acha?
– Mas é claro, meu senhor. Isto é a terra do atraso, qualquer subúrbio da Capital vale dez vezes mais. Isto é a terra do atraso…
Levanto-me, vou para a proa da barca; há de tudo; deixemos este gordo idiota. Quem assim fala, evidentemente não é teu filho, minha cidade. Querem-te cosmopolita e moderna, querem desfigurar-te. Eu porém, amo-te sem ponte e sem túnel, atrasada e rotineira. Amo-te tal qual és. Niterói dos suicídios inexplicáveis, das mulheres-fantasmas, dos crimes bárbaros e misteriosos. Niterói romanesca e anedótica! E é por isso que não me zango com o samba:
Eu não sou daqui,
sou de Niterói…
"ÁGUA escondida”, "água que se esconde", ou outra etimologia indígena, que importa? Não quero entender disso. quero cantar-te, minha cidade. E por que não?
todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha.
Não afirmarei que:
Nas débeis cordas da lira
hei-de fazê-la rainha.
mas, fiel espectador da mutação de todas as tuas horas, verás que, no fundo, também tenho o meu "fraco" por ti. Por ti, Cidade-sorriso de teus cronistas provincianos; velha cidade de minhas noturnas caminhadas, de meus pecados mortais – Terra do índio, Praia Grande, Niterói!
NÃO, nada direi de tuas úmidas manhãs de inverno. É que envolta no denso lençol de neblina, tu preguiçosamente te aniquilas. Ou então te divertes. Ah, os estrídulos insistentes e longos apitos das embarcações, cegas no nevoeiro da baia! Bem sei que a imaginação é minha; mas esses apelos me vêm de uma noite de temporal em mar alto, onde algum navio naufraga, reduzindo ao silêncio milhares de desesperos humanos. E que aflição, que mal estar!
Falarei entretanto de teus meio-dias de janeiro. Lá estão os teus lugares de sonoros nomes indígenas ou cristãos: Toque-Toque, Ponta d'Areia e São Lourenço; Gragoatá, Boa-Viagem, Icaraí; e por que não São Francisco e Jurujuba? O Sol a pino castiga a todos brutal e indiferentemente. É a hora de suas núpcias com a terra. Atmosfera, de abrasada, rebrilha;e o sultão poderoso, com seus braços de fogo, envolve sôfrego as curvas do corpo amado. Cada coisa se individualiza, agressivamente se agiganta. Só há primeiros planos, nenhuma gradação. Claridades e reverberações. Uma poeira de prata dança no espaço sem nuvens. E, dias após, as elétricas trovoadas, os grandes aguaceiros de verão. Dir-se-ia o primeiro dia da criação – um mundo nasce!
Já os ocasos são doces como um aperto de mão. Os tons puros esbatem-se; como que exausta da refrega do dia, a paisagem adquire planos, humaniza-se. Céu de lápis-lazúli, mar esmeralda, e um humilde abandono em tudo. As ruas alongam-se em retas infinitas. É estático e igual o telhario ocre. As torres da Catedral dão a nota de altura. Uma temeridade aquele arranha-céu de seis andares. E na pesada arquitetura dos "Correios e Telégrafos" reside o orgulho maior dos munícipes... Ao fundo, na perspectiva repousante, as verdes colinas de dorsos macios organizam-se em caravanas. Tem linhas de seio seu diorama sinuoso. Quase a tocá-las, suspensa na altura, lá palpita a Estrela da Tarde, Vésper solitária e casta. Espetáculo maravilhoso, não tardará a nascer a Lua, fruto de ouro na noite tropical... E a modesta Niterói sob o luar se transfigura.
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