Xavier Placer
II
A D J A C Ê N C I A S
S U B Ú R B I O
... no subúrbio acontece que nossa mesquinhez fundamental é mais nítida.
Rubem Braga, In Um pé de milho.
VAI o trem deixando para trás Barão de Mauá, os fundos de quintais de São Cristóvão, Benfica, Triagem… E vem a retina saturando-se de imagens apanhadas em câmera lenta ou apenas entrevistas.
Capitu. Não a heroína do perverso Machado, mas o atelier de alta costura de Madame Colette, (Francesa, sim senhor!) Bonita a fachada recém-pintada do “Centro Espírita Amor ao Próximo”. Também fizeram o jardim, que não havia. Quero ver amanhã, à carícia do sol, suas dálias e rosas. Balzaquiana, interessantíssima… Sumiu-se portas a dentro da “Panificação Sublime”. Panificação Sublime! Anda a literatura esparsa por toda a parte…
Louros, da cor de mel. Terá dezoito. Brotinho, ponhamos dezessete. Suburbana, desdenham as grã-finas da zona sul. Ora que importam classificações, se ela foi a “rainha” no concurso de beleza do “Esperança Futebol Clube”? Lá ficou, meditativa. à janela. Seu nome? O timbre de sua voz? Verdes ou azuis os seus olhos? Quem em seu pensamento? Irremediável desconhecida, adeus! Quem sabe não era a definitiva encarnação da Bem-Amada? Ser teu vassalo. Ó princesa, ó flor dos subúrbios! Nunca mais! Melancolia…
SÚBITO, “Carlos Chagas”.
O médico ilustre? Não. O hospital? Também não. É a estaçãozinha da Leopoldina. Aliás nem é a estaçãozinha, mas o mangue que se estende para lá do asfalto, debruado pelos tufos de capim, da Rio-Petrópolis. E sobretudo a nota pitoresca de seus estranhos povoadores: os urubus.
Impressão do já visto. Onde? Alguém escreveu isto. Augusto dos Anjos e o urubu que pousou em sua sorte… Mas não, não é isto. Murilo Mendes e a feérica imagem apocalíptica do urubu que, no último dia, vestido com as cores do arco-íris, dará milho ao fantasma de Deus… Também não. Qualquer coisa de mais, digamos característico. Poe. Mas o urubu de Poe é corvo; corvo e símbolo. Quem, Senhor? Ah, “Seigneur… quand froid est la prairie…” Aqui está, Rimbaud. O Rimbaud de “La corbeaux”. Recordo: na hora fria do crepúsculo, que o Senhor faça descer dos altos céus os deliciosos corvos amados… Depois, que sobre casebres e fossas, se dispersem, se confundam… Aos milhares, aos milhares “sur les champs de France”, onde dormem o sono derradeiro “les morts d’avant-hier”. Eles, os corvos, que volteiem, e volteiem para que o passante se detenha um instante a meditar…
EM "Carlos Chagas" os urubus não têm “Champs de France” nem “morts d’avant-hier”. Em compensação têm o vazadouro de lixo, ali, a dois passos. E as altas torres cinzentas da energia elétrica são o desarvorado apartamento deles. O dístico fatal – PERIGO DE VIDA – e a caveira sinistra servem de defesa, qual escudo heráldico ao portão de arruinado castelo.
Nos dias abrasados, o céu tinge-se de azul de horizonte a horizonte. Se o piloto da Panair pensar demais na mocinha, boina de lado, que olhou para ele no aeroporto, o pássaro enorme baixará em descontrolado piqué: e não cairá apenas em seus domínios, mas na primeira página dos vespertinos, em grandes manchetes. Desagradável desastre em tarde quente, que abandono!
Entretanto os urubus só vêem o lixo que os garis trazem a despejar ali em pequenas carroças atreladas de burricos cheios de paciência e cansaço, orelhas em abano derreadas para o chão… E dia a dia o lixo vai avançando como onda, não verde ou azul, mas multicor e rica: síntese de todos os matizes sociais do subúrbio. Imagino um momento em que se espraiará para além do vazadouro. E crescerá, e levara tudo de vencida, em violência de ressaca. Até as torres, até as torres, que tremerão em suas bases. Ai dos urubus, ai das inquietas gaivotas desse turvo mar! Bem se vê que nada temem, certos de nem molhar os pés. E se acaso os molharem, pouco lhes importa: estão no próprio elemento. Para eles, não há perigos nem ameaças, para eles “Carlos Chagas” é eterno!
Antes assim. Felizes! Cegos, mas felizes. Não consideram que amanhã, sobre o mangue aterrado, vão se erguer bungalows, cines, panificações sublimes, onde não haverá lugar para eles. E rapazes pedalarão bicicletas, enquanto meninas-moças passearão de braço dado na futura praça em “Carlos Chagas”, em “Carlos Chagas” que já foi Amorim…
Para onde irão os urubus? Tão difícil trocar velhos hábitos. Senhor, em verdade te declaro – isto me preocupa toda a vez que aqui passo. Tu que advertiste: “Olhai as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, e o Pai celestial as alimenta…”, atenta, Senhor, para o amanhã deles, nestes dias de felicidade provisória. Para onde irão? Senhor, quem pensará no destino dos rimbaudianos urubus de “Carlos Chagas”?
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