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C A I S 

Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, ou erro pelos cais a que se atravam botes.

 

  O Livro de Cesário Verde, In O Sentimento de um ocidental.

 

ENTRE o cais Pharoux de um lado, com as barcas de Niterói e das ilhas, chegando e partindo, e do outro o Aeroporto Santos Dumont, com Douglas, Catalinas e Constellations trazendo e levando notoriedades, o Mercado fervilha de atividade.

    De manhã à noite, lanchas de pescadores (leiam-se os nomes pitorescos: “Sereia do Mar”, “Estrela Cadente”, “Princesa das Ondas”...) aliviam-se de pescado, aos cestos; largas faluas de bojo côncavo recebem caixotes, engradados, fardos, transportados até ali em caminhões; barcos a vela, primitivos, frágeis, vindos do sertão carioca ou de cidadezinhas fluminenses, descarregam cheirosos feixes de lenha, cachos de banana, abacaxis, abóboras, aves, todas as necessidades, todos os luxos da Metrópole.

    E os trabalhadores do mar, brancos, pretos, mulatos – um mosaico de raças – pés descalços ou em seus tamancos, reluzem de suor sob a canícula, entre ordens gritadas, chalaças, palavrões – quadro vivo da bíblica maldição  “comerás o pão com o suor de teu rosto”.

 

QUADRO vivo e completo. Nem lhe falta o contraste: os vagabundos: Os vagabundos. Curiosas criaturas. Aparecem e desaparecem, mas são sempre os mesmos.

    Há um mestiço espigado, de camisa listrada, encardida, culote verde-oliva, trazido do exército – falador, gabolas, este é o centro natural do grupo; há um crioulo baixote, luzidio, sempre em calção de banho, reminiscência da tanga que certo trabalharia com igual prazer; outro ainda, do mesmo tipo, talvez nem melhor nem pior que o primeiro, mas exibindo uma cicatriz, da orelha à boca, estigma que lhe dá ares terríveis de facínora; o sarará de trunfa eriçada, olhos agateados, a julgar pela maneira de falar, é das bandas do sul; e o adolescente louro, agigantado, caladão, algum Rimbaud obscuro…

     Que faz esta gente? Que faz?  Mas os vagabundos também trabalham. Não há que admirar; apenas o fazem a seu modo. Ora então fabricar puçás e pescar siri, porque não tem caráter aborrecido, porque não é humilhante nem rendoso, não se deve considerar ocupação séria?

    É um gosto vê-los preparar os siris. Gastam horas nisso. Quando a lata se enche, com dois paralelepípedos improvisam um fogão, põem-nos a cozinhar. De azul-arroxeados, os belos crustáceos vão-se tornando avermelhados. Um cheiro penetrante expande-se em redor. Questão de minutos, estão prontos. Com um arame retorcido em anzol pescam no líquido fervente, num gesto destro, os enormes siris, em cujas presas alongadas se oculta uma carne alva, que se desfaz entre os dentes… Não há como esta gente para preparar a original iguaria!

MAS quando desce a noite, o cais serena. Mal se adivinha a labuta que ali formigou. O Mercado cerrou as grades, fecharam as casas de negócio, e apenas as tabuletas luminosas – “Café dos Marítimos”, “Furna da Onça”, “Casa do Pescador” – ficam, lampadários votivos, a vermelhar de distância em distância.

        No mar, algumas lanchas. A maioria, ao cair da tarde, lá se fêz às ondas na rude tarefa que vai durar dias. E as quatro ou cinco que não partiram estão desertas, vigiadas por um velho que fuma no escuro, esperando pelo amanhecer. Os tripulantes andam em terra, com a família, a negócios, em busca de prazer. E os vagabundos? Os vagabundos, estes, perderam-se por aí, pelos morros, pelos becos, pelo bas-fond da cidade.

      Agora o aeroporto se ilumina para os raros aviões noturnos, as barcas da Cantareira espacejam o horário e atracam e desatracam leves, vazias. O espraiar da maré contra o cais, embate marulhoso e manso, é música sutil compassando a fuga das horas no silêncio. Do alto, senhora do céu, a lua distribui pinceladas de luz no quadro, pequena “marinha” noturna…

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