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R U A 

                  Oh ! sim, as ruas têm alma !

 

                    João do Rio, In A alma encantadora das ruas.

 

 

MANHÃ

"–QUITANDEIRO! Olha o quitandeiro !"  Oito. Radio tocando em qualquer parte. Valsa. Strauss? Deliciosa esta meia consciência entre lençóis, naufrágio em água morna. Deveres a cumprir, esperai. "-"Peixeiro ! Tem sardinha maromba, xerelete !" O gato do armazém vai esperá-lo, miando como um desesperado. Passos na varanda. É o carteiro. Atirou a correspondência pela fresta da porta, e lá se vai, sutil como um ladrão... O prazer de receber uma carta, pelo endereço adivinhar a mão que a escreveu, verificar o selo, que todavia não colecionaremos... E abri-la, desdobrar a alva folha, numa pausa de preparação do espírito para as notícias. Bom como um copo d'água em dia de calor. Na verdade a vida está cheia de insignificantes coisas saborosas, mas a nossa pressa ! Vivemos em acelerado; não vivemos, nevrosamo-nos na cidade. Claridade na veneziana. Levantar! Olha o café que te espera, fumarás após um cigarro...Os ônibus descem superlotados para a cidade. Vazios, têm outra realidade... Pelo rodar dos pneus contra o calçamento, pelo som das buzinas, deve fazer hoje um dia seco, luminoso, uma bonita manhã de verão...

 

TARDE

TRIUNFA o sol. O vento brinca nos ramos dos oitizeiros da rua, onde os pardais fazem bulha. Uma folha seca se desprende, sem ruídos. Aprendamos na folha que cai a geometria da queda. Esta varanda é a minha torre e o meu mirante. Daqui medito o mundo. Deixa lá o mundo ! "-Olha a laranja seleta e a boa tangerina !" Lá se vai o roceiro escanchado em seu burrico, não reparou em mim, senão vinha oferecer-me a fruta. Os pregões. Curiosos; são a voz da rua... Cada parte do dia tem os seus peculiares vendedores ambulantes. Natural que assim seja, atendem às necessidades de cada hora. Esta laranja seleta e esta boa tangerina (a magia das palavras: tangerina! o nome desta fruta evoca-me o seu cheiro capitoso, o cheiro não, o perfume...) não são uma oferta oportuna aos que estão à mesa, terminando o almoço? Quem se levantaria dela agora para atender à toada arrastada do vassoureiro? “– Vai vassouras! Vai espanadores!” ? É outra a sua hora; pela calma da sesta, à hora do “café”. Hora do “Garrafeiro! Compra garrafas vazias!” de sotaque luso; do “Chapeleiro! Sombrinhas, guarda-chuvas!”, do gringo prestanista: “– Colchas! cobertores! cama e mesa!”; do italiano, amolador de facas e tesouras, com o ruído do arco sobre a roda, som estrídulo, rascante, que fere o ouvido; hora do homem do periquito que tira a sorte, periquito intrujão, mas necessário para as almas simples; hora em que o rádio distante toca o “Bolero” de Ravel, lenta melodia, e monótona, círculos nascendo, minúsculos e crescendo, concêntricos, inumeráveis, e logo um após outro, um após outro longamente esvaecendo-se no ar, no ar emoliente da tarde…

 

NOITE

Por que há uma louca, sempre, gritando na hora vesperal? Que malfazeja influência exercerá o crepúsculo nas almas perturbadas? Haverá acaso um sol que se põe, como o nosso, no horizonte de seu território indevassável? Que mal me faz aos nervos o lamento dessa pobre mulher! Saio, vou à praça comprar jornais. O sino da matriz me surpreende no caminho. Como dói a vida! Não, não é este sino que me comove assim, mas o outro que me traz de longe a sua voz, da infância,  e não da vivida, mas da sonhada infância… Hora de movimento na praça; perco-me, por instantes, no seu burburinho. Há a um canto um preto-velho que em altos brados sucessivos oferece: “– Minduim torradinho e o bom gergelim!”, fazendo coro com outro preto, este moço, pulmão de aço: “– Picolé! Picolé! Creme, coco, abacaxi! Qual’é? Qual’é?  Este Qual’é? Qual’é? é a um tempo convite, ordem, ameaça, na boca de alvos dentes, que se escancara para a praça, para o bairro, para os astros. Nem todas as crianças grandes resistem à tentação – os petizes, estes, trocam sem vacilar os seus níqueis pela incomparável guloseima. Ó sábia idade! Agora, de volta, sentado na varanda com os vespertinos de garrafais manchetes mentirosas, sinto a tarde esvair-se. Um dia a menos, acervo de moedas de ouro que esbanjamos à maneira das crianças… À maneira das crianças ? Talvez menos avisadamente… Acenderam-se as lâmpadas da rua. Um a um, também, iluminam-se os interiores onde silhuetas familiares se movem, sombras chinesas. Não tardarão a ouvir-se infâncias, de roda, a cantar. A cantar:

 

Ciranda, cirandinha,

vamos todos cirandar!

Vamos dar a meia-volta,

volta e meia, vamos dar!

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