Xavier Placer
DOMINGO À TARDE
Como que, interrompida,
a correnteza da vida
fez neste ponto um remanso.
Vicente de Carvalho, In Poemas e Canções.
SENHOR, a melancolia de certos domingos à tarde, na minha rua! Cai um crepúsculo roxo no alto dos morros escalvados. Nem um bulir de ramo, chiar de cigarra ou asa no ar morto do fim do dia. Se ao menos chovesse... Rádios calados, janelas fechadas. E sobretudo a impassibilidade das fachadas, simétricas, incolores, verticais, absurdamente verticais na meia sombra... Certo, é a rua mais triste do universo. Nem sei que venho fazer aqui, à varanda, entre samambaias, com este meu esquivo ar de pássaro enxotado... Sou um fardo para mim próprio neste domingo abandonado.
PASSARAM na calçada do outro lado. Pendurada no braço dele. Já moraram no 45, meus vizinho. Conheço-os mais do que poderiam supor. É um apaixonado da mulher, adora-a. E queixa-se a toda a gente de sua frieza: "Lisette é tão distraída". Que imbecil o homem que ama... Provinciana, não saciada ainda do Rio, maravilhosa cidade que durante anos adivinhou através de revistas, ela adora shows e praia; o flirt tornou-se alimento vital para a sua natureza, e não quer filhos. Vão ao cinema. À saída do espetáculo entrarão na "Brasileira". Ela olhar-se-á todo o tempo ao espelho; calado, ele ingerirá um creme com ameixas e pedirá água gelada. Depois convencidos de que se divertiram, recolherão à casa. Felicidade conjugal.
É um abuso de ser loura... Ou não era Cacilda? Ela, sim. A filha do dr. Pereirinha. Vai ao footing na Praça. Como foge o tempo. Ontem ainda uma criança, eu a prepará-la para o exame de admissão, e já moça, mulher feita. Estou velho. Exagero chamá-la sardenta, mas esta pequena lembra-me o epigrama à "camélia melada" de Cesário Verde. Essa é uma camélia que diz de maneiras que, só se expressa em gíria, acha Stefan Zweig formidável com muitos r r, e estuda inglês no Berlitz por causa da pronúncia americana. Aniversário. Onde? Talvez de criança. Chegam-me vozes e acordeão:
Parabéns para você
nesta data querida...
Um vulto. Mais rápido do que a minha aborrecida curiosidade. Ruídos de areias pisadas, seus passos perdem-se ao longe. Deixou-me todavia o gesto de atirar fora o cigarro. Não me levantarei para ir ver. Que importa! A pequena ponta queimada ali ficou: volutas de fumaça alvacenta. Como sobem, serenas! De quando em quando, batidas pela aragem, ondulam lembrando esguias hastes de flor que se volatizassem. Se não a esmagar estúpida bota de novo passante distraído, vai arder até o fim, extinguir-se ali. Então poderei me levantar para ver de perto. Onde? Na asa do avião ou no tórax possante do super-homem que os meninos garatujaram, a carvão, pela manhã - uma minúscula mancha de cinza. Aquilo foi a ponta de cigarro. A pequena ponta queimada que o desconhecido atirou fora, depois de ter sorvido, como de um fruto diferente, a última possibilidade de prazer... Mas, além de mim, quem seria capaz de identificá-la? E isso enquanto a chuva não vem, porque depois a água lavará implacavelmente a calçada, apagará os desenhos dos meninos, levará tudo... Grosseira imagem; eis, porém, o que faz o Tempo conosco. Com os nossos afetos, com os nossos amores, e - oh dor! - com a nossa ambiciosa mocidade. Ai de nós, ai do nosso ardente, impossível sonho de Eternidade!
ESTOU insignificante, niilista, a alma do Marquês de Maricá meteu-se em mim esta tarde. E obtuso, espesso. Nem devia ter vindo para aqui. Para que enganar-me? Inútil este livro, Inútil qualquer tentativa de libertação. Quem disse que o espírito é livre? Espírito? Existe essa coisa? Túnel, escuridão, círculo vicioso. E a culpa é do dia - do dia, do lugar e da hora. Senhor, a melancolia sem fim destes domingos à tarde na minha rua. Certo, é a rua mais triste do universo.
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