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P E R C E V E J O S     E    H O M E N S

... Quién afirmaba que todo esto tenga argumento

y   que   la   naturaleza   se   proponga   algo  más

que derramar su potencia  creadora sobre el vacio

del tiempo?

 

                   Salvador  de  Madariaga,  In  Guia  del lector del

"Quijote".

 

MANHàde domingo. Eis-me, andando ao acaso, numa dessas praias que são o orgulho da terra carioca. Languidamente estirados na areia, ao sol, homens, mulheres e crianças. Quantos? Difícil contar. Sim, são muitos, são numerosos.

          Agora dizei-me: é lá possível passar de olhos fechados ou indiferentes ao espetáculo? Não, não me refiro à exaltação pagã de vida que se vê aqui. Porque afinal isto é apenas um aspecto da realidade. O lado da luz. Mas há o lado da sombra. Não entendeis? Uma coisa vos digo: aprofundai, aprofundai um pouco o olhar. Aliás, bem considerando, talvez só haja este. O lado da sombra... Já agora não tenho a menor dúvida: o outro é ilusão, só há o lado da sombra.

 

DESÇAMOS à areia. Ali está, sob a barraca elegante, aquele grupo. Possivelmente terão outros nomes, mas conjeturemos: Jorge, Suely, Mário, Regina...Contemplemo-lo. Que animais de raça, que correção de linhas nos seus corpos jovens! Que obscuro labor através de gerações para chegar a essas obras-primas! Vida é muita coisa, mas é sobretudo movimento. Belos e fortes, são criaturas organicamente ativas: Jorge orgulha-se de levantar pontes e abrir estradas, e planeja uma viagem de aperfeiçoamento aos Estados Unidos; Suely fala francês e castelhano, em breve dominará o inglês, e nas horas vagas sonha a glória do teatro; Mário, em três dimensões, só viaja de avião e fecha por telegrama negócios que lhe rendem milhares de cruzeiros, enquanto Regina, gorda e fiel, procria filhos que os continuarão...

          Dir-se-ia que estas criaturas são os verdadeiros donos da vida, feitas para durar mil anos. No entanto... Segunda-feira, dia aziago, vejo o rosto desesperado de Mário dentro de um quadrimotor, que no nevoeiro do aeroporto se precipita ao solo, cego e fatal. Terça-feira, nas páginas dos vespertinos, esta mesma Suely, que falava várias línguas vivas, sonhava a glória do teatro, sorri numa fotografia recente. É que por motivos íntimos, sem explicações maiores, Suely abriu o gás no apartamento, onde foi encontrada trinta horas depois. Quarta, feriado mundial do Trabalho, não haverá jornais. Mas quinta-feira, uma reportagem exclusiva de matutino informará que Jorge, "segundo acusações de pessoas da família da suicida, foi detido pela polícia como possível pivot do gesto tresloucado da indigitada Suely". E Regina? Desta certo nada se saberá, que as gordas Reginas jamais tiveram história...

          Jorge, Suely, Mário, Regina... E assim toda essa multidão que se aglomera na praia, aparentemente sem problemas, eufórica, feliz. E assim milhões, centenas de milhões. Na guerra, como carneiros para a carnificina; na paz, como cegos entre cegos, ao longo do tempo implacável...

          Pensar que em alguns anos, menos até do que eles próprios supõem, nenhum existirá! E pensar que nenhum deixará um traço da sua passagem. Um eleito, quem sabe, fará exceção. Quão breve será esquecido, por fim, esse escolhido! E por que existiram, para que existiram?

 

NATUREZA, ó Natureza! Como és pródiga e avara a um tempo. Os percevejos. Olhamos com sublime desdém para a ínfima criatura. Que diferença entre ela e o homem? "Reis da criação" na linguagem bíblica, que somos senão asquerosos bichos da terra a assolar com tenacidade a superfície de um universo que nos repele, esmagando-nos? Ó cárcere, ó mistério, ó monstruosidade! Quem perscrutará um dia os teus desígnios? Ou acaso não os tem? Ou acaso esta mesma consciência é ainda a suprema extravagância, a suprema enfermidade, a ilusão maior?

 

 

 

 

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