Xavier Placer
CORAÇÃO ENCOBERTO
MEUS SENHORES, vou falar! Sim, levantei-me esta manhã disposto a expor diante de vocês as minhas razões, e como podem ou não me dar atenção (aviso: é melhor mesmo que não dêem!), vou falar quanto me apetecer.
Já sei, estão curiosos para que entre no assunto, para que fale de uma vez o que pretendo. Talvez algum ironista impaciente: “Ora, que pode lá dizer de interessante um tal sujeito, deixemo-lo!”
Calma, senhores! Primeiro, nem eu próprio sei se chegarei a dizer-lhes alguma coisa, e talvez resolva calar; em segundo lugar, cumpre avançar por partes, pois sem método nada se alcança. Ah, o método, a lógica! Eis a causa da infelicidade humana – a falta de método, de regra nas ações. Que digo? A única, a verdadeira causa de erros e desgraça dos homens. Admiram-se de uma explicação tão simples? Discordam? Pois olhem, há muito que estou convencido dessa verdade. Mais: nem tenho vivido senão para cada vez mais me convencer dela. Mas eu já sabia, eu já sabia. Os homens são umas eternas crianças, ainda que não tenho o direito de o ser. Ah, como precisam apanhar para aprender! Riem-se? Podem fazê-lo à vontade. Só peço uma coisa: não vão julgar que pretendo dar-lhes uma lição de moral, hein! Bem me importa a desgraça dos outros. Vêem? Não procuro lisonjear ninguém para me fazer ouvir. Ora, já agora sou franco: não estou falando senão para mim próprio, ouviram? Como um caracol, vou arrastar-me por sobre as pedras, tomar um pouco de sol… E vão todos para o diabo, desprezo-os!
***
Quem sou eu? Apresento-me: Aguinaldo Cerqueira Leão, não tenho família, vivo de rendimentos e desfruto uma saúde que talvez me leve aos oitenta ou mais… Feio? Feio, mas simpático? Como se me importasse a impressão que desperto nos outros. Em duas palavras, sou alto (não muito), e magro; alguns idiotas dão-me cinquenta anos, outros apenas trinta e oito. Nem uns nem outros têm razão; ando pelos quarenta e cinco. Fisicamente o único detalhe significativo em mim são os olhos. Tenho-os miúdos, bem enterrados nas órbitas e já ouvir dizer deles que “parecem furar a pessoa feito dois punhais”. Evidentemente a observação é lisonjeira; entretanto, para ser exato, devo confessar esta outra: “olhos de coruja”.
Há cinco para seis anos que levo esta vida. Já era tempo, e foi o que desejei anos a fio -- tranquilidade e solidão. Antes fui tudo. Órfão de pais muito cedo, aos treze anos fugi da casa da bruxa que se dizia minha madrinha e que me espancava todos os dias, sistematicamente. Vim para o Rio (nasci num lugarejo de Minas), empregando-me depois de algumas semanas de fome numa farmácia no Méier; fui sucessivamente boy de escritório, entregador de marmitas, garçom de bar, soldado, guardião durante três anos num ginásio (onde aprendi o pouco que sei), e por último taifeiro da Marinha Mercante. Corri mundo, fui preso por engano numa casa de mulheres em Liverpool, por causa de uma gorjeta de cinco cents, agredi um português em São Francisco na Califórnia, enfim ganhei alguns cobres em contrabando e, aos trinta anos, resolvi meter-me no comércio. Veio a revolução de 30, tornei-me fornecedor do governo revolucionário, enriqueci, e eis-me independente mais cedo do que esperava. Abandonei então os negócios e vim morar nesta casa que me veio às mãos de uma hipoteca. Entre outras vantagens, esta casa tem a de ficar inteiramente isolada. Só mesmo nesta pequena ilha de N… podia ter arranjado moradia em tais condições. Até durante o dia o silêncio é completo; os únicos ruídos são os dos carros dos turistas passando na estrada nova e o marulhar das ondas, sobretudo à hora da ressaca, arrebentando-se contra as pedras da margem – mas esses, pela força do hábito, já não me chegam aos ouvidos. Comigo tenho um preto velho, Inocêncio, meu antigo empregado que me faz tudo, inclusive companhia às noites: dócil como um animal doméstico, acocora-se a um canto a tirar pequenas tragadas de seu pito de barro enquanto eu leio os jornais.
Acham triste uma vida como esta, não? Pois olhem, não invejo ninguém. Não é por amor próprio, não quero outra. Olho para trás, para todos esses anos vividos e não me arrependo de nada. Tivesse de recomeçar, faria exatamente o que fiz. Querem saber de uma coisa? Vocês têm saudades da infância, referem-se com tristeza a essa fase longínqua da vida, não é? Os doces anos da inocência, o paraíso perdido e… o resto! Pois olhem, não tenho absolutamente saudade da minha; acho tudo isso, ao contrário, sentimentalismo. Doces anos de inocência! Que inocência, hipócritas? Vocês têm saudades é da irresponsabilidade desse período, seus covardes!... A infância, ouso atirar à cara de todos vocês, a infância é um período horrível: primeiro, as doenças próprias da idade; em segundo lugar a dependência: “– Mamãe, deixa fazer isto? Papai, deixa ir ali?” E a inocência! Olhem, foi na infância que eu aprendi e cometi as mais sórdidas práticas da minha vida. Dirão que estou falando por conta própria, da minha infância, e não da infância. Filisteus, fechem os olhos e leiam com sinceridade dentro de vocês mesmos! “Mas a vida não é apenas a infância… E a mocidade, o amor, o primeiro amor?” Ora, vão para o diabo com essas coisas! Quanto à mocidade, não a tive, e quanto… ao amor, a isso que vocês chamam amor, é uma coisa bem estúpida. Estúpida, sim senhores. Estupidissima! Pelo menos por causa das mulheres, da sua mesquinhez e puro interesse. Não sorriam, pois falo por experiência. Não os importunarei, serei breve, ouçam-me! Foi assim: eu andava pelos vinte e um anos e fazia o serviço militar. às tardes, depois do rancho, costuma sair a espairecer pelos subúrbios. Ora, num desses passeios, sonhei casualmente uma pequena num mafuá. Lembro bem: era baixa, morena, tipo de caboclinha, cabelos negros e lisos, caídos sobre os ombros. Estava com outra, uma meninota ruça, feíssima. Aproximei-me, entramos em conversa, ofereci-lhes sorvetes, que aceitaram. Como se fizesse hora, acompanhei-a até o portão de casa, separamo-nos namorados. Em três meses – era um criançola – estava caído por ela e propus-lhe casamento; concordou, disse-me que fosse pedi-la aos pais. Gente pobre, acolheram de boa sombra o pedido, combinou-se que ao dar baixa do serviço militar arranjaria um emprego (que aliás já me haviam prometido), e nos casaríamos. Mas… mais uma semana depois tudo acabou. Foi o caso que ela… Até me envergonho de mexer nestas ridicularias. Tudo por causa de… imaginem: um gato! A história vinha de longe; como no início de nosso namoro ela tivesse dito, gracejando, que meus olhos se pareciam com o do gato… É verdade, esqueci de dizer-lhes antes que namorávamos quase sempre na varanda, ela com o bicho no colo, um pequeno gato branco, cofiando-lhe docemente o pelo macio. Pois bem, zanguei-me, discutimos; todavia a coisa passou, ou antes, julguei que havia passado, quando a verdade é que uma surda aversão ao bicho foi se criando em mim. Ora, oito dias depois do nosso noivado, acontece que ela se lembra de repetir a brincadeira. Num gesto brusco, apanhei-lhe do colo o animal e varejei-o escada abaixo. “– Ah, coitado! Que lhe fez o pobrezinho?” Tinha gênio; pondo-se de pé em minha frente vi que suas narinas fremiam, o olhar faiscava-lhe. Estava em jogo o meu amor próprio. “– Olhe”, falei, “não quero mais vê-lo, trate de se desfazer urgentemente dele, ouviu?” “– Desfazer-me? Pois sim! Hei de levá-lo comigo, case-me seja lá com quem for!” “– Nunca!” “– Veremos!” Separamo-nos arrufados nesse dia. Faltei duas noites de propósito; na terceira apareci e a primeira coisa que fiz foi perguntar-lhe pela decisão. “– Que decisão?” perguntou com naturalidade. Compreendi que representava e fui sem rodeios ao assunto: “– Bem, vim hoje aqui justamente para você escolher – eu ou…” Ignoro o motivo, tive pudor de falar a palavra “gato” no momento. Ela baixou a cabeça, pensativa. “– Mas será possível!” exclamou passados alguns instantes. “– Bem, é fácil, a solução está em suas mãos”. Ela não chegou a confessar que preferia o animal a mim, mas seu obstinado silêncio, mais eloquente que uma resposta, feriu-me. Então, resumindo, disse-lhe meia dúzia de desaforos e saí. Nunca mais a vi. O quê? Pensam que estou arrependido, depois de tantos anos? Absolutamente, era o que ela merecia. Boa mulher me ia sair dali! E antes assim, imaginem se me tivesse casado. Hoje estaria reduzido à condição de um pobre diabo, carregado de filhos e obrigações. Mão, antes assim, repito. Esta primeira experiência foi decisiva; curou-me de qualquer nova veleidade para com o tal sexo frágil. Nunca mais namorei, nunca mais me aproximei, pelo sentimento, de mulher alguma. Mulheres! Hoje estou convencido de que não valem nada, são todas uma só coisa…
Talvez imaginem que, nesse caso, busquei uma compensação… na amizade, por exemplo. De fato, pensei em fazer alguns amigos, mas… Amizade! Eis aqui outra ilusão. Ouçam: tive três amigos, e a todos três levou-os o diabo. O primeiro julgava-me pai dele, fazendo-me constantes pedidos de dinheiro, que não saldava. É claro, mandei-o passear. O segundo não se dava a esse trabalho, roubava-me descaradamente. Quanto ao terceiro… Bem, uma história mais complicada que a dos dois primeiros, mas que não vem ao caso e dá no mesmo. Estão vendo? Vá uma pessoa confiar nos outros! Senhores, preguiça, muito sexo e desordem -- eis a vida! Exagero? Olhem em roda de vocês e digam-me. Quem é que quer se esforçar, trabalhar em silêncio no seu canto? Todos se sentem com vocação é para mandar, para vir gritar no meio da rua. Perdeu-se o sentido da dignidade, da diferença, não há mais hierarquia, não há mais nada. Dirão talvez que estou sendo injusto, que não tenho imaginação, baseando-me apenas na estrita realidade para julgar… Senhores, não julgo nem estou generalizando, constato fatos, nada mais; por outro lado, aliás, como chegar a um conceito sobre as coisas senão pelos seus frutos? Ah, o método, a disciplina! Se cada um se esforçasse por resolver o seu caso, cumprindo retamente, conscientemente, os seus deveres! No fim a sociedade inteira estaria automaticamente reformada! Mas não. E ainda vêem os sabidos, com a lábia da Fraternidade, Justiça, e não sei que outras maiúsculas… Ah, ah, ah, Amor por atacado, como me divirto! Meus senhores, ouçam a palavra de um homem, inculto embora, mas que tem a pretensão de saber onde tem o nariz: a humanidade não precisa de amor. De que precisa? Não sabem, deveras? Eu não digo, são todos uns… Os homens precisam é de apanhar, ouviram? Apanhar muito e de rijo para tirar a preguiça do corpo – eis a solução. Tenho dito!
Senhores, duas palavras ainda! Ora, eis-me aqui de dedo em riste, ridículo como um camelô, exibindo-me diante de vocês… Por que? Para que? Com efeito, eu próprio me surpreendo. Que se teria passado comigo esta noite para amanhecer hoje tão loquaz – eu que sempre tive náuseas, verdadeiras náuseas, dos faladores? Um demônio de tantos anos para vir agora – bonito epílogo! – desmandar-me em gestos e palavras diante de vocês! Ah, mas ainda não compreenderam? Não? Será preciso que lhes diga, realmente? Como, deixam-se estar aí a fitar-me em silêncio? Respondam vamos! Nada? Pois então ouçam, ouçam: NÃO ACREDITEM NUMA SÓ PALAVRA DO QUE LHES FALEI! Não, não me refiro aos fatos, esses são verdadeiros; refiro-me às minhas ideias, aos meus sentimentos. Oh, como sinto opresso o coração, quero acabar com isto! Vejam, senhores, fitem-me bem os olhos. Estão úmidos, não é? Sim, são lágrimas! E garanto-lhes que se não são lágrimas de amor, também não são de ódio. Ah, se meu coração transborda de fel, a culpa é da vida. Foi a vida, a minha miserável vida que me transformou neste monstro. Nem é no coração que está o fel, compreendem? é na cabeça, é na inteligência. Medito em meu passado, considero minha inútil, minha perdida vida, procurando explicar a causa do fracasso, e… Como me pesa esta solidão, sobretudo quando chega a noite! Houve um tempo, no começo, que ainda tentei ocupar-me em passatempos caseiros. Refiz o jardim de entrada, dediquei-me à criação de aves… Mas não, não era aquilo o que eu queria, para que iludir-me? Esta absoluta falta de sentido, de um sentido mais alto, de minha vida. Se me tivesse casado, hoje teria a meu lado uma companheira que as lutas e sofrimentos em comum, através dos anos… Certo teria filhos. Ah como gostaria de ter uma filha! Ouvi-la chamar-me de pai, dar-lhe dinheiro para vestidos, vê-la fazer as loucuras que não fiz, que não pude fazer! Exteriormente possuir tudo, nada ter interiormente! Antes me faltasse, antes nada possuísse, talvez conseguisse viver, ou pelo menos agitar-me, como antigamente, e ter essa ilusão. Não, não tenho o sentimento de posse, ao contrário, é com desgosto que vejo meu capital crescer de ano para ano. Sozinho. Sozinho! Pensar que não me fiz querer de ninguém! Como é terrível isto! Perdi a partida que não se joga senão uma vez. Com que clareza, com que simplicidade compreendo tudo! Compreendo – há seis meses que não faço outra coisa – mas nem por isso me sinto menos desgraçado. No entanto, sinto que apesar de tudo há ainda alguma coisa intacta no meu coração. Sim. há uma região, uma pequena região ainda virgem. Creiam-me, a inteligência é que se perverteu, a inteligência é que se endureceu desta maneira. E é aí que reside a causa da minha miséria. Oh, venham em meu auxílio, venham todos! Levem tudo, tudo que possuo, mas deixem-me por fim um sentimento de fraternidade! Não saber perdoar, não saber esquecer – eis o meu erro! Quem foi que definiu o inferno como “o castigo de não mais poder amar?” Sim, é isso o inferno, senhores, é isso, meus irmãos, o inferno! E nele vivo, e nele estou condenado a viver até o fim de meus dias… É doloroso este pensamento. Se ao menos tivesse força para acabar comigo! Mas até isso a vida me nega, até isso! Que será então de mim, que será?
Como? Que ouvi? Quem se riu desta minha efusão? Quem foi aí que me chamou de velho ridículo e sentimental? Não procurem negar, alguém zombou de mim, uma risadinha perversa me chegou aos ouvidos. Quem foi? Que se apresente, vamos, quero perdoar-lhe! Bem, não respondem, não é? São assim mesmo os homens, eu os conheço, mas não fazem mossa. Não fazem, ouviram? Quem são vocês para me ofenderem? Ainda estão para existir as setas capazes de atingir-me, fiquem sabendo! Pensam acaso que me dou ao trabalho de odiá-los? Essa é boa, desprezo-os, desprezo-os a todos, ouviram? Não me arrependo – eu nunca me arrependi de nada – do que falei, não estava senão me divertindo à custa da ingênua estupidez de todos vocês – eis a verdade. Ah, ah, ah!... E agora, como preveni de início, agora que tomei meu sol matinal, recolho satisfeito e feliz ao meu caramujo. Fora, fora, peçonhentos animais de rebanho! Ah, ah, ah!...
– Inocêncio, ó estúpido, traga meu café! E a garrafa de aguardente!
Pag
12/14
