Xavier Placer
Para Lúcio Cardoso.
O SOLDADO
ERA mais alto que baixo, tinha o rosto comprido sombreado por uma barba azulada, e nos olhos, acinzentados, havia uma fria expressão de audácia subjugada.
Vi-o pela primeira vez no dia em que me apresentei ao quartel. encontrava-se de serviço na Casa das Ordens e foi ele que me levou à presença do comandante da companhia em que devia servir.
Como o brigada o chamasse, ordenando-lhe que “conduzisse aquele paisano à 4.ª”, perfilou-se com presteza, tomou o papel que lhe era estendido, e voltando-se vivamente para mim:
“– Vamos !”
Saímos, ele a largos passos nervosos, eu esforçando-me para acompanhá-lo lado a lado, observando-o de soslaio. Por que tanta pressa, meu Deus ? Mas não ousei adverti-lo, nem ele parecia disposto a dar comigo outra palavra além daquele lacônico: “Vamos !”
Nem por isso o achei menos simpático; ao contrário, aqueles modos, sua reserva, a consciência de sua superioridade ou o que quer que fosse, sobre o meio, que ele sem afetação, mas também sem timidez, deixava transparecer, pareceram-me (e com o tempo pude ver que o era), uma exceção, e disse comigo: “Está aqui um sujeito que é preciso não perder de vista”.
Atravessávamos agora o pátio do regimento; à esquerda, entre touceiras de bambu – era após o rancho – soldados conversavam na sombra. Ao verem-nos, chamando-me desdenhosamente de recruta, um deles gritou-me se eu não tinha um cigarro. Voltei-me; todavia antes que pudesse responder qualquer coisa, ouvi-o observar-me com aspereza: “– Deixe lá, esse tipo não merece senão um olhar de desprezo!”
Sem dúvida que em outra pessoa que fosse esta frase me teria surpreendido, deixado uma péssima ideia de quem a pronunciasse; nele, porém, achei-a natural: dir-se-ia, tal a sua maneira de ser, que tinha o direito de falar assim…
Então prevendo que não me ia sair muito bem, contudo animado por suas palavras, indaguei-lhe: “– Você também é da 4ª Companhia ?” Ele não olhou para mim: “– Não, da Cia. Extra”. Ah! E é daqui? “De Macaé”. “– Está terminando o tempo; vai ser licenciado agora, não?” Ele me fixou rapidamente, mas não sem uma dura expressão de desagrado: “– Mas é um interrogatório ?”.
Não trocamos mais palavras – e tive no primeiro instante, o sentimento de lhe haver dado a impressão de um ingênuo impertinente, de uma lamentável criatura como o outro do cigarro, “que não merecia senão um olhar de desprezo”.
Digo: no primeiro instante, porque depois que me apresentou ao capitão, passou-se entre nós um pequeno incidente que me levou a mudar de ideia. Com efeito, não podia ser apenas curiosidade; ou ainda que sim, já era uma denúncia involuntária, significativa.
Foi simples. Mal se afastou, voltei-me para observá-lo pelas costas. Um movimento cem vezes ensaiado não teria sido tão perfeito! Pois no mesmo momento ele ele teve igual gesto, e foi-nos impossível disfarçar: encaramo-nos com espanto, um sorriso desconcertante de parte a parte. Tempos depois, quando a vida em comum nos aproximou, nunca tocamos nesse pequeno incidente, como se tal coisa não houvesse acontecido, porém mais de uma vez estive a ponto recordá-lo, perguntando-lhe o que havia pensado naquela ocasião, (e por duas vezes em nossas conversas notei que ele se referia indiretamente àquilo, esperando ver o que eu diria), mas talvez porque no fundo as relações entre nós eram penosas, não chegando jamais à verdadeira intimidade, silenciávamos.
Mas não antecipemos. Iniciei-me na vida de caserna com seus toques de corneta nas madrugadas frias, as últimas estrelas brilhando ainda no retângulo das janelas como um convite mais ao aconchego da manta que ao calção de física; depois das infindas instruções de ordem unida sob o sol implacável e as torturantes botas de tachas, e mais os combates simulados, e as marchas noturnas e as longas horas de plantão… Já ia em três meses. E à medida que o tempo passava, vim a saber o que me interessava a seu respeito. Seu número de praça 715 (exatamente como o tratavam), chamava-se Dilermando Correia e era voluntário, devendo por isso tirar ainda um ano de serviço. Mais: com dois meses de praça havia desertado, num dia de formatura geral, depois de atirar ao mato o fuzil, que um oficial recolheu com solicitude ao regimento. Como se nada houvesse feito, oito dias depois apresentou-se no quartel à hora comum do expediente. Admiração dos companheiros, perguntas, curiosidade. “– O 715 está aí! O 715 está aí!” A frase transmitida boca em boca, chegou aos ouvidos do sargenteante, que se apressou a levá-lo ao comandante da companhia. O capitão, homem impulsivo, pôs tudo a perder. Estava examinando o programa de instrução do dia; ao vê-lo, suspendeu prontamente o trabalho, e pondo-se aos gritos, perguntou-lhe “se era capaz de avaliar a extensão do crime que cometera”, onde andara, por que fizera aquilo. Ameaçou-o com um conselho de guerra. Dilermando não deu palavra. Então, dominando-se a custo, o capitão mandou recolhê-lo imediatamente ao xadrez. E como era homem criterioso nas suas horas de reflexão, achou de melhor aviso não levar adiante o incidente: puniu-o somente com quarenta e cinco dias de reclusão em cela separada. Por que havia desertado ? Por que se apresentara ? Mas Dilermando nunca se explicara, e a maioria tomou-o dali em diante em conta de doido; alguns achavam-no um sujeito perigoso, outros eram de opinião que não passava de um “boa vida”.
Ora, um domingo em que estava de serviço, meti-me na cabeça tentar uma aproximação com Dilermando e desvendar de uma vez o seu mistério. Encaminhei-me para a Extra; o alojamento estava vazio, apenas um cabo se barbeava num espelho à parede, enquanto ele, (haviam-me informado de que só às noites saía à rua), recostado numa cama ao fundo, segurava uma brochura diante dos olhos. Procurei chamar a atenção, pisando forte, porém ele não deu a menor demonstração de haver notado minha chegada. Que leria ? Passei junto a sua cama: “MORRO… Tornei a voltar, e pude ver claramente: “MORRO DOS VENTOS UIVANTES”, Emily Brontë.
O meu interesse tornou-se ainda mais forte, pois não me haviam dito que ele tinha o hábito de ler, e ainda que fosse natural tê-lo previsto, eu não pensara nisto, surpreendendo-me sobretudo a qualidade de suas leituras. Curioso. Quem sabe se também não escrevia ? Nesse caso, que coisas singulares havia de fazer! Julgo ocioso dizer que não foi dessa vez ainda que nos aproximamos…
Estávamos nisto, ou melhor, estava eu nisto, pois de sua parte não havia nada, quando uma tarde o boletim deu a transferência dele para a minha companhia. É que tinha o curso de transmissão – depois confessou-me que o haviam matriculado nele contra a sua vontade – e os “especialistas” da Extra haviam sido todos requisitados pelos batalhões, agora que ia começar o período de acampamentos.
Veio o primeiro, de uma semana, e foi aí que um simples acaso nos aproximou. Exausto da marcha, o batalhão acabava de chegar, espraiando-se pelo terreno em que devia acampar. Era à tarde, a força do sol ia diminuindo; os mais ativos deram-se pressa em pôr mãos à obra, aos poucos a atividade fez-se geral. Nas barracas, nós nos alojávamos dois a dois; como estivesse só e o reparasse sentado na mochila a observar aquela azáfama com indiferença, convidei-o para companheiro.
Aceitou com um gesto de cabeça. E em silêncio passamos o primeiro e o segundos dias. À noite, enquanto no acampamento os soldados organizavam cantorias em torno de fogueiras, eu, na barraca, acendia uma vela e abria o meu compêndio de Direito (cursava nesse tempo a Faculdade). ao passo que ele, estirado na sua cama de sapé, imóvel, deixava-se estar pensativo e distante…
Uma tarde, como deixasse à vista, de propósito, o meu compêndio de Direito, surpreendi-o a folheá-lo. Desculpou-se, murmurando que “estava apenas vendo uma coisa”, e largou-o. Ofereci-lho. “– Obrigado, esse gênero não me interessa”, fez ele, não sem uma ponta de ironia.
Mas daí em diante, estabeleceu-se maior contato entre nós, uma certa intimidade, ainda que de superfície, foi-se criando à força das circunstâncias. Conversando sobre livros, pude ver que era mais informado ainda do que eu supusera, apenas os seus conhecimentos literários eram feitos exclusivamente no sentido de seu temperamento. Quero dizer, eram deformados por ele, ignorando e fazendo questão de ignorar os autores que não tinham afinidade com seu espírito. Com que profundo desdém se referiu a “toda essa enxurrada de modernos romances populistas!” Em contraste, o seu entusiasmo a propósito de Dostoiévski e Poe! Chegou a sentar-se, voltando para mim, numa fala nervosa e incontida.
Aproveitei a ocasião para perguntar-lhe se não escrevia. Diminuindo o tom, respondeu-me que de fato há muito pensava nisso, porém que jamais o fizera. Adivinhei-lhe uma evasiva na resposta, e disse-lhe francamente que sentia que não falava a verdade. Temi que se suscetibilizasse, mas não, sorriu com bonomia. Realmente, confessou-me, tinha muita coisa na cabeça, que em tempos tentara levar ao papel, contudo não conseguira nada, pelo menos que o satisfizesse. Aliás, para que escrever ? Interessante era forjar os enredos, perder-se sem outras preocupações pelos caminhos da imaginação, muitas vezes até tocar os limites extremos da alucinação e da loucura. Não julgasse por isso que era um demente; (e fitou-me desconfiado), a loucura a que se referia não era a que leva a hospícios, mas “longo, imenso e consciente desregramento de todos os sentidos”, como dissera certo grande poeta.
Tudo aquilo era para mim uma verdadeira revelação. Não mais abri meu compêndio de Direito, estimulava-o sem cessar com sugestões, e quantas noites, horas e horas depois de haver tocado o silêncio geral, não ficamos conversando em voz baixa, à frouxa claridade de um coto de vela! Ah, as suas histórias de destinos falhados, feroz ou melancolicamente solitários; fantásticos noivados; mortes de mulheres belíssimas e amadas; vidas destruídas pelo orgulho de uma palavra; vinganças; ódios recalcados entre parentes, esposos! Com que implacável lógica no entanto conduzia os seus enredos, nunca sentimentais, estranha mistura de observação, poesia e verdade.
***
Enfim, voltamos para o quartel; os meses foram-se passando, por duas vezes estivemos separados, doentes no hospital em épocas desencontradas, – chegou afinal o dia do licenciamento. E despedimo-nos, não digo amigos, pois era próprio de sua natureza não se ligar às pessoas, porém com muita simpatia. Fui levá-lo à estação na madrugada de seu embarque para Macaé, e conversando pela última vez, prometemos que nos corresponderíamos. Mas ainda que eu o fizesse, não obtive resposta, nunca mais o vi nem tive notícias suas.
Todavia, evocando meu tempo de quartel, vejo que não é senão em torno dele que ficaram em mim as superficiais e frágeis impressões daquele meio – foi a única impressão realmente viva, profunda, indelével.
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