Xavier Placer
A Ledo Ivo.
RETRATO DA MOÇA DE VERDE
" Beleza é Verdade, Verdade é Beleza",
– eis tudo o que sabeis sobre a terra,
e tudo o que importa saber".
JOHN KEATS, Ode a uma urna grega.
-A ARTE é intuição e o artista um visionário, afirmou cheio de convicção um dos rapazes.
Eram sete, todos artistas ou amadores, e naquele domingo encontravam-se reunidos em casa de um amigo comum. Já se havia falado sobre os mais diferentes assuntos, quando a conversação descambou para este ponto.
– Que intuição nem visionário, velho lugar-comum romântico! replicou-lhe outro, não sem menor convicção. Arte é consciência e todo artista um lógico.
O tema realmente era de seduzir; a conversação, que ia morrendo, animou-se subitamente, dali a um instante tranformara-se em apaixonado debate. E acabaram formando-se dois grupos: três eram pela intuição, três outros pela consciência, em arte. Um deles – precisamente o sétimo, um pintor – que se deixara estar ouvindo em silêncio, notou essa simetria, chamando a atenção para ela.
– Pois sim, mas você, qual a sua opinião? perguntou-lhe um dos partidários da intuição.
– Nenhuma.
– Nenhuma? Então por que caminhos chegou a pintar o seu último quadro, aquele singular “Retrato da moça de verde”? objetou-lhe um lógico.
Apesar de moços, ou talvez por isso, e inteligentes, não havia entre eles lugar para a ironia; e se o interrogado teve aqui um sorriso, é de crer que fosse apenas por achar ociosas aquelas indagações de caráter abstrato. Com efeito, repetiu, se fora guiado pela intuição ou pela inteligência na realização daquele retrato em que, apesar de “cortado” pelo júri oficial, boa parte da crítica e os amigos haviam identificado uma obra prima, ignorava-o. De resto aquele trabalho, fonte de intensa alegria para ele durante a criação, já agora não o satisfazia. Ao contrário, em certos momentos sentia horror (frisou a palavra), um profundo horror dele. Se tivesse de o refazer… Curioso, reparava agora uma coisa que lhe havia passado por despercebido: seria capaz de reconstituir sem esforço, não só o conjunto, mas ainda cada detalhe do movimento gradual de execução. Era verdade que aquilo em nada, ou talvez em muito pouco, poderia interessar aos outros, nem vinham ao caso…
– Absolutamente, interromperam-no dois ou três a um tempo, interessa e muito.
– Pois bem, continuo depois de uma pausa, se é assim,,, Ou antes, deixem-me começar pelo princípio. Ia em três meses, senão mais, que em verdade não fazia nada. Não quer dizer que não o tentasse, pois nada de uma semana sem fazer coisa alguma (de onde me convenci da origem em última análise não-intelectual da criação), é o bastante para me levar a um verdadeiro estado de angústia. Tentava-o, mas não conseguia nada. Iam-se os dias passando nesta luta, quando certa vez, voltando ao amanhecer para casa, e mais do que nunca desgostoso por ter de assistir à fuga sem remédio de tantas horas, considerando com amarga resignação que era preciso aprender a perdê-las, pois que nem todas nos pertencem, acabei concluindo que no fundo talvez não se tratasse de nada disso, mas da minha falta de vontade para a arte. Não era a primeira vez que esta ideia me possuía, nunca porém eu a sentira com tão aguda e dolorosa consciência. Sim, a minha falta de vocação, eis tudo. Por que tentava iludir-me? Impossível que numa verdadeira vocação se passassem aquelas lutas. Quanto tempo para compreender coisa tão simples! Em todo caso ainda era tempo, e era preciso ser forte e reagir.
A rua, escassamente iluminada, estava deserta, e os meus passos sobre a calçada, traziam-me por contraste o silêncio. Caminhava absorvido por essas ideias, já agora abandonado a uma quase aceitação do irremediável, quando ao passar pelo portão de uma residência levantada ao fundo de um jardim arborizado, senti um suave perfume de flores noturnas. O cheiro das flores, inesperado e ativo, uma estrela que vi riscar o céu, o misterioso silêncio das coisas adormecidas, agravado tudo isto pelo meu estado de espírito no momento, acabaram por me comover. Que vida a minha pensei. Não, era preciso reagir antes que fosse tarde, antes que fosse tarde demais! E uma vez que não tinha, como acabava de reconhecer, vocação para a arte, tentar ao menos… Sim, restava-me o outro lado da partida, restava-me o amor. O amor, murmurei cheio de uma vaga, ainda que secreta esperança. Quem sabe se não era exatamente a minha inexperiência dele que me fazia um incapaz? Quem sabe se junto a uma mulher a quem eu amasse e por quem fosse correspondido, os meus sentidos e o meu espírito não despertariam para novas e desconhecidas percepções? Deixem passar em silêncio, pela franqueza com que o confesso, este profundo egoísmo, ou levem-no em conta de feição natural de artista… Aliás era bastante confuso o que eu então sentia, não menos claro o que pensava; foi, lembro-me com a imaginação em fogo que entrava dali a pouco em casa. Corri à estante à procura da minha Bíblia; precisava (onde mais uma vez compreendi o quanto a arte, em certo sentido, é útil) precisava ler o “Cântico dos Cânticos”. Mergulhei na leitura, e já em meio, quando de repente atirei o livro para um lado e pus-me a desenhar, em uma tela em branco que deixo sempre no cavalete, os mais extravagantes e loucos motivos. Passavam-me tão rápidos e intensos pela cabeça que eu mal tinha tempo de os fixar… O carvão esfarelava-se em minhas mãos, eu riscava cabeças de mulher, qualquer coisa que tanto podia ser uma flor como um instrumento, apagava tudo, e recomeçava e tornava a apagar e a recomeçar, furiosamente. Que buscava com aquilo? Ao afastar a tela, para ver, desgostei-me e exausto, o espírito mais serenado, fui deitar-me.
Acordei tarde no dia seguinte, mas não sem uma ideia. Como até ali não me havia sentido com forças para tentar a “figura”, limitara-me à “paisagem” e à “natureza morta”. Concluí que havia chegado o momento para ir mais longe, que talvez fosse até menos infeliz no novo gênero, ainda que mais difícil, se assim se pode falar a respeito da arte e artista, e decidi-me. Experimentaria um auto-retrato. Mas antes de dar início a qualquer coisa abandonei essa ideia, ou melhor, troquei por outra: faria um retrato de moça. Que não deixaria afinal de ser um auto-retrato, apenas mais sutil, indireto.
Não tive mais um momento de tranquilidade: a ideia de um retrato de moça possuiu-me, absorveu-me. Uma dificuldade material, porém, veio se interpor. Habituado à pintura ao ar livre e com modelo, precisava que alguém posasse para o retrato. Mas o entusiasmo que me dominava era grande demais para se deixar vencer por obstáculos, sobretudo materiais. Remediei a dificuldade como pude. Talvez pareça ridículo, mas se disser que durante dias saía todas as tardes à rua exclusivamente para procurar modelos, estarei apenas sendo verdadeiro. Sentava-me num café e, lápis na mão, ia colhendo detalhes de mulheres que entravam e saíam. Afinal, de posse de todos os dados que julguei necessários, deixei-me ficar em casa, pondo mãos à obra, cheio de confiança e num entusiasmo sem igual.
Tempo perdido! Sim, dois dias malbaratados. Ao cabo, que via diante de mim senão uma servil, servil e anti-artística reprodução da realidade? Contudo serviu para compreender a estreiteza de toda a minha pintura até então e, desesperado, destruí os trabalhos que tinha à mão. Não, não era aquilo o que eu queria! Foi então que uma ideia me surgiu, empolgando-me, exaltando-me durante dias e dias. Era todo um caminho que se abria a meu espírito. Lembro-me de que, a princípio, a coisa se apresentava assim, pictoricamente: o excesso de luz destrói a cor, que é o caráter das coisas; depois a exterioridade das coisas só serve para esconder a sua própria verdade; e por fim, ainda que à primeira vista parecesse paradoxal, para ver a realidade é preciso fechar os olhos.
Encontrava-me, neste momento na rua, e era ao entardecer; dei-me pressa em voltar para casa, começando imediatamente um retrato de moça. E recordo que, procurando dentro de mim os elementos de criação que antes não encontrara, embaraçado pelo preconceito de realidade, a primeira lembrança que me aflorou ao espírito foi a de uma figura de moça entrevista em viagem de minha adolescência. Eu ia de trem de São Paulo para Curitiba, e viajava sozinho havia umas vinte e duas horas. Cansado e aborrecido, vinha ora lendo, ora adormecendo sobre as revistas que comprava nas estações. Com indiferença, deixava-me agora estar olhando para o que se passava no vagão, ou pelas vidraças contemplava a paisagem, onde de espaço a espaço, numa constância quase previsível, renques de pinheiros se enfileiravam numa monótona continuidade. Era tarde, no inverno, e uma chuva miúda salpicava os vidros com pequenas gotas de água. De repente fez-se treva durante alguns segundos: o trem atravessava um túnel. Afinal de novo a claridade brilhou e, a meus olhos, na velocidade da marcha, desenhou-se de relance a figura de uma moça de verde com uma sombrinha branca, atravessando a praça de um lugarejo. Foi tão rápido isso, que me ficou nos olhos como uma visão de sonho; será inútil explicar que o resto da viagem me pareceu ainda mais longo e que desembarquei triste… Pois foi essa visão de minha adolescência, diluída na memória através do tempo -- ou ao contrário, quem sabe? conservada intacta -- que vinha agora posar em silêncio para mim.
Comecei a manchar a tela a carvão, depois estes traços desapareceram sob a tinta – e foi durante dezoito horas de intenso trabalho ininterrupto que cheguei, aniquilado mas feliz ao resultado que procurava: o meu retrato de moça.
Por que aquela rosa vermelha em suas mãos? Também esse detalhe tem a sua história, ainda que simples. Não o havia previsto; entrou no fim, para ajudar a composição e servir de contraste de luz. É o botão que uma amiga esqueceu no meu “atelier” uma noite, e que eu vi desabrochar no jarro em uma esplêndida rosa na manhã de um domingo que já vai longe…
Quanto àquele fundo neutro, sobre que tanto se comentou, confesso que foi procurado intencionalmente para harmonizar com a figura, para dar ao quadro o que já se chamou, e com justeza, de “unidade de efeito”. Mais: já o havia previsto antes de dar o primeiro risco a carvão na tela em branco. Houve quem me falasse a propósito desse retrato em “impressionante atmosfera de tempestade prestes a desabar”. Quero crer que essa impressão nasce exatamente desse fundo. Quem sabe se não foi somente para conseguir tal efeito que eu quis pintar o meu “Retrato da moça de verde”?
***
Não disse mais nada; e diante do que ele acabava de contar, nem ousaram os mágicos afirmar que estavam com a razão, nem os lógicos inteiramente com ela – pois se para ver a realidade, vamos dizer primária, ele precisava fechar os olhos, tivera-os antes bem abertos para a secundária.
No silêncio que se fez, nunca os versos de Keats, os célebres versos de sua “Ode on a Grecian Urn”, poderia ter sido lembrados em mais bela ocasião:
"Beauty is truth, truth is beauty”, – that
is all
Ye know on earth, and all ye need to know.
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