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Para Antonio da Nova Monteiro.

UM MARIDO  ou

A MARIPOSA E A CHAMA

"Gondim,

 

    Não me compete zelar pela moralidade pública, nem eu aliás tenho jeito para tal. Sou porém seu amigo e vejo-me diante da dolorosa obrigação de o advertir: Doralice não lhe é fiel. Ocioso entrar em minúcias, explicar como o soube, provar-lho. Não perca de sua parte a cabeça, siga-a, e os fatos falarão por si mesmos.

 

Um amigo sincero”

  A CARTA, em papel comum azul, era datilografada e dizia:

                                       

 

     Era no ônibus, de volta do serviço, à tarde, que Armando Gondim lia isto. Talvez não seja de todo inútil apresentá-lo. É um belo rapaz de vinte e nove anos, espadaúdo e moreno... Não, não imagine por isso um brutamontes. Se é alto e forte, é que praticou natação e remo na época das primeiras conquistas (não era audacioso, mas teve algumas). Para completar este ligeiro esboço, acrescentarei que os colegas de repartição talvez devido a certa calma imperturbável que põe nos menores gestos o chamam de “boa vida”; e Armando Gondim, Gondim para os conhecidos e amigos, é Mandinho na intimidade.

    Quanto à carta que tem agora nas mãos, recebeu-a pela manhã. Sem saber por que, acordou particularmente satisfeito nesse dia; saltou cedo da cama, esteve a manhã inteira repintando o viveiro dos canários, depois trancou-se no banheiro onde, cantarolando trechos de rádio, se barbeou, etc, e estava dando o laço à gravata quando a mulher o chamou. Era o almoço que fumegava sobre a mesa. Almoçaram juntos, calados sim, mas felizes na medida em que casados de três para quatro anos o podem ser, e, cena de todos os dias: Doralice veio trazê-lo ao portão. Estiveram ali dois minutos, ele recomendando-lhe o viveiro dos canários, ela a ajeitar-lhe o laço da gravata, muito amorosos e ternos. Mas era tempo. Beijaram-se, ele lhe disse adeus. “ Bye, bye, meu bem!” fez ela. Quando chegou à esquina, voltou-se para o adeusinho de longe. Doralice  acenou-lhe, o vestido estampado sumiu-se entre o verde do ficus

    Fora então que ele e o carteiro quase se haviam chocado. Armando Gondim pediu-lhe desculpas, o outro disse que trazia uma carta para ele, entregou-lha. Seu primeiro gesto foi abri-la; como o ônibus se aproximasse, meteu-a no bolso, deu uma corrida. Leria sentado. Esquisito, não recebia cartas, de quem seria ?  No ônibus encontrou o amigo Rosendo, colega de Ministério e como ele criador de canários. Entraram a conversar. Quando saltaram, havia esquecido a carta; não se lembrou dela senão agora.

    Leu-a; um calor subiu-lhe ao rosto, esquentaram-se-lhe as orelhas, as mãos começaram a tremer. Que era aquilo ? Não, não era possível, estava sonhando! Tão espontânea (e compreende-se), havia sido a emoção, que teve receio de haver falado alto. Voltou-se para o companheiro de viagem, encarou-o entre espantado e encabulado. O sujeito um velhote de ar patusco e muitos embrulhos sorriu-lhe, fez um comentário sobre o calor. Era do Sul, vivia cerca de vinte e cinco anos no Rio, mas qual!, não habituara ainda, não se habituaria nunca ao clima carioca. O amigo era carioca ?

       Armando Gondim não lhe deu resposta, mentalmente despejou contra o homem todo um dicionário de nomes bonitos. Velho imbecil, etc. etc, acaso se conheciam para vir com aquelas intimidades com ele ? Desdobrou de novo a carta, releu-a, detendo-se agora no sentido de cada palavra. Ei-lo abanando a cabeça: “ Sim senhor, sim senhor, quem diria que Dora, a “sua” Dora… E “ele”, quem seria “ele” ?

     Do lugar onde estava, viu o rosto no espelho do ônibus. Com receio de alguma surpresa desagradável na fisionomia, desviou rápido os olhos. Com mais cuidado ainda evitou intimamente a palavra que aquela ideia lhe sugeria. O que não pôde evitar… Não, não sorria, meu caro, que esse lance da história é grave. O que não pôde evitar, repito, foi que uma lágrima furtiva, mas lágrima de concentrado ódio irracional lhe descesse pela face. Já se comentaria alguma coisa ?  Quem poderia ser aquele “um amigo sincero” ? Lembrou-se da possibilidade de uma brincadeira, de mau gosto, sem dúvida, nas brincadeira, porém essa ideia foi-se com a mesma rapidez com que se apresentou… Ah, saberia portar-se à altura das circunstâncias, que não era, nunca seria um marido igual à maioria! Isto é que não! Isso é que não! Lavaria em sangue a sua desonra, seria cruel… cruel como Otelo! Gostou da comparação, que lhe pareceu sobretudo exata, deleitou-se um momento a repisar: sim, como Otelo!

       Afinal, considerou, ela seguia as pegadas da mãe… (murmuravam-se coisas a respeito dessa senhora). E quanto a ele, pagava a própria obstinação. Tanto que os parentes se haviam oposto àquele casamento! “ Meu filho”, palavras de uma tia experiente às vésperas do casamento, “olhe o passo que você vai dar. Essa menina… Veja o exemplo da mãe, Mandinho!” Armando Gondim andava saturado de conselhos e para escandalizar a tia: “ Pois é por isso mesmo que eu gosto de Dora, está ouvindo ?” Como haviam agora de se regozijar! E os colegas do Ministério, e os vizinhos, os amigos! Teriam risinhos perversos à socapa, apelidos, algum mais ousado quem sabe até se … Ordinária! Mas suas horas estavam contadas e bem contadas. Ao entrar em casa faria um sinal para a empregada não avisar à mulher de sua chegada, iria ao escritório, tiraria do estojo a pistola e: “ Dora, ó Dora!” Ela acudiria ao chamado, cantarolando talvez, como era hábito seu. Não diria uma palavra, nada. Apontaria a arma e… tudo se passaria num abrir e fechar de olhos. A seguir iria ao telefone, discaria para a polícia, e ficaria à espera, fumando. Era verdade, estava sem cigarros. Bem, ao descer do ônibus entraria no bar.

       Mas a essa altura um pensamento ricocheteou no espírito de Armando Gondim: Soninha. Pobre criança! Com o tempo tornar-se-ia moça e, por mais que lhe ocultassem, que lhe mentissem, um dia fatalmente viria a saber a verdade. Pobre, inocente criança! Não, aquela miserável não merecia o sacrifício de duas vidas. O desquite. Sim, castigá-la severamente com o desquite, para que tragédias ? O desquite!  Que era preciso para isso? Provas, simplesmente. Pois bem, guardaria silêncio, seguir-lhe-ia os passos… O Pedrosa, é verdade. Nada mais fácil. O amigo Pedrosa defenderia a causa. Nas mãos dele em dois meses, talvez nem isso, o processo estaria liquidado. Ah, o processo, a sua vitória, a sua grande vitória! Havia de ser completo. O processo. Por último, para vergonha dela, viria tudo a público no Diário Oficial. Era um direito seu, como se desforraria!

    O ônibus rodava dentro da tarde quente e Armando Gondim sentia-se menos inquieto, e pouco a pouco mais senhor de si. Agora que o plano estava assente, a execução afigurava-se-lhe a coisa mais simples do mundo… Lembrou-se mesmo de um escândalo semelhante, em São Paulo, (São Paulo ou Minas, já não sabia ao certo), mas em suma um caso em que a curiosidade pública esgotara toda uma tiragem extraordinária da folha oficial, e sorriu. Se eu ajuntar que sorriu com satisfação, e não apenas pela vergonha infligida à mulher, mas ainda por outro motivo, talvez não me diga, todavia pense lá com os seus botões: “ Que exagero!” Ou então: “ Que pulha, esse marido! Serão amigos ?”

     No entanto, assim foi. Olhe, já agora não me importa o conceito que venha a fazer de mim, eu vou confiar-lhe a verdade inteira. Armando Gondim sorriu, repito: e embora discreto, não estava ausente desse sorriso um certo, nem sei como me expressar, um certo sutil prazer que era o de ver seu nome na ordem do dia e o resto… Evidentemente isso não lhe embeleza o caráter, ao contrário, mas que quer, são assim os homens, é assim a complexa natureza humana. Eu, em menino (e não era para imitar Santo Agostinho), também furtei peras. E havia em casa uma pereira, um pomar inteiro delas. Que buscavam os meus onze anos nas peras mirradas do nosso vizinho ?

      Enfim o ônibus parou; Armando Gondim morava ao fim da linha, saltou, seguiu direto para casa. “ Como são as coisas !” remoía ele, “quem diria que aquela quarta-feira de fevereiro, tão próximo de mais um ano de casado…” Não completou esta reflexão, pois uma nova maneira de encarar a situação tomou em seu espírito o lugar daquela. “E se pusesse a mulher em interrogatório ?” Mas esse esboço de pensamento não teve melhor sorte.

      Estava na sala. A empregada não o pressentiu; ele, pelo ruído que vinha de dentro, advertiu-lhe a presença na cozinha. E a mulher? O canário na gaiola à janela da sala, reconhecendo-o, pôs-se a saltar no poleiro, a cantar. Armando Gondim deteve-se a ouvi-lo, enternecido. Era o seu melhor canário! Mas ela? Teria saído? Quem sabe… Deu uma olhadela para os fundos: a porta do banheiro estava fechada. Compreendeu que a mulher se encontrava   ali,   preparava-se.    Quis   certificar-se:   “ Dora?”

Você, meu bem ?” e gritou-lhe que era um instante, só um instante.

        Refletindo que agora era preciso sobretudo não se precipitar, calmamente retirou a carta do paletó, pousando-o com cuidado no espaldar de uma cadeira. Ao sentar-se numa poltrona reparou, no quarto, em Soninha adormecida no berço. Pensou em ir beijá-la, mas teve receio de acordá-la, deixou-se ficar.

     “Alô, Mandinho!” Era Doralice que entrava úmida e fresca como uma flor aquática, no seu roupão vermelho, uma toalha amarrada à cabeça, os cabelos apanhados para o alto pondo-lhe à mostra a nuca rosada e penugenta. Bonita ? Depende. Talvez dentro de seu tipo, sim. Loura, mais baixa que alta, gestos vivos e nervosos. Vinte e três anos por fazer. Em duas palavras: era antes uma beleza feita de tecidos  bem nutridos, compreende, não ? que espiritual.

        Armando Gondim franziu o sobrecenho, tomou um ar sombrio, murmurando-lhe que se sentasse. Ela apenas se aproximou “ Que é, meu bem?” Contra a vontade, ele aspirou aquele cheiro de sabonete que rescendia ativo do corpo da mulher. “ Que é, que bicho mordeu você ?

     Armando Gondim repetiu que se sentasse, que tinha uma coisa (frisou bem estas palavras), uma coisa muito séria a dizer-lhe. Doralice não se sentou na poltrona, mas nos joelhos dele; deu-lhe um beijo e tomando-lhe as mãos: “ Já sei de tudo que se trata, meu bem!” Ele encarou-a interrogativo. Não, não arregale também os olhos, meu caro. Em resumo, feito aliás por ela própria, a coisa era simples e explicava-se assim. Há cerca de um mês, um certo Roberto, primeiro namorado dela, como Mandinho não ignorava, e que vivia no Espírito Santo, viera ao Rio. Viagem de negócios. Um belo dia, ela recebe um telefonema. Sim, era ele. Naturalmente, tratara-o com delicadeza, até lhe indagara pela irmã, etc. Mas no dia seguinte, novo telefonema. Ela percebera as intenções e desta vez tratara-o friamente. Nem assim desistira, pois nesse mesmo dia, à tarde, voltara de novo. Então indignada, Doralice ameaçara-o com uma denúncia ao marido. Roberto, decerto despeitado (fora isto exatamente há três dias), dissera-lhe com o maior cinismo: “ Pois quem fará a denúncia serei eu, ouviu ?“ Qual, incrível como se podia ser tão infame, não era verdade? Nunca imaginara que ele fosse, de fato, capaz de praticar tal indignidade. Tinha ali a carta ? Que lha desse. Armando Gondim estendeu a carta em silêncio à mulher. Doralice correu os olhos curiosa pela folha; depois teve um sorrisinho e com um gesto de desprezo atirou-a sobre a poltrona.

     Armando Gondim quis ainda algumas explicações; Doralice deu-lhas, e mais com os lábios que com palavras… Afinal de que valem palavras, pois não é ? E como lhe sussurrasse ao ouvido que era preciso agora dar uma lição em regra ao patife, ela deu-lhe um leve tabefe no rosto: “ Ora, meu bem, deixe-se de tolices!” E por que a sua Dorinha não lhe havia contado nada, hein ?” Ela sorriu. Justamente por isso, conhecia-lhe o gênio, sabia quanto a amava e do que não seria capaz, etc.

    Vejo-lhe uma pergunta na ponta da língua: “ Mas afinal…” Não sei, meu caro. Aliás isso nada acrescenta ao interesse do caso. Nem me diga que Armando Gondim se deixou convencer facilmente. se é que… Sei lá, lógica de marido.  Nunca leu  Einstein ?

    Convicto, pois da fidelidade da mulher, já agora serenado e feliz com esta certeza. Armando Gondim… “ Oh, meu bem, assim não, assim não!” É que a toalha caía-lhe da cabeça. E defendeu-se da voracidade cheia de gratidão, mas inoportuna, do marido: “ Maria, ó Maria, o jantar está pronto ?” gritou ela para o interior. Como a empregada não desse nenhum sinal de vida, levantou-se. Era só um instante. Ele viu-a sair ondulando os quadris, conjugal e desejável, no seu roupão vermelho, e ficou a relembrá-la com doçura, longamente.

      De novo se põe a sorrir ? Ah, meu caro, bem vejo que não passa, como tantos outros, de um frio observador do coração humano. Então a tragédia, reduzida a drama, termina agora em comédia ? leio em seus olhos irônicos. Meu amigo, eu nunca soube a diferença dos gêneros; depois isto não é teatro, é vida. Guarda lá o seu fino sorriso e ouça-me.

     Armando Gondim foi debruçar-se à janela. O canário, alheio a tudo isso, continuava a cantar, agora sobre a cabeça do dono. Eis o que se passava dentro dela: Ora, ora, e ele a admitir aquilo contra a mulher. Não ver logo o absurdo! Como se Dora, a “sua” meiga e doce Dorinha fosse capaz de tal coisa. Com que superioridade enfrentara a situação, com que simplicidade lhe contara tudo! Tão boa, nem se mostrara ofendida, como era natural, uma vez que…

    Voltou à poltrona, apanhou a carta que havia ficado ali, rasgou-a; atirava pela janela os pedaços, quando a voz de Doralice, de dentro, chamou por ele para jantar. “ Venha logo Mandinho!” Ele dirigiu-se ao interior da casa, mas nos poucos passos que fez… É melhor citar-lhe o pensamento, não pareça esteja  eu  querendo  interferir  para  forçar   a  nota.     Foi assim:  “ – Ora, ora, pois se… sim, pois se me perseguem a mulher… Também Doralice podia, que diabo… Não resta dúvida, os seus braços, aquele sinalzinho… o seu doce arrulhar de pomba…”

    Chegou-se a ela pelas costas: “ Dora, você jura, então ?” Doralice agastou-se, e num tom repreensivo: “ Meu bem !” Isto equivalia ao juramento pedido: então incompreensível, indevassável mistério ! Armando Gondim sentou-se à mesa com o sobrecenho franzido e uma profunda, amarga expressão de descontentamento na fisionomia…

 

****

    Certa vez, em viagem, contei e não sem pretensões, esta história a um amigo que, como o velho Stendhal, se gabava de ser “um observador do coração humano”.

      “ Sua historieta, meu caro, respondeu ele ajeitando os óculos depois de ter me ouvido calado, “não é tão original como você talvez acredite…” Eu, um tanto picado com a observação, pedi-lhe se explicasse. Mas o meu amigo pôs-se a rir com aquela larga franqueza muito dele e nada acrescentou. Para fazê-lo falar, pensei em dizer-lhe que punha em dúvida a perspicácia de sua aguda inteligência, todavia, não sei porque, guardei silêncio.

        Instantes depois, ele tocava-me no braço para que reparasse viajávamos de trem, era noite velha como as mariposas dançavam doidamente em torno da luz. “ Que bichinhos singulares, não é mesmo ? Veja com que volúpia procuram o perigo!”

        Que queria dizer aquilo ? Ainda se referia à nossa conversa de há pouco ? Confesso que nem naquela noite nem depois logrei compreender a relação, se é que havia, entre uma coisa e outra. Apenas a imagem das mariposas e da chama… Eis a origem do subtítulo desta narrativa. A mariposa e a chama! Não há negar, é poético; pode não ter sentido aqui (questão aliás a discutir), mas é poético e não soa mal. Não precisava ter dito que não era meu!

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 07/14

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