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Para Antonio Fernandes de Souza.

CASO DO BROCHE

JOSÉ DOS SANTOS, garçom do café 24 de Outubro, para os lados da Tijuca, ia entrando no elevador com a bandeja na mão, quando seus olhos surpreenderam qualquer coisa debaixo da banqueta do ascensorista. Abaixou-se com jeito e, num movimento rápido, fechou na mão o pequeno objeto. O rapaz do elevador quis saber o que era. Disfarçou; não era nada.

      Eu vi você guardar uma coisa no bolso.

     Não estou lhe dizendo que não é nada ? respondeu de má sombra, para pôr o outro à distância.

    Realmente, José dos Santos não vira direito o objeto, mas adivinhara pelo tato; uma joia. Que espécie de joia seria? Uma medalha? Um broche? De qualquer forma, devia ser cravejada de pedras, pois sentira-as, e umas mais salientes que outras. Muitas. Brilhantes? Diamantes? Qual a diferença entre brilhante e diamante? Qual valeria mais? Quando tinha quinze anos estivera para trabalhar numa oficina de lapidação. Mas fora por essa época que o pai havia sido recolhido ao Hospício, a mão e a irmã haviam-se empregado na fábrica de calçado, e o padrinho, de passagem por São Fidélis, trouxera-o para o Rio. Bem, “seu” Salomão, comprador de ouro velho, lhe diria. É claro, não seria tolo de mostrar-lhe a joia. Indagaria como se tratasse de um terceiro. Fácil. Mas sim senhor, que sorte a sua! Quanto podia valer ? Quinhentos cruzeiros ? Ora, quinhentos! Jóias valem muito. Não diziam que a mulher do doutor Neiva, em São Fidélis, tinha um colar de pérolas no valor de vinte mil cruzeiros? Aquele broche valia uns dois mil. Só? Três mil. Ou quem sabe se quatro? Com brilhantes (ou diamantes), talvez até mais. Bem, cinco; cinco mil cruzeiros, nada menos. CINCO MIL CRUZEIROS. Esta fantástica quantia cresceu de súbito a seus olhos. Pronto, estava feito para o resto da vida; tinha nas mãos a própria independência. “Seu” Ramalho havia de ver agora; que viesse com a estupidez de sempre, aquele unha de fome!

      Quando voltou de servir o café pelas salas dos escritórios, já a sua comoção era menor; ou antes, conseguira dominar-se, pois complexo era o que se passava em seu íntimo. Em verdade , no breve espaço de minutos, José dos Santos conhecera as mais descontroladas emoções. Primeiro fora o indescritível choque da surpresa; passado este, assaltara-o a ideia de que todos já sabiam do fato, que talvez fosse mesmo uma cilada que lhe estavam armando… Já agora, descendo pela escada para evitar o ascensorista, uma ideia terrível lhe veio à lembrança. Tanta alegria, tantos planos, e se fosse uma coisa sem valor, uma dessas fantasias de loja americana?

    O coração aos saltos, José dos Santos pousou a bandeja na copa e correu para os fundos da casa. Um raio oblíquo de sol, penetrando pela vidraça roxa de uma janela, no alto, transfigurou em suas mãos trêmulas um pequeno leque cravejado de pedras. Imbecil. Que fantasia! Acaso podia tratar-se de fantasia uma joia daquelas? Passava o broche de uma para outra mão. E pesado! Sim senhor, pesadíssimo! Não se enganara portanto, achara de fato uma joia de valor. Apenas valia era mais que cinco mil cruzeiros, como supusera. Aquilo era joia para uns dez mil, por aí. E aos olhos de sua ambição, sonoramente, moedas e cédulas de mistura começaram a derramar-se de uma cornucópia invisível, não sobre o balcão da casa lotérica, como ela via todos os dias no cartaz, mas sobre suas mãos, sobre suas trêmulas mãos.

     Zé! Ó Zé!

    A voz gritada do patrão veio arrancá-lo desta orgia imaginária, recolocando-o na mesma realidade. Fregueses exigiam a um tempo que os servissem.

     Ó rapaz, precisas andar mais ativo, insistiu ainda “seu” Ramalho.

    Teve de ouvir mais esta observação em silêncio; intimamente, consolou-se com o pensamento de que podia ser a última. Se quisesse, podia despedir-se no mesmo instante, deixá-lo na mão. Mas não, não faria isso. Precisava não perder a cabeça, conduzir-se com prudência. E para certificar-se de que tinha o broche, apalpou-o no bolso. Sim, estava ali, estava bem seguro.

    Não tardaram a surgir no café os frequentadores de todas as tardes. “Seu” Salomão não apareceu; mas que importava o velho judeu ou quem que fosse ao garçom do café 24 de Outubro naquela tarde? Agora José dos Santos só pensava numa coisa: ver chegar as seis horas para passar o serviço. Os ponteiros avançam lentos e lentos para a sua impaciência; ainda assim avançavam. E como naquele dia acordara decerto de pé direito, o companheiro apareceu quinze minutos antes da hora.

    Habitualmente, ao deixar o serviço, José dos Santos seguia para a pensão. Mas as comoções por que passara tiravam-lhe o apetite naquela tarde. Sem saber o que fazer, saiu andando à toa pela rua. Um sentimento de euforia e segurança dominava-o agora inteiramente. Não reparava em pessoas nem coisas; impelidas por uma força irresistível, mecânica, as pernas levavam-no sempre para a frente… Alcançou o Alto da Boa Vista, tomou pela estrada das Furnas da Tijuca, só dando conta de si na Avenida Niemeyer. Cansado, resolveu sentar-se na amurada; uma luz vermelha movimentava-se ligeira na superfície do mar, que cintilava reflexos… Era uma lancha. Lá ia… Pronto, sumira-se. José dos Santos deixou-se ficar, inconscientemente influenciado pela atmosfera cheia de mistério da hora e do lugar. Como tudo era estranho! Por que existiam o mundo, as pessoas, ele, José dos Santos? Desde menino tinha aquelas ideias esquisitas… Será que os outros pensavam naquelas coisas? E aquilo de ficar parado, olhando para um lugar, depois fechar os olhos devagarinho, devagarinho, e ir imaginando que não havia nada, nada nada… Alice dissera-lhe uma vez que também gostava de fazer o mesmo. Alice. Depois que haviam rompido, não soubera mais notícias dela. Teria mesmo casado com o filho do doutor Neiva? Interesseira, ingrata, fora por causa daquele tipo que o deixara… No entanto namoravam-se desde o tempo do “Grupo Escolar”. Eram assim, as mulheres. Mas quem sabe se não haviam chegado a casar? E se voltasse a São Fidélis… se a procurasse, por que não? Aliás, que o impedia agora? Vendia o broche e com o dinheiro… DEZ MIL CRUZEIROS! Dizer que ele, um simples garçom, um João-ninguém, estava ali com aquela fortuna no bolso. Pois bem, vendia o broche, fazia uns ternos, calçava-se, enfim, arrumava-se decentemente e desembarcava em São Fidélis sem avisar ninguém. Procuraria Alice no mesmo dia. E se ela aceitasse, casavam-se dentro de uma semana e abria um pequeno café na cidade. Tinha a vida arrumada de vez. Ah, tiraria a mãe da fábrica, coitada da velha. A irmã podia continuar… Ganhava assim para ela, viveria independente. Ou então que se casasse. Um problema difícil: como vender o broche? Realmente, como vendê-lo? Se o prendessem! Se o prendessem como ladrão! José dos Santos ficou pensativo alguns instantes; lá se iam os seus planos. Meter um terceiro naquilo? Dava no mesmo, prendiam ambos. Fez um gesto decidido: Ora, muito fácil. Despedia-se da casa, e viajava para São Paulo. Sim, estava resolvido, venderia o broche em São Paulo. Talvez ali encontrasse até melhor preço. Talvez não, isso era coisa mais que certa. São Paulo não era cidade como o Rio, aparências e nada mais; lugar de gente ativa, trabalhadora. O dinheiro ali corria. Afinal não havia dúvida de que as coisas estavam muito bem feitas neste mundo. Sacrifícios obscuros de anos, mas um dia… um dia chegava enfim a grande oportunidade. Como a vida era bela!

         A derrapagem violenta de um automóvel perto dele advertiu-o da situação. Era preciso ir-se embora! Para voltar ficava muito distante; conhecia o caminho, decidiu seguir adiante. Rompendo a passo largo, receoso de que o assaltassem nalguma curva da estrada deserta e escura, depressa chegou ao pequeno largo do Hotel Leblon. Como um garoto passasse anunciando as folhas do dia, chamou-o. É que se lembrara de repente que talvez a dona do broche anunciasse no jornal e teve curiosidade.

    De fato, junto a um anúncio de salitre do Chile, lia-se:

 

Joia Perdida

 

Hoje, entre 12 e 17 horas, no trajeto Tijuca-Ipanema, perdeu-se um broche de platina, em forma de leque, cravejado de brilhantes. Trata-se de objeto de estimação, pelo que gratifica-se generosamente a quem o entregar. Chamar Madame Mary, pelo telefone…


 

***


 

    Não havia dúvida, era o broche que ele achara. E as pedras então eram brilhantes! Madame Mary. Pelo nome devia ser inglesa; havia uma freguesa do café com o mesmo nome, aliás feíssima . Esta outra seria bonita? Madame Mary. Casada ou solteira? Mas o quê? Será que estava disposto a entregar-lhe o broche? Gratificava generosamente. Pois sim, conhecia essa espécie de gente. Era até capaz de mandar prendê-lo como ladrão. Depois, se o perdera, é porque tinha mais do que ele, e o marido (ou amante) que lhe desse outro. Não o achara? Aquele era dele, ninguém lho tiraria.

         Um ônibus ia partir; José dos Santos meteu-se nele, em pouco estava na cidade. Pareceu-lhe porém arriscado andar pelo centro com a joia, e tratou de recolher-se à pensão. Batia uma hora da manhã no relógio da sala quando ele chegava. A luz do quarto estava acesa; era o companheiro arrumando os objetos numa mala de mão. Apesar de morarem juntos havia cerca de um ano. José dos Santos não trocava senão as palavras indispensáveis com o companheiro. Este era um rapaz do Norte, extranumerário de um ministério; chamava-se Samuel e era jogador inveterado dos cassinos. Estava de costas, e de costas respondeu ao boa-noite que o outro lhe dava. Mas José dos Santos sentiu de súbito uma grande necessidade de contato humano e, enquanto tirava o paletó, acrescentou:

     Em arrumação a esta hora, Samuel?

     Estou de partida.

     Para onde? Definitiva?

     Para São Paulo, e três meses só.

     Ah  !

    Houve uma pausa. José dos Santos estirou-se na cama.

     Quer vir comigo? fez Samuel num tom indiferente.

     Está aí uma ideia até… interessante.

     Pois é, largar esse emprego de garçom. Isso não é meio de vida. Em São Paulo você pode arranjar coisa muito melhor.

     Você acha?

     Ora, meu caro. São Paulo é outra coisa que não o Rio.

    Era o que José dos Santos também pensava. Levantou-se resolutamente:

     A que horas sai o trem, Samuel?

     Às seis e quarenta. Resolveu ir?

    Resolvera; e, animado, pôs-se imediatamente a arrumar a escassa bagagem, ao mesmo tempo que acertavam detalhes sobre a viagem. Não demoraram a dar por acabado este trabalho; apagaram a luz e deixaram-se ficar conversando deitados. Enquanto o outro contava como perdera no jogo metade do último ordenado. José dos Santos considerou. “Bom sujeito este Samuel. Jogador, sempre sem dinheiro, mas no íntimo bom camarada. Vou confiar-lhe meu achado de hoje, que diabo”.

     Perdi porque fui mudar de jogo, compreende? concluiu o outro.

     É, dizem que não se deve mudar… Quer saber de uma coisa, Samuel?

    O companheiro disse que falasse.

    Achei um broche hoje. Coisa de valor.

    A notícia despertou o interesse que José dos Santos esperava. Samuel quis ver a joia. Acenderam a luz, ele tirou-a de sob o travesseiro. O quê! E tomando-a nas mãos, Samuel comentou numa exclamação obscena a sorte do outro. José dos Santos pediu-lhe que avaliasse quanto podia arranjar com aquilo.

     Eu faria a minha independência.

    José dos Santos arregalou os olhos. O outro explicou-se. Por que não ganhara nada até aquele dia? Muito simples: por não ter nunca um capital forte para aumentar as rodadas. Se o broche fosse dele, iria naquele momento mesmo vendê-lo a certa pessoa e rumaria direto para o cassino. Antes do sol nascer tinha que estar rico!

    José dos Santos esperava outra coisa; cortou as asas da imaginação de Samuel. Nada, jogo nunca melhorara a vida de ninguém, ao contrário. O plano dele era outro. Vender o broche, sim, mas com o dinheiro tentar qualquer coisa de seguro. Estava ali a principal razão que o levava a São Paulo. Samuel compreendeu que nunca se entenderia com o bom-senso do outro; entregou-lhe a joia em silêncio. E como deviam acordar cedo, trataram de apagar a luz e deitaram-se.

    A inesperada notícia do broche tirou entretanto o sono de Samuel. Não aconteceu o mesmo a José dos Santos que, sem jantar, exausto da caminhada, esgotado pelas emoções por que passara naquele fim de dia, mal fechou os olhos adormeceu pesadamente.

     Quem acordar primeiro chama o outro, ouviu, Zé dos Santos?

      Como o outro não lhe desse resposta, levantou-se devagar e…

 

***

     Uma intensa claridade de verão carioca penetrava pelas vidraças, iluminando cruamente os trastes do quarto pobre. José dos Santos deu um salto da cama. Onde estava? Que horas eram? Chegou até a porta. Aos seus ouvidos chegou um diálogo confuso. Percebeu que era a dona da pensão discutindo com o açougueiro. Podia levar a carne de volta, Que não lhe interessava mais àquela hora. Onde se vira receber carne às onze horas do dia numa pensão! Onze horas! José dos Santos teve uma estremeção, num relance advertiu: Samuel levantara-se cedo, levando-lhe o broche! Desesperado, cego, não se lembrou de procurá-lo no cassino, nem indagar por ele a ninguém; em camisa como estava  correu à estação. Quem sabe se ainda o pegaria. Oh, para que fora contar, para que fora confiar aos outros o segredo! Se não o encontrasse, que seria dele?

    Informando-se, disseram-lhe que o paulista saíra atrasado. Teve uma esperança absurda quem sabe se ainda não partira! Aproximou-se da plataforma. Somente trens elétricos, que ele sabia serem os dos subúrbios. Não, não podia ser, qualquer coisa lhe dizia que Samuel não embarcara. Um homem de boné, a quem se dirigiu, esclareceu-lhe que o paulista partira na hora, seis e quarenta. O que saíra atrasado, e muito, fora o mineiro.

      O mineiro, é ? perguntou idiotamente José dos Santos.

     O senhor está se sentindo mal? fez o homem de boné com solicitude.

    Como o desconhecido lhe desse uma gargalhada na cara, o homem de boné afastou-se ofendido. “Sujeito imbecil!”

    Não havia dado meia dúzia de passos, quando José dos Santos, atirando os braços para o alto, se pôs a bradar:

      O broche ! O broche ! O broche !

    Um guarda se aproximou. Como o desconhecido continuasse a gritar, segurou-o violentamente pelo braço.

     Que é que há? Que é que há ?

    Curiosos detiveram o passo. José dos Santos transpirava; os cabelos caíam-lhe empastados na testa, tinha as feições desvairadas.

      O broche!  O broche! O broche! não cessava de gritar.

    O guarda sacudiu-o para que se calasse. Que broche?  Que história de broche era aquela? Fora roubado? Perdera algum broche? Mas o preso não se explicava, limitava-se a gritar e cada vez mais alto. Os curiosos agora eram em grande número. Um senhor bem vestido achou que se devia acabar com aquilo, protestando energicamente contra a falta de iniciativa do guarda. Por que não chamava logo o carro?

     Pois é o que eu queria fazer, “seu” doutor, mas quem é que segura o homem?

    O senhor bem vestido disse que esperasse; ele próprio ia telefonar. O preso, gritando sempre, procurava desprender-se das mãos do guarda dando puxões violentos. Os curiosos discutiam. Mas afinal, era louco, era algum vagabundo?

    Chegou enfim o carro fechado; a custo meteram o preso dentro, bateram a porta, e partiu, levando José dos Santos, obscuro garçom do café 24 de Outubro, enquanto o grupo se foi dispersando.

     Dois senhores que chegavam atrasados comentaram:

      É capaz de ser algum punguista apanhado em flagrante…

     Com toda certeza, concordou o outro. Esses tipos são uns sabidos. Quando a polícia lhe põe a mão em cima fingem-se de loucos. Uns sabidos.

       E, muito satisfeitos de suas pessoas, saíram andando.

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 06/14

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