Xavier Placer
Para José Pancetti.
NOITE ANTIGA ou
A PROPÓSITO DE SILENE DESAPARECIDA
" Mais elle fait plus volontiers penser à la lune,
qui sans doute l'a marquée de sa redoutable
influence... "
CH. BAUDELAIRE, Petite poèmes en prose.
"-POIS BEM, também eu ajudarei a empurrar o tédio destas noturnas horas sem fim, contando alguma coisa”, concordou ele, esvaziando o cálice. “Apenas, bem me conhecem, não esperem de mim uma história no gênero das que acabam de dizer. As histórias verídicas, essas, já observou alguém e com razão, não merecem mais ser contadas”.
Levantou-se subitamente exaltado, pondo-se a passear ao longo do rubro tapete da sala. Fez-se um grave silêncio: todos esperaram. Como se fitasse uma visão e com ela dialogasse, fixando emocionado o olhar em um vago ponto do espaço, continuou:
“– Se acaso o li em algum velho livro esquecido ? Se me inspirou o álcool ou se a engendrei numa de minhas constantes fugas? Não me interroguem a esse respeito. Realidade ou sonho, que importa ? Lembrem-se do poeta: “há muita ciência nas palavras das sibilas” – guardem silêncio e ouçam-me”.
***
“– Chamava-se Silene. Em casa, ainda que não a compreendessem, gostavam dela. Uma semana antes o pai ( a mãe morrera ao dar-lhe a vida) sentara-se a seu lado e tomando-lhe as mãos: “– Então, minha filha, que é que você quer de presente de aniversário ? ” Ela baixara os olhos, aqueles seus negros olhos penetrantes: “– Nada, meu pai”. Nada ? Como assim ? Então não queria… Trocar de automóvel ? Não? E mudar a mobília do quarto, por exemplo, também não ? Bem, e se lhe desse… Ah, até parara à porta da joalheria para apreciar o broche. Que joia! Uma borboleta filigranada, enorme, os olhos dois rubis faiscantes. Não, não se teria admirado se de repente a visse desferir um voo… Porém ela, que ouvira todo o tempo calada: “– Nada, meu pai, eu tenho tudo!” Ouviram ? Eu tenho tudo. Era assim Silene, sempre fora assim desde criança… Ah, Silene! Há nomes que são abismos.
Mas naquela noite… Ela não havia antes pensado em nada. Em nada. O silêncio na casa era completo; avidamente, ficara lendo até tarde. Houve porém um momento em que levantou a cabeça do livro; pelas janelas abertas de par em par o resplendor de uma imensa lua penetrava como uma aurora boreal. Fechou o livro docemente, e docemente desceu ao jardim. Como chovera horas antes, a noite estava fresca, errava no ar o aroma forte dos jasmineiros. Retirou o carro (fora por simples capricho que um dia aprendera a dirigir), e saiu. Saiu devagar, olhando as coisas que a claridade transfigurava fantasticamente. Para onde ia ? Essa preocupação de fazer tudo com uma finalidade… Que importava ?
Quando deu conta de si, dali a instantes, Silene estava na estrada de K… A sua branca perspectiva, à noite, era um apelo gritado: VELOCIDADE! VELOCIDADE! Ela que sempre sentira que a vida era lenta, oh, como era lenta a vida ! Por que não multiplicar os minutos, acelerar o tempo, inserir no tempo a eternidade?
O vento agita-lhe violentamente os cabelos – libertadora sensação de voo ! – enquanto as mãos dirigem, sabiamente dirigem, guiadas por um instinto. As árvores da orla da estrada mancham o solo de sombras descomunais; o vulto de um caminhante avança curvado pelo cansaço, enquanto na altura, em movimentos de câmera lenta, nuvens acastelam em torno da lua esculturas inéditas. Mas Silene não tem olhos para isso, não repara em nada. Difícil mesmo de dizer se lhe vem à lembrança aquilo que uma vez anotou à margem de um livro: “Como sou feliz!” Não há ninguém que o seja mais que eu. Nesse instante sou a mais feliz criatura do universo. Vontade de chorar em silêncio… A morte. Ah, compreendo que se possa querê-la, que sinceramente se tenha desejo de estender-lhe a mão. Como eu, neste instante. Por alegria, por alegria! Este raro momento de perfeita identificação comigo mesma, este momento de plenitude. Eu sei que ele se esvairá, meu Deus !”
Não, Silene não pensa em nada disto. Tudo isto ainda tem qualquer coisa de ideia e estas agora despiram em seu espírito, aos poucos, toda a significação, transformando-se numa aspiração, numa ânsia. É só um ponto negro a se projetar em sua consciência, como uma meta a alcançar. Para lá! Mas dentro ou fora ? Onde ? Onde ? Quase a tocá-lo e ao mesmo tempo tão distante ainda ! Alcançá-la-ia ? Por fim esta mesma noção se desagrega, vai-se diluindo, diluindo em círculos luminosos e concêntricos, despidos de qualquer significação. Talvez uma estrela. Sim, longínqua e fixa, uma estrela. Deslumbrada por esta pura visão interior, Silene fecha os olhos, enquanto as mãos sempre possuídas por um lúcido instinto, fazem o seu ofício. E a sua estrela cada vez mais próxima! Lá está, naquele fundo abismo a maravilhosa visão daquela luz, como o mistério do seu destino. Depressa, é preciso deslumbrar-se no seu brilho imortal, é preciso nele naufragar para sempre! Aquele sentimento cada vez maior de libertação, de onde vem ? Oh, agora ela é livre, livre enfim ! “Meu! Meu!” O vento leva-lhe a palavra, que vai transformando em um grito: “Meu ! Meu ! Meu !”
De repente, possuída de uma clara consciência da realidade, sabendo lucidamente o que fazia, mas querendo exatamente aquilo, fascinada mesmo pela ideia de que devia, de que desejava realizá-la… Foi então tão rápido o movimento, que Silene não teria tempo de arrepender-se. Sim, era aquilo o que ela queria, era aquilo. “Meu ! Meu ! Meu !” E nem as estrelas, no alto, ouviram o surdo baque do carro no escuro… “
***
“– Sobre as montanhas e os vales da Serra de K…, a neblina esgarça-se vaporosa ao longo do maciço verde-escuro da vegetação. Úmido de orvalho da noite, o capim da orla da estrada fumega e recende ao contato dos primeiros raios de sol. Aproximam-se as sete horas. Uma borboleta surge do cerrado do mato, indo, vagabunda, pousar no telhado de um barracão de madeira: Turma L, quilômetro 55. No frio da manhã, trabalhadores deblateram pequenas questões de serviço, enquanto vão desembaraçando sem pressa as ferramentas. Há um doce rumor de vozes misturado ao tinido dos ferros… Menos ativos, uns se deixam estar fumando; outros, encolhidos como pássaros friorentos, observam com preguiça os companheiros. Um deles, largo chapéu de palha, feições requeimadas, destaca-se agora do grupo, e atravessando a estrada, encosta-se ao tosco paredão de pedra. Naquele trecho o declive do terreno é violento, mais íngreme que em outros lugares, quase perpendiculares. Na sua pedra escalvada, enegrecida pelas enxurradas, cactos se agarram aqui e ali, perigosamente. O homem de chapéu de palha considera algum tempo o panorama, a princípio distraído, logo depois com viva atenção num detalhe. Súbito, grita para os companheiros, reforçando a fala com um gesto. Um desastre! Deve ser um desastre, pois há um carro tombado lá em baixo.
A frescura da manhã põe aqueles homens rudes de bom-humor. Bate boca salpicado de termos obscenos, chocarrices. Enfim, três ou quatro resolvem descer ao local das conjecturas. Com efeito, ali está, de borco, um carro. Na falta de duas rodas, brutalmente exibe a violência da queda. Novas conjecturas. Enquanto isto, a meia distância, um deles que se afastara em silêncio, vai dar com um corpo de mulher caído para dentro do riacho que desce do interior da mata; estaca vivamente, vendo talvez naquela descoberta um agouro para o seu dia: não pode ser outra a razão por que se persigna tão prontamente. Diante do quadro, um detalhe lhe toma a por instantes a atenção: correndo rápida, a água sussurrante do riacho lava os cabelos em desordem da mulher morta. E um filete de sangue, saindo do nariz afilado e lívido, empasta-lhe de terra os lábios, desce pelo queixo… A um sinal, os outros correm em atropelo, como que adivinhando. Apesar da curiosidade, a presença da morte impõe um certo respeito: aqueles rostos consideram calados. Que era bem moça, observava, baixo, um deles; outro acrescenta que não era feia… A impressão vai-se aos poucos desfazendo; um terceiro fala em suicídio, outro sugere arrastar o corpo para o seco, mas o homem de chapéu de palha adverte que não, pode trazer complicações com a autoridade.
Nisto, pancadas vibrantes de ferro, em cima na estrada, anunciam a hora do trabalho. Os homens apressam-se em subir. E a impressão da presença da morte vai-se desfazendo de todo. Ao chegarem em cima, alguns já fazem graça, referem-se ao fato como um acontecimento sem importância, longínquo…
E ali fica, à espera, o corpo arroxeado e rígido da mulher. Vinte anos fixados para sempre. No bolso da blusa, meio sujo de limo, pode-se ver a primeira letra de seu nome, um gracioso S… Amanhã a família mandará talvez gravar o nome inteiro sobre o túmulo: SILENE.
Um nome sobre uma lápide! Será tudo o que resta por fim de uma vida ? Ou isto não foi senão um começo, a inevitável passagem ? Silene morta parece apenas sorrir sobrenaturalmente. E àquela hora são ainda tão débeis tão frouxos os raios de sol, que, na meia sombra das árvores, Silene, de novo menina, dá a impressão de dormir um branco sono sem sonhos… É como se tivesse tido enfim a revelação de tudo o que outrora tão incansavelmente procurava; é como se, virgem imprudente, encontrasse em uma volta do caminho o noivo, e com ele entrasse a festejar as suas núpcias… Aquele iluminado sorriso de quem contemplasse a Verdade primeira e absoluta face a face! Terminou a luta, ela é que é trágica, não o fim, parece uma estranha presença dizer em torno dela… Que misterioso silêncio a envolve !”
***
"– E, desde então... Há momentos em que eu próprio já nem sei se Silene é real ou reminiscência de sonho... Na quietude de certas horas, porém, Silene vem a mim tão de manso que basta eu voltar a cabeça para percebê-la. Silene! Ah, o sortilégio de sua pálida face de lua!"
Sentou-se; e, pousando bruscamente a cabeça sobre a mesa ouviram-no soluçar. Então os que o ouviam compreenderam que naquele fantástico relato havia alguma coisa mais que um simples capricho de imaginação, e não ousaram interrogá-lo.
Já a madrugada se anunciava nas vidraças da sala. Aquela hora tão ansiosa, tão longamente esperada, chegava enfim como uma benção... A caminho ! Ergueram-se todos prontamente; e, entreolharam-se num momento em silêncio, partiram à aventura, para o desconhecido, sob a tímida claridade da aurora...
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