Xavier Placer
Para Djanira, Pintora.
O SEGREDO
UMA bola. Imensa, imensa. Ele está dentro ou fora da bola?Onde? É de noite ou de manhã?
Deitado na cama, sozinho, o menino doente povoa de imaginações a penumbra silenciosa do pequeno quarto. Diante de seus olhos, o mundo vai e vem, sobe e desce, lento…
Súbito, rodopia. Ele se agarra desesperadamente a qualquer coisa. Aonde o levam? “– Para o cavalo voador!” Cavalo diferente. Ah, não é cavalo, é um avião.
Abandonou-o no cume daquela montanha. Prru… Ele sabia que o pedaço de gelo ia despencar. Não falou, mas sabia. Onde estão os outros meninos? “ – Guile! Fred!” Debaixo do gelo, mortos. Coitados.
Agora aquela coisa ondulante, pegajosa, líquida. Ele bóia docemente; docemente deixa-se levar… Água. Água morna. É o mar. Podia ser o Lago Constança, aquele… Aquele, sabe? Mas não, é o mar.
Por que Clarita não veio à praia com ele? Tão bom, se ela tivesse vindo “– Clarita! Ó Clarita!”
Está ali, mas não responde. É que não gosta dele… “– Clarita, venha cá! Olhe, eu quero dizer uma coisa a você, venha!”
Inútil. Levantaram ali um muro com tijolos de brasas. Para separá-los, somente. Que ruindade! Se pudesse levantar-se…
Ouviram? É a voz de Clarita. Quando fala assim – não ouviram? – quer dizer que já vem, sabe?
Um, dois três, quatro… Como demora! Não é possível, decerto enganou-se.
Joana. Sempre aquela intrometida da Joana. Pensando que não ia conhecer a voz dela… Mas não sabe que ele não gosta dessa brincadeira? Porque mamãe não manda Joana embora? Além de tudo, mexeriqueira. “– Dona Conceição, Bertinho e Clarita estão no fundo do quintal brincando de marido-e-mulher”.
Só porque sabe que mamãe briga, não quer que brinquem daquilo. E por que também mamãe proíbe? Não é uma brincadeira igual às outras? A mãe do Guile não é assim. Nem a de Fred…
Dona Cló, a professora, interrompia a leitura. “– Sinônimo de mau, Bertinho?” Respondia: “– Ruim, dona Cló”. “– Sim; outro”. Não sabia. “– Oh, tão fácil! Severo, perverso… Continue a leitura”.
Não é nada disso. Que lugar mais escuro, meu Deus!
“– Silêncio! Silêncio!” Oh, aquele ruído de água caindo, que não para! Pin, pin, pin, pin… será a chuva no tinhorão da varanda? Que será? Calou-se; decerto é o vento que empurra os pingos… Recomeçou, pin, pin, pin… Se afastassem o vaso um pouco, uma coisinha de nada, o ruído cessaria. “– Joana, ó Joana!”.
Uma gruta. Que querem fazer com ele? Também como foi deixar que o trouxessem para ali? Aquele peso nos braços e nas pernas… Com certeza incharam. Compreende: é que amarraram pedaços de chumbo para ele não fugir. Agora não tem outro remédio senão ficar naquela prisão o resto da vida, para sempre, para sempre!
“– Clarita, ó Clarita! Ouça aqui uma coisa, olhe, eu não posso sair, venha cá!”.
Esqueceu-se dele. Quem sabe até se não está brincando com Guile ou Fred? Sim, sim; e é por isso que consente que ele fique preso. Até ela, até Clarita!
Quem a chamou? Ninguém? Não é possível, ouviu bem claro: – “Ber-ti-nho!”
Atrás do guarda-roupa – ele viu – tem alguém. Um vulto alongou-se pelo fio da luz, escondendo-se ali. Não está sonhando, não. Viu direitinho: era fino e comprido, uma cobra.
Ah, botou a cabeça de fora. Estão vendo, uma cobra! Que olhos, que olhos! Bicho ou gente? Gente não é… Como o fita friamente! Quer devorá-lo. Lá vem se aproximando. Tio Nelson! Ora, e teve tanto medo! Mas que esquisito, pensava que o pai de Clarita houvesse morrido…
–“Tio Nelson! Tio Nelson !” Não responde; no entanto mexe com os lábios. Que estará dizendo? Será a alma do tio Nelson, que morreu? Ou saiu do retrato da sala? É isso, para espiá-lo. Por que mamãe não tira da parede o retrato do tio Nelson: para toda parte que vai, acompanha-o com aqueles olhos! Um dia até sorriu para ele. Havia chegado da rua, estava sozinho na sala… Quando olhou… Que susto, meu Deus! Saíra a toda disparada. E a mamãe: “– Que foi, menino? Que foi?” Explicara. “– Ora, deixe de bobagens, Bertinho”.
Agora está ali. Que quer dele? Nem se vai embora nem responde. Ah, com certeza é por causa daquilo. Quem lhe teria contado? Ele mesmo que vira? Mas não chegou a dizer nada a Clarita!
De volta da escola, à tarde. Estavam há tanto tempo no quintal, sozinhos, perto do tamarineiro (ou goiabeira). E o tempo ia passando, passando. “– Agora. Não, agora não, mais um instantinho. Agora”. E aquele instante passava, e vinha outro, e ainda outro e ele nada de falar. De repente, decidira-se, “– É agora”. Mas dentro do peito, o coração com força: toc, toc...toc, toc… E aquele aperto na garganta, o enxame de abelhas zum-zum na cabeça! “– Aí, hein, vou contar a dona Conceição!” Nem olhara para Joana. Trepara no tamarineiro (ou goiabeira) e começara a balançar um galho com fúria. Os tamarindos (ou goiabas) caíam… Clarita indefesa contra a chuva: “– Chega! Chega ! Chega!”
Não era tio Nelson. Papai! e ele não conhecer logo… “– Já vai, papai ?” Desapareceu. Se ao menos esperasse um instante, um instante só!
Sons de sino. Longe, longe… Agora o sino, cada vez maior, vem voando pelo espaço afora: blem, blem blem…
Mas é o trem. Chegando ou partindo ? Que horas são ? Tão forte a claridade na janela em frente! Por que não puxam a cortina ? Têm medo de que o sol pegue fogo na cortina. “– Você, Clarita ?” Tinha certeza de que ela viria, de que não se esqueceria dele. Como Clarita é boa! “– Olhe, Clarita, eu já vou!”
Sim. é um momento só, apenas enquanto mamãe lhe veste o terno à marinheira. Que fique onde está, que fique na janela do trem. Está demorando, mas não é de propósito. Já vai! É que mamãe não quer deixá-lo levar a bengalinha. Pode ir sem ela ?
Ao lado de Clarita. Enfim ! Oh, por que ela se afasta, porque não o deixa beijar-lhe os cabelos? Então não sabe que acha tão bonitas as tranças dela ? Bem, não insistirá. Mas dê-lhe a mão, somente a mão. Assim! Ah, se não a tivesse largado não teriam passado tanto tempo separados ! Como Clarita está bonita hoje! Foi mamãe quem fez para ela aquele vestido? Sim, sim, é um grande bobo; hoje não, Clarita é bonita sempre.
Deve falar mais baixo? Não tem importância. Não estão sozinhos no trem? Ah, tem uma coisa a dizer-lhe. Se ela soubesse! “– Eu vi seu pai, Clarita, eu vi tio Nelson !” Sim, disseram que morreu mas estão enganados. Se ele o viu ! Se Clarita quiser correr atrás dele ainda o poderá ver. Talvez esteja agora na sala.
Como? Clarita chora? Ora, para que foi contar-lhe que vira o Tio Nelson! Que lhe perdoe, sim! Depois não era nada disso que lhe queria dizer… “– Uma coisa, Clarita. Ou você vai ficar zangada, hein?”
Blem… blem… blem… O trem partindo. Sim, afinal! Há quanto tempo que fizeram pela primeira vez aquela viagem, hem! Clarita não se lembra da primeira vez que mamãe os levou a Petrópolis? Pois ele se lembra direitinho. Na viagem, uma moça que estava com um moço perguntou: “– São irmãos, minha senhora?” A mão de mamãe parara um instante de consertar a gola da blusa dele: “– Não, minha senhora, primos !”. A moça batera no rosto dele: “– Ah, pensei! Um parzinho de galhetas… “Então ele ia perguntar: “– Mamãe, que é que essa moça disse?” Mas mamãe Mas mamãe olhou para que se calasse. E as duas pegaram a conversar… Depois os meninos na subida da serra. Ah, Clarita não se lembra como eram engraçados, não? Ela até sabia arremedar direitinho: “ – Nal! Nal! Nal!” O moço que estava com a moça, riu, riu, riu. E na rua da estação, o carrinho com carneiro, e arreios e tudo, feito cavalo mesmo! Por causa do carrinho com carneiro eles haviam brigado em casa de dona Zuleica… Mas de noite trocaram de bem. E quando já estavam deitados, ela se levantara para ir buscar Nequinho para a cama. Coitado, fazia tanto frio e haviam se esquecido dele, nu, debaixo da cadeira da sala…
Chegaram ? Mas que depressa ! É sempre assim quando está com Clarita… por que será ? “– Clarita, ó Clarita ! Não, não é nada disso. É outra coisa”.
Depois. Sim, depois dirá. Não disse ainda por causa de mamãe. Como? mamãe ficou no trem, vai voltar? Melhor. Assim ficarão sozinhos, livres. E se não fossem para casa da madrinha dela ? Clarita não sabe que ele não gosta de dona Zuleica? Pois não gosta. Ora essa, porque ela é muito branca… igual a Guile, tão branca ! Ir aonde ? Por aí, passeando… Quando passarem juntos, as pessoas nas janelas dirão: “– Estão vendo ? Aqueles dois são Clarita e Bertinho !”.
Lago Constança. Sim, aquele que mamãe mostrou na fita de cinema. E aquilo ali é um dos canais, com as hortênsias. Clarita não quer ir pelo lado do canal ? – Na hora de atravessar a ponte pode fechar os olhos, pronto! “– Segure bem na minha mão, Clarita ! Assim, aperte com toda a força!”
Ih, como a água está ficando vermelha… Sangue ? Ou tinta ? Mas tinta é azul! Que é aquilo no rosto de Clarita ? Como os olhos dela se tornaram maiores. Se soubesse como fica bonita assim… Clarita com medo. Mas por que tem medo ? Ele não está ali ? Que Clarita espere, vai perguntar àquele moço se é sangue ou o que é. “– Moço, o senhor…”
Oh, Guile. Ah, é sangue, não é? Então é preciso falar baixo para Clarita não ouvir. Que é aquilo que Guile estende para ele ? Para ler ? Mas a letra de Clarita…
“Guile, eu gosto de você, meu amor, e você gosta de mim? Na hora da saída da escola de tarde me diga se gosta ou não. Eu gosto demais, tanto que não pense que gosto de Bertinho, que é meu primo. Eu gostava, mas como ele agora está doente eu deixei de gostar, mas de você…
“– Guile, Guile, não quero ouvir !” Não, ele conhece Guile, é tudo mentira, é tudo invenção dele. Clarita não ia fazer aquilo.
Clarita debruçada para dentro do canal. “– Cuidado, Clarita!” Queria uma hortênsia? Por que não lhe pediu? A azul ou a branca, qual é que ela quer? A cor-de-rosa? É dessa também que ele gosta…
Como, então vai aceitar a azul que Guile está colhendo? Oh, por que não disse a ele que gostava daquela ? Por que é maior ? Mas ele escolheria a maior de todas…
Clarita… Guile… Onde estão eles ? “– Clarita, ó Clarita !”
Desapareceu. Se tivesse antes dito aquilo a ela! Agora é tarde. Seria tão simples… Era só tomar as mãos dela entre as suas, olhá-la bem nos olhos e… Clarita, eu… Não, nem seria preciso dizer, Clarita compreenderia logo, logo.
Uma estrela no céu. Clarita? Há uma estrela – lá longe – no meio da noite. Mas a escuridão é tão grande… É tão grande e dói tanto !
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