Xavier Placer
Para Daniel Pereira.
L U C I L A
" Comme le cœur se détruit! comme la vie
passe avant de finir ! "
SENANCOUR, OBERMANN, lettre LXXXIX.
9 de abril.
APROXIMA-SE o dia de meu aniversário. Decididamente, não me compreendem em casa. Chamam-me de esquisitona, teimam em fazer uma pequena festa íntima. Já lhes disse e continuo firme no propósito; se fizerem alguma coisa, saio de casa pela manhã e só volto à noite, bem tarde, para dormir. Vamos ver. Não se mostram lá muito dispostos a ceder.
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10 de abril.
Como as horas hoje na repartição me pareceram longas! Há dias assim. Confesso isto a Lenita (a única pessoa no serviço com quem ainda me entendo um pouco), e ela: “– É sim, Lucila. Se a gente pudesse sair para a sessão das duas no Metro, que bom, hein Sorriu. Para que insistir?
Desejo de trancar-me no quarto, sozinha, não ver ninguém… Há certas vozes então que possuem o segredo de me exasperar! Entram-me pelos nervos a dentro como alfinetadas. Não compreendo como os outros não sentem, não percebem nada disso. Talvez porque se pareçam. Sim, são todos iguais e falam a mesma língua… E é assim num ambiente deste que tenho de mover-me, que terei de mover-me… Ou então… o casamento. O casamento! Eu, Lucila, casada, não seria mesmo engraçado? Este arrasador sentimento de ridículo que vejo em tudo… De onde me vem, meu Deus, e por que? Desencantamento? É incrível como se pode chegar a descrer de tudo antes de se ter provado a vida. O pior é que comigo isto se dá nas mais pequenas coisas. Estou por exemplo sentada em frente de minha máquina, na repartição. Nisto entra uma “parte” para reclamar um processo do chefe da seção. Dr. Silveira levanta-se, oficioso “– às suas ordens, meu amigo”. Dali a pouco ouço-o com ênfase: “– Bem, isso é verdade. Mas agora o amigo tem que requerer de acordo com as disposições do decreto-lei tal, em combinação com o parágrafo tal, do artigo…” É quanto basta. Uma vontade irresistível de rir me assalta. Esforço-me por abafar no lenço este frouxo riso, mas qual! Engasgo-me, e chamo ainda mais atenção para mim. Levanto-me, deixo a seção. Dr. Silveira fica me olhando, severo, por baixo dos óculos; os colegas entreolham-se, como quem diz: “– É doida, doida varrida!” E dizer que não faço isto por ironia, pelo menos consciente, que nem sequer está em mim!
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13 de abril.
Felizmente cederam, não haverá nada em casa. Pela manhã mamãe me perguntou: “– Então, vai trabalhar hoje, Lucila?” “– Por que não? respondi-lhe – é um dia como outro qualquer”. Sim, exteriormente. Pois interiormente sinto-me triste, mais triste que nos dias comuns. Uma ponta de melancolia… Vinte e três anos! Considero o tempo que passou e não logro compreender como se foi tão depressa. Se ainda ontem era uma criança! Que criaturas contraditórias que somos! Quando tinha doze, treze anos, desesperava-me com a idade – queria ser moça. Vieram os quinze, dezesseis anos, depois os dezoito. E não experimentei nada do que na adolescência imaginara. Então era aquilo os dezoito anos ? Esqueci essas criancices, fechei os olhos com indiferença à fuga do tempo. Eis-me agora com vinte e três anos! “O temps, suspend ton vol!” De quem será esse verso ? Ficou-me de cor do tempo de colégio, lembro-me de que o traduzíamos da nossa antologia francesa. Como eu compreendo o que queria dizer o poeta, como eu o compreendo… Ó tempo, inimigo insaciável, monstro, que buscas nesta luta? para onde vais? detém-te um pouco!
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7 horas da noite.
Acabo de chegar em casa e encontro sobre a penteadeira, em meu quarto, uma carta. Não foi surpresa para mim. Diversas vezes durante o dia de hoje tive esse pressentimento. Nem foi preciso ver a letra do endereço para adivinhar -- Stélio. Decerto aproveitou a oportunidade de meu aniversário para uma declaração, sem dúvida decisiva para ele. Que devo fazer? Mas ainda tenho dúvidas, meu Deus? Está decidido -- vou devolvê-la fechada, amanhã mesmo.
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14 de abril.
Mais um dia de tédio e insatisfação, um dia sujo de cinza como tantos outros em minha vida. Há ocasiões – e isto está se dando a cada instante – em que me surpreendo, por assim dizer, diante de verdadeiros muros… Lenita veio dizer-me que a nova funcionária (chama-se Hilda, e é pequena e loira), me acha terrivelmente antipática. Meu Deus, que teria notado em mim? Esforço-me tanto para mostrar-me uma Lucila que não sou, e afinal de contas… Decerto Hilda me acha feia e devo desagradar-lhe com esta minha falta de jeito para fazer e manter relações, meu retraimento deve dar-lhe impressão de orgulho. Oh este incurável descontentamento de mim própria! Olho-me ao espelho: realmente, com este rosto comprido, estes cabelos corridos (por causa deles na escola chamavam-me de “cabritinha molhada”), estes braços longos, tão alta, nada tenho de atraente. Que será que Stélio viu em mim para tão absurdamente se aproximar? É verdade, esqueci-me de trazer a carta. E dizer que a pus bem à vista, para que isto não acontecesse… Preciso é resolver de uma vez esta entrega. Meu Deus, como é penoso tudo isto! Não quero abri-la, tenho medo… Se um acontecimento qualquer surgisse, um imprevisto que resolvesse bem essa situação!
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15 de Abril, sábado.
Têm razão as pessoas com quem convivo. Por que acordei esta manhã tão contente, Senhor, por quê? Realmente, sou absurda. Levantei-me mais cedo que de costume e não consegui dominar-me. Uma alegria louca, sem motivo, tomou conta de mim. Se não estivesse tão fria a manhã ia à praia. Comunico isto em casa. “– Sozinha? E num dia deste?” De fato, chego à janela e vejo o mar avançando de longe em ondas violentas contra as fortalezas da barra. Como é belo! Esta força selvagem do mar sempre me impressionou. Por que não somos nós, pobres criaturas, assim livres, indomáveis e poderosas ? Como a vida seria grande! Ideias, ideias, ideias… Melhor ouvir um pouco de música. Interessante, quando me sinto contente não gosto de ler. Acho que vou faltar ao serviço… Ou não? Bem, vou agora ao jardim transplantar um pé de margarida, colher um pequeno ramalhete de violetas para minha blusa de pintinhas – gosto tanto dela, com a saia azul! – e depois resolvo se vou trabalhar ou não. Só queria saber porque me sinto tão eufórica, tão leve e feliz. Como é bom estar viva, fitar o sol! O mundo acaba de ser criado: todas as coisas me pertencem. Obrigada, meu Deus, por tudo que me dás. obrigada!
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16 de Abril, domingo.
A gente de casa saiu para a igreja. Mamãe veio chamar-me às sete horas. Respondi-lhe que ia à missa das onze. Na verdade minha intenção é de não sair hoje de casa. Como me afastei de minha educação religiosa! Enfim, que fazer se nada disso tem hoje significado para mim? Também logo mais à tarde não pretendo ir às Mercedárias visitar Cacildinha. Quero aproveitar o domingo para continuar a leitura do romance que comprei ontem: O IDIOTA. Que criatura admirável aquela Natásia Filipovna! Gostaria de conhecer uma pessoa assim. Ah, que grande amiga eu faria dela!
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Madrugada.
Noite inteira em claro. De início tentei agarrar-me ao enredo do romance, mas foi inútil. A leitura, em vez de acalmar-me, angustiava-me cada vez mais. Levantei-me e abri a janela. O ar fresco da madrugada serenou-me um pouco. Julguei que a coisa passasse, porém… Quando dei por mim, vi-me com a carta nas mãos. Esta carta é meu desespero, a minha angústia. Como estará interpretando Stélio o meu silêncio? Abri-la? Mas se o fizer não a poderei devolver; e uma resposta de minha parte se imporá… e com maior urgência. A letra dele. Belo talhe de letra. Que me dirá Stélio? Sem dúvida é um novo apelo, talvez patético, como aquele que me fez pessoalmente no início desse nosso singular namoro – e já se foram desde então dois anos! – quando não lhe havia ainda proibido que se aproximasse de mim: “– Lucila, olhe como o tempo vai passando e como nós o estamos deixando passar inutilmente! É o melhor talvez de nossa vida. Pense, reflita, seja sensata. Veja que eu não lhe peço que me ame, não, que somente aceite o meu amor… Que me suporte”. Nessa tarde Stélio me acompanhou até Niterói, mau grado os meus protestos. Fazia seis meses que nos conhecíamos… Quantas vezes depois não o vi seguir-me na viagem! Oh meu Deus, que devo fazer? Uma vez que não lhe devolvi a carta no primeiro dia, agora é tarde. Mesmo que lha devolva fechada, a demora já traiu minha indecisão. Senhor, inspira-me uma conduta razoável!
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17 de Abril, 9 horas da noite.
Como são aborrecidas as segundas-feiras! Há quem diga que a sexta-feira é dia aziago. Não; não é a sexta, mas a segunda. Pelo menos para mim. Fui para a repetição nesse estado de espírito e, para cúmulo do azar, encontro Stélio no elevador. Encaramo-nos durante um segundo. Imagino como devo ter ficado vermelha… O embaraço dele também não foi menor. Tirou um cigarro, mas ao levá-lo à boca para acendê-lo, deixou-o cair. Irrefletidamente abaixou-se para apanhá-lo; compreendeu a tempo o absurdo do gesto e teve um vivo movimento de impaciência: “– Ora!” Que eternidade me pareceram os breves segundos de ascensão! Não posso garantir se Stélio me cumprimentou, de minha parte também não sei se o fiz… Não compreendo como o suportei. Oh como transformo o amor num sentimento absurdo. doloroso! Que quero eu afinal?
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18 de Abril.
Estranha magia de música – até a mais vulgar – sobre a alma da gente! Não há dúvida, foram as valsas do músico ambulante, na barca, que me puseram neste estado de espírito. Era um rapaz moreno, barba crescida e cabelos em desalinho, ar displicente de vagabundo. Mal a barca largou dirigiu algumas palavras às “distintas pessoas presentes” e pôs-se a tocar um instrumento – uma caixa rústica, espécie de bandolim com som de guitarra. E a barca veio jogando todo o tempo, num doce balanço tão em harmonia com as valsas e choros do rapaz! Foi enquanto o ouvia que decidi comigo abrir a carta de Stélio. E, conforme fosse, dar-lhe uma resposta favorável. Por que não? Terei acaso direito de duvidar ainda da sinceridade de seu amor? Tudo isso vim meditando em viagem, porém ao chegar agora em casa… Dir-se-ia que o milagre se desfez, que já não sou a mesma de há pouco… Sim, diante da realidade falta-me coragem, tenho medo. Como sou covarde! Impossível que um dia não pague, e caro, estas fraquezas!
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22 de Abril.
Três dias de um tédio sem nome. Horror a tudo, nojo de tudo. Já disse em casa, precisamos nos mudar de Niterói, e quanto antes. É a cidade mais ridícula do mundo. Que coisa horrível, todos aqui se conhecem! Estes dias, tanto na ida como na volta, tenho sido obrigado a viajar com pessoas tão aborrecidas. “– Então, dona Lucila”, pergunta-me o Dr Peixoto, “quando saem os doces?” Completando esta série de acontecimentos aborrecidos, novo encontro com Stélio. Desta vez li-lhe nos olhos: está ansioso pela resposta, espera-a ainda e parece disposto a esperá-la indefinidamente. Deu-me a impressão de andar mais magro. E eu que tenho andado pensando em devolver-lhe a carta por intermédio de Lenita. Meu Deus, existirá pessoa mais indecisa, mais absurda que eu? Afinal por que não me resolvo? Sim ou não, e pronto, estava tomado um rumo. Como se portaria ele no caso de um não? Será que desistiria? Se tivesse certeza que sim… E enquanto isso os dias se passam. Se um incidente qualquer decidisse tudo… Mas como? Não; só resta uma solução: tenho que desaparecer por uns tempos. O melhor que faço é requerer férias. Talvez alguns dias em casa de tia Lota, no Alto da Boa Vista, me façam bem. Dr Silveira anda de tão má cara para mim! E o pior é que eu própria lhe dou razão. Como funcionária sou um fracasso. Aliás em que não o sou? Por que existirão criaturas como eu, e para que? No entanto mamãe e papai são pessoas tão normais, tão simples… E Cacildinha, meu Deus, que inocência de quinze anos! Se fosse outra, apesar da idade, podia ter nela uma confidente destas minhas angústias. Como é horrível, trágico, ser só absoluta, irremediavelmente só !
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24 de Abril, segunda-feira.
Requeri férias hoje, Lenita disse-me que ontem viu Stélio na praia com um grupo de rapazes. Estiveram algum tempo conversando, depois ele se afastou com outro para pescar do alto de uma rocha. Quis perguntar a Lenita umas coisas sobre Stélio, mas não tive coragem. Ela talvez fosse depois contar-lhe, talvez. Aliás que direito teria eu de indagar sobre as amizades femininas dele ? A própria Lenita seria a primeira a sorrir…
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25 de Abril.
Entro em férias amanhã. Não vou para o Alto da Boa Vista, mas para a casa de tio Miguel, em Teresópolis.
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26 de Abril.
Vou viajar hoje à tarde. Pela manhã fui à casa de Lenita pedir-lhe que devolvesse por mim a carta a Stélio. Mas que luta, meu Deus, para me decidir! Ao abraçá-la, à saída, estive por um triz para pedir-lha. Lenita notou qualquer coisa “– Então, Lucila, é somente entregar mesmo?” “– Sim”, respondi-lhe, sabe Deus com que aperto no coração, “– sim, Lenita, não é preciso acrescentar mais nada”. Em todo caso, antes assim! Pronto, quando voltar, Stélio terá desistido, inicio vida nova. Quero esforçar-me, em Teresópolis, por passar umas boas férias. Isto é, aproximar-me da natureza, da vida simples… Embrutecer-me. Nisto, e somente nisto, está a minha salvação.
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3 de Maio.
Não, não tenho vocação para o campo. Meu lugar é na cidade; compreendi agora que só me agrada a solidão no meio dos outros, do tumulto. A solidão material, e por largo tempo, põe-me numa angústia enlouquecedora. Eis-me de volta de Teresópolis. Bastou uma semana para que não suportasse mais a pequena cidade…
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2 horas.
Acabo de conversar com Lenita pelo telefone. Não a compreendo, Lenita não é assim… Mostrou-se tão misteriosa.
“– Então, Lucila?” “– Pois é, Lenita, já estou de volta”.
“– Mas…” “– Que é, criatura?” Calou-se. Quis que me dissesse se era alguma coisa boa ou má, ao menos. Negou-se. Que fosse logo mais à casa dela. Prometi-lhe que iria amanhã.
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5 de Maio.
Que dia terrível o de ontem para mim! E que dias de agora em diante… Antes me tivessem deixado ficar em casa de tio Miguel. E até agora não saber eu de nada, de nada! “– Stélio morreu afogado, Lucila”. Não, não é possível, é tudo um sonho mau, nada disso é assim, não pode ser, absurdo. Os jornais que ela me deu trazem a data de 1º de maio, segunda-feira. Pela centésima vez, desde ontem, contemplo neles o retrato de Stélio, releio a notícia: “Na manhã de domingo último, no Arpoador…” Oh, é terrível! Quatro dias depois do meu embarque. Pensar que enquanto passava meus dias em excursões a cavalo, as noites agarrada à eletrola de tio Miguel… E Lenita me afirmou que no serviço todos são de opinião de não se tratar de um simples acidente. Dois dias antes, ele que raramente faltava, não compareceu ao serviço. Os que falaram com ele, pela última vez, lembram-se agora de que Stélio se mostrou terrivelmente sombrio, monossilábico. Meu Deus, e quem foi a causa desta desgraça senão eu? Como não previ a possibilidade de um fim deste, como? Eu tinha obrigação de adivinhá-lo… para mim não há desculpa. Quando eu esperava por um imprevisto, por um súbito milagre que levasse para bom rumo a nossa situação, o que fazia era apenas deixar-me guiar pelo egoísmo, pela pequenez de meu miserável coração incapaz de se decidir, incapaz de amar, incapaz de coisa alguma…
Lenita. Admirável amiga! Stélio indagou dela que era feito de mim, logo nos primeiros dias de minha ausência. Deu-lhe a notícia de minhas férias, mas teve o bom senso de não lhe devolver a carta. Não concordara com a indelicadeza de meu gesto e, de volta, esperava de minha parte que eu tivesse mudado de opinião. Admirável Lenita! Como você me conhece, como no fundo, com sua compreensiva serenidade, você há de sorrir de mim!
“– Stélio morreu”. Eis a única realidade para mim. Como tudo agora me é indiferente, como ficou vazio o mundo, aos meus olhos! Parece que eu própria morri pela metade. Ficou apenas a consciência, terrivelmente lúcida, para ver, para analisar tudo. Estranha lucidez. Vejo as coisas, considero sentimentos e fatos – e tudo me parece tão simples, tão sem véu nem mistério… Tenho medo desta lucidez. Quero de novo me perder nas coisas, no sentido comum que lhes dão. Vou sair. Preciso ir ao cemitério, preciso ver o túmulo de Stélio. Onde fica, onde? Não importa, eu mesma o descobrirei. Onde houver uma sepultura com flores murchas… Oh, mas por que não me mandaram avisar, por quê? Podia tê-lo visto pela última vez, ao menos… Por que não me avisaram, Senhor? Eu ainda o veria… Eu o veria morto, mas seria ele, Stélio. Mas que faço a devanear assim desde ontem? Preciso ir ao túmulo de Stélio. Só isso me tranquilizará, só isto. Irei lá sozinha. Não é preciso saber onde fica. Ali onde houver rosas murchas, muitas flores murchas… Flores murchas, rosas. Que quer dizer isto? Não, não existem flores murchas. E as rosas não morrem nunca, são como o amor. Eu as vejo acenando as suas rubras corolas para mim; como são perfumosas, como estão vivas! Elas acenam para mim; são as rosas de meu noivado com Stélio. Que faço aqui? Stélio espera por mim – marcamos um encontro no mercado de flores. Que faço aqui? Depressa, Lucila, depressa, que Stélio espera com impaciência por você!
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