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Para Luiz Augusto de Medeiros.

ROMANCE URBANO

          " O amor para mim sempre fora uma coisa    

  dolorosa, complicada e incompleta."           

 

                          GRACILIANO RAMOS, Angústia.    

 

 TUDO nela era discreto e silencioso, Não direi a cor de seus olhos, pois eu mesmo nunca reparei neles. Talvez fossem claros, é possível que até azuis e grandes... Não sei. Ela era dessas mulheres a quem a gente não ousa fixar abertamente. Pergunto-me agora o que me teria atraído para ela. A beleza? Não. Não, porque não era bonita. Pelo menos no sentido vulgar que os homens emprestam a essa palavra, referindo-se às mulheres, não o era. Para chamá-la de bonita, seria preciso entender de outra forma a beleza. Havia nela qualquer coisa de indomável, de muito áspero, seco. Estranha, eis a palavra. Saberia acaso disso ? Tão diferente das outras! Em tudo. Quando andava, fazia-o ligeira, passo esquivo de corsa, sem atentar em nada a seu redor, muito concentrada. Terrivelmente grave, sempre. Dir-se-ia absorvida por uma ideia intima qualquer. E que simplicidade no vestir! Difícil encontrar outra que soubesse tão bem ficar nesse justo limite entre a extrema sobriedade e o bom gosto. Não, ela era única. Nunca vi assim.

    Como era alta, esguia como uma figurinha egípcia, usava sapatos rasos, pretos, sem um enfeite. O único detalhe acentuadamente feminino, e que aliás parecia merecer-lhe um cuidado especial, eram os cabelos. Realmente, como sabia tirar partido de sua abundante cabeleira castanha! Certos dias trazia-a em tranças, outros dias, solta sobre os ombros, outros ainda… Oh, mas que não sabe inventar a imaginação das melhores para angústia da gente?

    Outro detalhe que me feriu logo de início a atenção: sempre sozinha. Curioso, porque sozinha? Viajando em horário tão certo, devia ter emprego, talvez fosse uma pequena funcionária… Como se explicava então que não tivesse amigas, ou simples conhecidas? Faltar-lhe-ia a capacidade para tê-las? Nesse caso, que criatura singular! Não, nunca vi assim. Ela era única.

     Ó esquiva desconhecida a quem eu já me habituara, inserindo-te para sempre em minha vida; ó tu a quem eu já ousava chamar, e foi meu erro, “a minha pequena” que rumo tomarás? Não mais te verei pelas manhãs e às tardes? Mas que farei daqui em diante com as lembranças que me deixaste? Que farei de teus cabelos castanhos, de tua mão, já tão minha, tão minha? Foi há uns seis meses, lembras-te?, que isso começou entre nós… Isso que? Será que alguma vez acaso me distinguiste entre os outros teus companheiros de ônibus? Não creio. Conheci-te tanto, e nem sequer sei o teu nome! No entanto… Agora tenho apenas diante de mim uma série daqueles dias sombrios, daqueles dias sujos de cinza, que eram os dias em que não te via, eu sei. E foi pena. Que par poderíamos fazer! Se soubesses, teria tanta coisa  a dizer-te, tanta! Talvez tu risses de mim, quem sabe? Mas eu não te quereria mal por isso. Antes acabaria rindo contigo… Pois bem sabia que, de repente, haverias de ficar muito séria, me olhando. Então eu me calaria também, porque o milagre esperado se havia realizado. Oh, o mistério do Amor! Nesse lírico silêncio, a compreensão brotaria como uma flor, como uma estranha flor entre nós. “Querido!” dirias muito baixo. E eu:   “Querida!” E não seria preciso mais nada. Tudo estaria bem: os homens, o mundo, a vida… A própria vida. 

       A alegria de recordar os primeiros dias em que a descobri… Então, ela andava com um livro, decerto um romance. Entrava no ônibus, abria-o numa página e mergulhava na leitura. Com prazer enchia eu depois, em casa, as horas de sua ausência! Certos dias, passava a viagem inteira sem retirar dela os olhos, ela sem retirar os seus do livro. O vento da praia entrava pelas janelinhas do ônibus em disparada, alvoroçando-lhe a cabeleira castanha. Tinha o cuidado, lendo, de ajeitar os cabelos, Passava a mão por eles, num gesto lento. às vezes a mão se detinha um instante… Eu contemplava aquela mão: era grande, dedos compridos e morenos, as unhas sem pintura e arredondadas. Nenhum anel, nada. Antes assim, não era portanto para exibi-la, pensava. Arrependia-me, em seguida, de ter admitido tal hipótese e desgostava-me. Para exibi-la por quê ? Tolo. Não estava logo vendo? Não era dessas, ela não podia sê-lo… A mão desaparecida demorava a voltar. Era a leitura talvez que a retinha. Absorto, deixava-me à espera. Afinal vinha mais uma vez passear pela cabeleira e eu de novo me esquecia a contemplá-la. Como seria bom tê-la entre as minhas, apertá-la! Devia dar uma sensação de coisa seca, muito seca, porém uma secura quase macia…

      Mas o curioso era isto: se acontecia eu de tomar o mesmo banco, evitava-o. Uma tarde em que chegou atrasada, ficou de pé. Casualmente diante de mim. Passei a viagem inteira pensando em oferecer-lhe o meu lugar, mas a coragem não me ajudou. Sentado, seu braço roçou duas ou três vezes em meu rosto. Pois retraí-me, não fosse julgar aquilo proposital de minha parte. E nesse dia tive mais um detalhe interessante: nenhum perfume!

       Entrei daí em diante a preocupar-me seriamente como se poderia chamar. Abandonei-me em conjecturas. Se fosse loura era fácil: Vanda, Cibele, ou… enfim, qualquer desses nomes modernos, às vezes imprevistos, às vezes extravagantes. Pequena e engraçadinha, um diminutivo: Vaninha, Dorinha… Mas morena e alta, sem pintura, lacinhos nem perfume, como se chamaria? Levei vários dias preocupado com esta séria questão. Bem, podia sabê-lo pelo livro. Era só no dia seguinte chegar atrasado, não arranjar lugar e ficar de pé a seu lado. Quando abrisse o livro… Mas, quando no outro dia entrei no ônibus, já estava acomodada junto à janela, de livro aberto, com um sujeito gordo ao lado. Nem de propósito: mal o ônibus partiu, o sujeito gordo pôs-se deseducadamente a ler-lhe o livro por cima do ombro. Ela olhava-o de quando em quando de soslaio, mordia os lábios, encolhia-se mais e mais para o canto. De súbito fechou o livro, colocou-o sobre a bolsa e, cruzando por cima os braços, lançou um olhar mau para o gordo, que pareceu nem se dar por achado. Ingênuo. Eu, que não pude conter um sorriso, tão cômica me pareceu a cena, procurei-a com os olhos. Não sei porquê esperava dela um olhar naquele momento “ Viu o que estava fazendo este sujeito?” “ Sim. E você agiu muito bem”, dir-lhe-iam meus olhos. Mas pôs-se a espiar para fora, alheia e distante.

        Senti-me ferido com aquilo. Mudamente, comparava-me assim ao sujeito gordo. Será que não fazia uma distinção entre ambos? Orgulhosa. Que interesse podia oferecer a rua, porque não voltava a cabeça? Orgulhosa. Igual às outras. Ou pior. A certa altura, desceu. O sujeito gordo tomou o lugar que ela ocupara junto à janelinha, enquanto eu via meio corpo seu caminhando lá fora. Quando desapareceu de todo, tomei o lugar vago do gordo.

        Afinal este desceu também, duas paradas adiante. Ótimo. Tomei o lugar que havia sido ocupado anteriormente por ela. Mas pareceu-me profanado pela interferência, ainda que rápida, do gordo, e não senti o que imaginara, contentei-me em recordá-la, meio alegre, meio triste.

    Foi nessa ocasião que, para desespero meu, se sumiu alguns dias. Estaria doente? Que fim teria levado “a minha pequena”? E se tivesse desaparecido definitivamente? Levei perdendo o ônibus pela manhã e à tarde, à espera. Inútil, não aparecia. Uma noite, naqueles dias de ausência, dias de longas horas escuras em que tudo me corria às avessas, sonhei com ela -- Na tarde quente, o ônibus disparava pela praia afora, buzinando. Eu estava sentado, triste, aborrecido, por causa do seu desaparecimento. Súbito, via-a entrar. Sentou-se ao pé de mim, puxou a saia nos joelhos, num gesto espontâneo, e abriu a bolsa. Tive a sensação agradável de que ia conhecer-lhe toda a intimidade. Arregalei os olhos, à espera da revelação. Que teria dentro? Talvez um pequeno lenço onde visse o seu nome… De fato, lá estava no fundo da bolsa o lencinho esperado, muito fino e branco. Em uma das extremidades um nome bordado. Tirou-o, dobrou-o em quatro, com o nome para cima, e ia oferecer-me, quando uns dedos suarentos e grossos, cobertos de pelos ruivos, se interpuseram brutalmente. Reconheci a mão do homem gordo. Maldito sujeito! gritei, atirando-me àquela coisa que já não era a mão; ao meu gesto voou pelos ares, desfazendo-se em centenas de fragmentos que se espalharam pelos bancos vazios. A moça que já não era mais ela, conteve um grito, levando a mão oh aquela mão tão minha conhecida! aos lábios. Nisso estremeci, como quem se despenha por um precipício e reconheci-me sentado à beira da cama.

    Encontrei-a pela manhã. Na tarde desse mesmo dia viajamos de novo juntos. Que satisfação! Depois de tudo, era como se a tivesse enfim recuperado, como se agora me pertencesse para sempre. Talvez seja absurdo me expressar assim, mas foi o período melhor do nosso “romance”. Sim, pois não sei por que feliz capricho do acaso, mas daí em diante acontecia vê-la todos os dias…

        Pensar que hoje tudo acabou como uma bolha de sabão que os meninos atiram para o ar! Eles inflam as bochechas, a bolinha cresce, cresce, depois se desprende do canudo e lá vai, espaço afora, trêmula, irisante… Num momento: pzuf!

    Eis o epílogo. Estava fazendo hora num café a ler uma revista antes de seguir para o ponto do ônibus quando, inexplicavelmente, um pressentimento me assalta. Ia vê-la. O coração começou a bater-me com força. Ia vê-la. E eis que, levantando os olhos da leitura, dou com ela em minha frente.

    Ao primeiro olhar quase a desconheci, cheguei mesmo a duvidar da realidade. Que queria dizer aquela mudança? Vestia um costume marrom, avivado no peito por um pequeno lenço branco, sapatos altos, da mesma cor da roupa e, completando a “toilette”, um extravagante chapéu onde um pássaro enorme apontava para o alto um bico ousado e vermelho. Notei também que estava levemente pintada, e, em lugar do livro habitual, segurava com a bolsa um par de luvas. Como estava bonita! Passou-se tudo tão rápido que, por um instante, tive a certeza absurda de que se dirigia para mim, que havíamos marcado aquele encontro pouco antes, pelo telefone… Creio que cheguei a ensaiar um movimento;  felizmente refleti a tempo de não cometer uma asneira.

    Passeou um olhar sobranceiro pelas mesas; em seguida, tendo avistado a pessoa que procurava, dirigiu-se para ela. Era um rapaz que eu vira entrar comigo e que se deixara estar, o queixo apoiado na mão, fumando e observando. “ Você estava me esperando há muito?” Ele, que se levantara puxando-lhe com presteza uma cadeira, fez um gesto amável que não. Sentaram-se.

      Passei dali em diante a observá-los pelo espelho. E ela, como parecia feliz com aquele encontro, que ternura no olhar! Por sua vez o dele não falava outra linguagem. Não os tirava dela um segundo. Vi o garçom aproximar-se. O rapaz consultou-a, ela escolheu logo qualquer coisa. Que criatura simples! As outras não sabem o que querem, criam logo um caso, é uma complicação. Ela não: Isto e está acabado.

    O garçom voltou dali a um nada, serviu-lhes sorvetes. Enquanto o tomavam entraram a conversar em voz mais baixa. Em certo momento ele apertou-lhe a mão, os olhos nela, e ouvi-o:  “ E se você tirasse o chapéu,  querida?”   “ Tirar?”  “Sim.” 

– Por que?” “ Não lhe fica bem…” “ Mas não foi você mesmo?...” Ele sorriu: “ Sim, fui eu quem lhe pediu que viesse com ele. Obrigado. Mas vejo agora que não lhe assenta, não sei… Quando você entrou quase não a reconheci. Você não é dessas, querida!” e  passa-lhe  a  mão pelo braço.  “Vou tirá-lo,  então!”

Ótimo”.

 

***

   Ergueu um pouco o busto e levou as mãos para fazê-lo. Senti um calafrio. Julgara aquele rapaz de início um namorado, na minha surpresa chegara mesmo a tê-lo (e agora estava certo disso), em conta de um simples conhecido… Entretanto, a realidade brutal daquela aliança em sua mão direita!

    Noivos, murmurei. Noivos, noivos… fiquei repetindo sem poder acabar de crer, e de súbito (no mínimo, o que eu queria era decerto compará-lo comigo), invadiu-me uma intensa curiosidade de ver melhor o rapaz. Estiquei o pescoço. Era um moço simpático, olhar inteligente, e se não trajava como um elegante também não vestia mal. Lembrei-me de sua observação de há um instante “você não é dessas, querida!” e refleti: em todo caso, eis um rapaz que a compreende como eu.

    Aqui ele fez um gesto para o garçom, pagou a conta; puseram-se de pé para sair. Mas qualquer coisa caiu das mãos dela. Ele abaixou-se,   solícito,   para   apanhá-la.   Era   uma   das   luvas.

– Obrigada, querido!” disse tomando-lhe do braço, o chapéu na mão. Vi-a sair, sorridente. Como toda ela, um sorriso discreto e silencioso.

    Deixei o café, encaminhando-me pensativo para o ponto do ônibus. Ou antes, foram as pernas e o hábito que me levaram. Ao ver  o  carro  encostar,  lembrei-me   de   súbito  de  seu   sorriso

Obrigada, querido!” e senti-me tão só, tão abandonado e só, que não compreendi como viera ter ali. Por que não os havia seguido? Podia tê-lo feito à distância. Onde Iriam? Agora era tarde, não mais os veria… Então afastei-me dali, andando à-toa entre os transeuntes numerosos e indiferentes “ Obrigada, querido! com um peso mortal no coração.

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