Xavier Placer
Três dias depois desta conversa com Padre Tobias, Monsenhor Henrique mandou-o chamar.
Acabavam de fazer a oração da noite. Cesário dirigiu-se ao quarto do velho padre com o coração batendo.
Quando naquela tarde Padre Tobias lhe perguntara se havia mesmo decidido a saída com o diretor espiritual e lhe respondera: “já, já está tudo resolvido”, não havia dito a verdade. Por outro lado, também não mentira. Realmente não havia decidido nada com Monsenhor Henrique, mas fora naquele momento que a resolução de sair se apresentara clara e ficara assente de uma vez em seu espírito. Sim, sairia.
E daquele momento em diante só se preocupara com uma coisa: escrever uma longa carta ao arcebispo comunicando-lhe aquela decisão, abrindo-se inteiramente ao velho prelado.
Bateu à porta do quarto de Monsenhor e ouvindo o seu “entra”, abriu.
– Boa noite, Monsenhor!
– Boa noite! respondeu o padre, erguendo-se um pouco na cadeira quando o seminarista lhe beijou a mão.
– Está aqui o seu livro, Monsenhor … disse Cesário, esforçando-se para dominar o embaraço.
– Sim, sente-se aí.
Obedeceu. Fez-se um breve silêncio. Depois Monsenhor começou:
– Porque não tem aparecido, meu filho?
– Estive aqui uma tarde destas, Monsenhor, mas como não estava…
– E porque não insistiu?
Cesário baixou a cabeça.
– Eu não lhe havia recomendado que aparecesse, meu filho?
Fez-se novo silêncio, desta vez mais longo.
– Leu o livro? falou ele apanhando a brochura e entrando a folheá-la numa calma que pareceu a Cesário não despida de intenção.
– Li, Monsenhor.
– E quanto àquela outra recomendação, preparou-se para esclarecer-me?
Cesário ergueu a cabeça e fixando o diretor espiritual:
– Monsenhor, quero ser logo franco. É inútil o senhor perder tempo comigo. Eu decidi deixar o Seminário e quero apenas, peço-lhe, que o senhor me deixe partir imediatamente.
O padre encarou-o fixo:
– Mas num passo destes o senhor quer guiar-se somente pela sua cabeça?
– Conversarei depois com o senhor arcebispo…
– Mas o seu diretor espiritual sou eu, o senhor deve explicar-se comigo. Afinal qual é o “motivo”, ou por outra, quais os “motivos” de sua decisão?
– O senhor está dando importância demais aos motivos. Não importam, Monsenhor.
– Não importam? Como não importam? Que está dizendo?
– Eu não tenho motivos, Monsenhor.
– Não tem motivos? e o padre inclinou-se para ele com um sorriso irônico.
Cesário sentiu-se humilhado com esta atitude e foi dizendo o que lhe veio à cabeça:
– Quero sair. Acho que devo sair. E sinto que este imperativo, aparentemente sem lógica, é instintivamente sábio.
– Hein? Onde foi buscar essa história de “imperativo sem lógica, instintivamente sábio”, hein?
Havia um tom escarninho nestas palavras.
Cesário baixou a cabeça, em silêncio, mexendo nervosamente num botão meio despregado da batina. Passou-lhe pela ideia que devia pregá-lo… mas que talvez não tivesse agulha, nem linha… Ao ter consciência do que estava pensando, achou aquilo absurdo e fez um esforço para colocar-se na situação em que estava.
– Estou à espera, meu filho.
Que dizer-lhe, meu Deus? Aquela situação. Oh, horrível! Era preciso acabar com aquilo, depressa. Mas como, Senhor? No entanto era preciso!
– Monsenhor…
– Fale.
Conservou-se calado. Então Monsenhor:
– Saiba que isso são frases literárias, sem sentido real algum, ouviu? O que o senhor está é incapaz de uma ponderação sensata. (levantou-se). O senhor é muito orgulhoso! Mas ainda há de reconhecer isto e dar-me razão, não é o primeiro nem o último… (Pôs-se a passear no quarto. Que pensa o senhor que é o demônio? O demônio não é um símbolo dos instintos maus do homem, como dizem os inimigos da Igreja, o demônio é uma realidade. Mas eu compreendo os senhores! Quando estão sentados sobre a mola de todos os desejos, trabalhados por paixões, não atendem mais à voz da razão, é a curiosidade, é a ânsia de experimentar que os domina. (Monsenhor sublinhava com um tom significativo estas expressões, gesticulando). E atirando-se sem nenhum freio à vida grosseira dos sentidos, perdem totalmente o senso do moral, permitem-se tudo. É uma tristeza! (calou-se um instante, que pareceu a Cesário uma eternidade. E depois, como se falasse a si próprio): A mocidade não pensa, deixa-se levar pelas primeiras impressões. É uma tristeza! A mocidade não quer nunca chegar à conclusão alguma. Ama o abstrato, o que ela chama ideal. E a prática afigura-se-lhes sempre mediocridade, bom senso odioso dos adultos… (Voltou-se para Cesário): Mas está bem. Faça como entender. Naturalmente, “de interins nec Ecclesia”... Sim, nos casos de foro íntimo nem a Igreja. Que ela soube sempre respeitar a liberdade individual, isso soube! Maus, ingratos, são os homens. O senhor fez tabula rasa de tudo, perdeu a fé, fechou-se ao próprio egoísmo. Quem pode contra um coração empedernido? Sim, a soberba é a primeira no caminho do pecado, mas a última na do arrependimento. Non serviam. Não servirei! Mas quanto a mim lavo as mãos de tudo isto. Pergunto-lhe ainda uma vez: está decidido, não é?
– Estou Monsenhor… murmurou a custo Cesário.
– Bem. Pode ir!
Cesário ergueu-se e aproximou-se dele para beijar-lhe a mão, como era hábito. Mas, com surpresa sua, Padre espiritual não correspondeu.
As luzes nos corredores já estavam apagadas e o silêncio geral envolvia toda a casa, quando ele tornou a seu cubículo. Atirou-se à cama vestido como estava e deixou-se ficar.
Passando a mão pelo rosto sentia que as faces lhe ardiam, que as têmporas latejavam com violência. Mas a sensação de aniquilamento interior era mais forte, sentia-se arrasado. Nunca ninguém o ferira tanto com um gesto, com um simples gesto.
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