Xavier Placer
Passaram-se duas semanas. Cesário havia pensado longamente na história de sua vocação e naquela tarde, tendo voltado de novo à primeira resolução, decidira procurar o diretor espiritual.
Dirigiu-se para lá, ansioso por um encontro definitivo, mas ao bater à porta de Monsenhor Henrique um colega que passava no corredor, informou-o que o diretor espiritual não estava.
“Ora, não está! Como vai ser? Volto mais tarde?” Fez um gesto de descontentamento, mas seu rosto tomou de súbito um ar alegre: “Vou é conversar com Padre Tobias! Ótimo, foi bom mesmo ele não estar… Vou conversar com o meu amigo Padre Tobias!”
Bateu à porta de leve.
– Pode entrar!
– Boa tarde, Padre Tobias! Mas que é isso! exclamou quase involuntariamente, vendo o padre trepado numa cadeira a tirar as teias de aranha do teto, com um longo espanador.
– Ah, foi bom você aparecer! Vai me ajudar a fazer uma faxina no quarto. Ou está com pressa?
– Nada, vinha conversar com o senhor.
– Pois então conversemos. Imagine você que uma noite destas acordei sobressaltado… sabe o que era? Um rato, um enorme rato, me passando pela cama. Assim não é possível! Já pedi a “seu” Militão várias vezes para fazer-me este trabalho mas não me aparece… Resolvi hoje fazê-lo eu mesmo, e agora me chega você providencialmente… Vá passando inseticida nos livros, se isso não lhe desagrada e se veio para conversar não perca tempo.
– O senhor então declarou guerra de extermínio aos nossos irmãos bichos, hein, Padre Tobias! gracejou Cesário. E para não entrar logo no assunto: E vai ver que agiu com a moral do mais forte e nem lhes enviou um ultimatum!
– Ah, assim não é possível! respondeu Padre Tobias sem desviar a atenção do que fazia. O nosso bom São Francisco de Assis nunca viu o que era um rato a fazer-lhe avenida na cara… Isso já é cinismo deles!...
Estiveram a rir algum tempo; depois Cesário apanhou o inseticida e pôs-se a impregnar dela um grosso dicionário.
Agora estavam ambos calados.
– Padre Tobias, vou dizer-lhe uma coisa muito grave, muito séria!
O padre havia descido da cadeira em estava na sua frente.
– Que é, Cesário? indagou ele, tomando um ar sério.
– Padre Tobias, vou deixar o Seminário.
– Vai, não é?
– E eu que pensei que o senhor ia ficar surpreso, Padre Tobias!
– Pensou? Ora, se eu soubesse teria feito – Oh!. Agora é tarde! Mas deixemos de brincadeiras. Quer saber de uma coisa, Cesário? Foi nisso exatamente que fiquei pensando o outro dia, depois que você saiu do meu quarto.
– Quer dizer que concorda?
– Não, isso é lá com o seu diretor espiritual. A propósito, já decidiu mesmo com Monsenhor Henrique que sairá? Ele está de acordo?
Houve um instante de indecisão da parte de Cesário. Mas logo:
– Já está tudo resolvido. Diga-me porém o que mais esteve pensando a meu respeito na última vez que vim aqui, Padre Tobias.
– Isso, a possibilidade de você sair… Quer saber como foi o pensamento? Lembro-me bem, foi assim: “Que temperamento patético, tem esse Cesário!” É apaixonado demais para chegar ao sacerdócio sem passar antes por certas experiências! Naturezas como a sua nunca ficam em meio do caminho”. Lembro-me ainda que propus a mim mesmo: “Devo adverti-lo disto? Mas não, ele mesmo compreenderá. Aliás é preciso que chegue por si próprio a esse estado de amadurecimento, seria imprudência precipitá-lo, esperemos” Está aí o que me veio à ideia.
– Padre Tobias, o senhor disse que havia pensado: Naturezas semelhantes à minha nunca ficam em meio do caminho”. Que quer dizer com isso? Que primeiro eu tenho que conhecer o pecado para depois chegar a Deus?
– Quem é que diz isso, Cesário? Que ideia errônea faz você do mundo, meu Deus? Que pensa você que é a vida lá fora? Não, Cesário, a vida no mundo é muito difícil, muito árdua. Ai de você se deixa o Seminário para soltar as rédeas, então está perdido.
– Padre Tobias…
– Não, Cesário, eu o compreendo. O engano não é somente seu, não. Mesmo entre padres, tenho encontrado a mesma mentalidade… Mas não é assim, não, meu amigo. Não julgue que somente aqui se luta pelo espírito, absolutamente. O problema é se todos os homens. E lá fora há pessoas perfeitamente dignas de respeito, verdadeiros exemplos mesmo, para certos religiosos.
Compreendo, Padre Tobias. Quer também que passe inseticida nesta Bíblia?
– Sim, passa! Mas ainda bem que você me compreende. Isso, passa na capa. Porque veja bem, Cesário, há muitas maneiras de servir a Deus, era o que eu queria dizer. E para certos temperamentos o apostolado sacerdotal talvez seja o menos adequado. Pascal, Frederico Ozanam, mais perto de nós, um Kierkegaard, um Léon Bloy, eu poderia citar-lhe um bom número de nomes, não foram grandes santos leigos, hein? E os que o foram sem alcançar renome? Não é só de batina que se chega a Deus, em certos casos a batina é justamente um embaraço… Quem dirá, por exemplo, que Deus não o chama para um grande apostolado leigo?
– Também sinto assim Padre Tobias! A única coisa que temo em mim é a literatura! Tenho medo que a literatura me perca, Padre Tobias!
– Tem esse receio sinceramente, profundamente?
– Acho que sim, Padre Tobias, porque pergunta?
– Porque se o tem, pode estar seguro de que a literatura não o perderá. Você poderá de início deixar-se levar por alguma vaidadezinha, é humano. Mas para quem receia hoje isso, tal situação não subsistirá.
– Como o senhor vê tudo com simpatia humana, Padre Tobias! Tenho observado que a maioria dos padres aconselha sempre em nome de uma verdade abstrata, investindo sistematicamente contra o individual, enquanto que o senhor…
– Em parte você tem razão, Cesário! Para esses indivíduos a que você acaba de se referir existe o Decálogo… mas esquecem-se quase sempre do Sermão da Montanha. O Deus deles é do tamanho da alma egoísta deles. Para alguns já reparei que eu sou um verdadeiro herege… Mas que fazer? Não é com severidade que se levam almas a Deus. O pecador gosta que o tratem como irmão e uma boa palavra, um gesto compreensivo, conquistam mais almas do que ameaças de inferno…
– Será que existe mesmo o inferno, Padre Tobias? Às vezes tenho dúvidas…
– Cesário, existência de Deus, do inferno, virgindade de Nossa Senhora, todas essas coisas não se discutem. Mesmo porque, dialeticamente, há argumentos para tudo. Deixemos para as almas pequeninas essas questões. Na vida espiritual é preciso guardar muita prudência sobre esses assuntos, quer dizer, não criar obstáculos, que afinal não têm solução nem conduzem a nada, compreende?
Não percebeu muito bem a significação disto, mas não quis insistir. Lembrou-se de uma questão que há muito vinha propondo a si próprio e achou que o momento era conveniente:
– Padre Tobias, o senhor acha que havendo uma certa facilidade em observar… (hesitou um momento) em observar a castidade, isso é um sinal de vocação, e não havendo…
O padre teve um largo sorriso. E fixando-o nos olhos:
– Responda-me uma coisa, Cesário, mas responda-me confidencialmente, como se estivesse diante de seu diretor espiritual, você tem, veja que não digo facilidade, mas muita dificuldade em observá-la?
Não teve coragem de responder logo.
– De que se envergonha?
– Padre Tobias, o senhor tocou num ponto muito… como o caso da existência do inferno… muito delicado.
– Não acho, Cesário! Será que não tem confiança em mim?
– Então ouça, Padre Tobias: Eu tenho muitas, tenho bastante dificuldades nesse ponto, respondeu olhando de soslaio para o padre, a ver qual seria o efeito de suas palavras.
– Meu Deus, custou-lhe tanto esta confissão! No entanto quer saber de uma coisa?
Olhou-o curioso.
– A melhor maneira de esconder uma coisa, Cesário, é confessá-la.
– Isso é interessante! Mas eu pensei que o senhor ia dizer outra coisa.
– E não errou! Não pretendo deixá-lo boquiaberto… mas quer saber de uma coisa? Eu também tive muitas, e ainda tenho algumas dificuldades nesse ponto, escandaliza-o isso?
– Não, Padre Tobias, quero dizer… eu… eu pensava que o senhor já não tivesse mais essas lutas…
– Pensava? Mas o padre, pondo de parte o caráter sagrado, não é um homem como os outros?
– É… mas o voto de castidade… a Graça, eu imaginava…
– Ora, meu amigo! Vê como você é espiritualmente puro, de boa fé. Apenas o seu equívoco é este: pensar que a virtude é uma situação material, exterior, e alcançada definitivamente. Não, meu amigo. É pela luta constante que ela se mantém. E essa disposição de espírito, essa ardente aspiração de vir a ser o que ainda não se é, em certo sentido já a constituem. Mas deixemos isso… Quando lhe fiz há pouco aquela pergunta, queria apenas – perdoe-me – experimentá-lo. E você ganhou a aposta. Isso é uma grande coisa, seja sempre assim: um espírito reto; sim, sim; não, não. Pois como diz Nosso Senhor, tudo o que não vem daí… Agora uma coisa: tenho a impressão de que você acha estranhos, talvez mesmo pouco ortodoxos, todos esses modos de encarar os fatos, não? perguntou o padre, pousando-lhe a mão sobre o ombro.
– Não sei, Padre Tobias! Sua linguagem modifica todas as minhas ideias… Como a religião me parece boa, me parece praticável!
– Mas é claro, Cesário, a religião não é nem se deve fazer dela um espantalho. Isso é um sacrilégio! Ela é, e deve ser, antes de tudo, um instrumento de santificação para os homens.
– Quer dizer que deve então ir até eles, Padre Tobias?
– Mas é claro.
– Mas assim não se deturpa, Padre Tobias?
– O que se deturpa?
– A religião.
– Mas o que é que você entende por Religião? Uma medida abstrata a que se tem obrigação de comparar os nossos atos, para ver se tem o tamanho exato? Não, Cesário, a verdadeira religião é intuição, certeza interior, numa palavra, um sentimento todo íntimo e vivo. É a fé. É claro que, conforme for o grau de espiritualidade da pessoa, tal a qualidade dessa fé, isso porém já é outra coisa. Mas agora é que estou compreendendo como você deve sofrer conflitos interiores horríveis, meu amigo.
– Realmente, Padre Tobias, a minha vida espiritual é áspera, eu me movo numa atmosfera irrespirável, respondeu ele, que sob a ação de pensamentos desencontrados, pensava em retirar-se.
Não o fazia. Foi até a janela respirar para disfarçar a confusão.
Padre Tobias fingiu não estar observando nada e continuou a arrumar os livros. De repente falou:
– Cesário, se você está cansado não faça mais nada! Estire-se aí em minha cama!
Não se sentia cansado, mas para ser-lhe agradável estendeu-se na cama, enquanto Padre Tobias continuava em silêncio, arrumando os objetos.
Dali a pouco ouviu-se o toque do sino. Cinco horas.
– Bom, Padre Tobias, tenho que ir, tocou para o jantar!
– Está bem. Obrigado e apareça!
– Apareço sim! murmurou Cesário, saindo rapidamente.
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