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No "estudo" da noite foi procurar o diretor espiritual.

         Como das outras vezes, Monsenhor Henrique começou a entrar em detalhes sobre a sua vida espiritual. Então Cesário resolveu entrar abruptamente no motivo que o levava ali;

          – Monsenhor, estou resolvido a deixar o Seminário.

          O padre teve um movimento de surpresa, que procurou dominar.

        – Comecemos então pelo princípio, meu filho. Vamos ver, quando lhe surgiu pela primeira vez essa ideia?

     – Pela primeira vez, Monsenhor? Talvez… (ficou um instante indeciso). Não sei precisar, Monsenhor. Tenho a impressão de que esta resolução instalou-se em mim imperceptivelmente e foi-se desenvolvendo sem eu o sentir…

       – É possível, meu filho. Mas não se lembra de nenhum fato, de nenhuma circunstância que pudesse ser o ponto de partida, que pudesse ter influído?

          – Pelo menos neste momento não, Monsenhor.

     – Compreendo-o meu filho. Mas ultimamente, como foi que se apresentou ultimamente ao espírito essa ideia?

       Cesário relatou  ao  padre  sua  impressão  ao  entrar à tarde no cubículo. O diretor espiritual ouviu-o com atenção, e assim que ele se calou:

          – Meu filho, em vista do que o senhor acaba de me dar conta, acho que somente me compete esclarecer-lhe o seguinte: tudo isso não passa de uma tentação do inimigo.

          Cesário encarou o padre.

         – Não estranhe,  meu   filho! O senhor  – repito-lho –   está  sendo vítima de uma forte tentação. Noto que sua vontade não entrou nessa decisão. Decisão? Que digo eu? A decisão é uma fase do ato voluntário. E o que não houve nisso tudo, foi exatamente intromissão da vontade. O inimigo apresentou-lhe essa ideia, e o senhor, talvez espiritualmente desprevenido, não teve forças para resistir. Mas tudo isso não é senão uma provaçãozinha que Nosso Senhor lhe envia, pode estar certo. E justamente para fortificar ainda mais a sua vocação. Ao senhor cumpre portanto corresponder a essa graça, compreende?

           Cesário fez um gesto afirmativo com a cabeça. O padre continuou:

        – E sabe qual a melhor maneira de se tornar agradável a Nosso Senhor, meu filho?

           – Pelo cumprimento de meus deveres de estado…

       – Exatamente. Pelo cumprimento de seus deveres de estado, o senhor disse muito bem. E sabe qual o mais salutar remédio contra as tentações de toda a ordem? A assiduidade aos sacramentos, meu filho. Tem-se aproximado ultimamente com regularidade dos sacramentos?

          – Para ser franco, não, Monsenhor.

          – Viu! Eu não disse que talvez o demônio o houvesse surpreendido desprevenido? Está aí. Pois aproxime-se com mais assiduidade dos sacramentos e verá como a presença de Nosso Senhor em sua alma fará essa má ideia afastar-se. Desta vez não, mas na próxima que vier aqui, quero que o senhor me esclareça uns pontos sobre a história de sua vocação, ouviu?

            – Pois não, Monsenhor.

         – Então não deixe passar muitos dias sem aparecer-me e pense bem nisso durante esse intervalo, está ouvindo?

           – Pois não, Monsenhor.

           – Ergueu-se, aproximou-se de uma de suas estantes, e depois:

           – Está aqui este livro. O senhor vai levá-lo. Não tenho pressa dele, pode ficar o tempo que entender. Essa leitura vai ajudá-lo muito nesta circunstância. Leia-o e depois me dirá… Então, estamos entendidos por hoje, não é meu filho? Vou deixá-lo porque tenho que sair para uma conferência aos congregados, que foi transferida para agora à noite. Mas apareça ainda esta semana, ouviu? Na próxima vez conversaremos mais longamente.

            Cesário murmurou um “sim senhor” e tomando-lhe a benção:

            – Boa noite, Monsenhor.

            – Boa noite, meu filho. Que Nossa Senhora o abençoe!


         Saía pelo corredor evitando pensar na entrevista que acabava de ter com o diretor espiritual. Mas não pôde dominar-se muito tempo e, irritado, pensou em não ler o livro, em tomar uma decisão extrema, imediata.

        Aproximava-se de seu cubículo, quando viu surgir Mario Dias em direção oposta.

            – Estive com Monsenhor Henrique neste momento, Mario.

            – É?

            – E resolvi deixar o Seminário, sabe?

            – Que me diz, Cesário?

         – Se  você  também é desses que se escandaliza, não lhe conto mais nada…

      – Mas você se entendeu com Monsenhor, a coisa está assim assente?

           – Não me entendi com Monsenhor, não

           – Mas então?

         – Então é que eu estou muito enganado se esperar compreensão dele.

           – Mas porque, Cesário?

        – Olhe aqui! (estendeu-lhe desdenhosamente a brochura). Vou lá em busca de compreensão, esclarecimento, contato de alma e ele não cessa de me falar em tentação, necessidade de frequência aos sacramentos, e por fim, me mete nas mãos isto!

           Mario Dias tomou-lhe a brochura, esteve olhando a capa, folheou-a calmamente, terminando por devolver-lha sem proferir palavra.

           – Você pensa que eu vou ler? Estou farto de leituras. Sobretudo de leituras piedosas! Bem conheço o espírito desses livrinhos! Mediocridades, frioleiras…

          – Oh, Cesário!

         – É isso mesmo, Mario. Não se iluda. No fundo esses livrinhos não passam de uma apologia da dor cristã com promessa do céu, ao último capítulo…

           – Cesário! observou o outro num tom repreensivo.

         – Ou coisa pior! Muito bom o quietismo sem drama de Monsenhor Henrique… Mandou que eu voltasse breve. Quer saber detalhes da história de minha vocação. Histórias de minha vocação! Sabe o que lhe vou responder? Vou dizer-lhe grosseiramente que antes queria ser padre e que agora não o quero, está aí a história de minha vocação. Já que ele não me compreende, vou pô-lo a distância de minha resolução.

      – Mas  Cesário, com isso você está dando provas de uma má vontade intencional.

          – Má vontade? Você acha? Será que você ainda não compreendeu Monsenhor Henrique?

          – Padre espiritual é um santo! Será que você ousa negar isso?

       – É um santo, Mario, de acordo. Mas que espécie de santo? Um acomodado, uma vida interior que não se difunde, que não aproveita senão a ele próprio… Boa santidade! Posso lá esperar alguma coisa daí, hein?

       Mario Dias fez um trejeito; não concordava, delicadamente porém não discordava.

         Agora que se havia expandido com inteira liberdade, Cesário sentia-se mais sereno. Deixou-se também ficar em silêncio ao lado do amigo. Foi o toque do sino para a oração da noite que os veio separar.

         – Bom, até amanhã, Mario!

         – Cesário, voltou-se o amigo, possa fazer-lhe um pedido?

         – Um pedido, Mario? O que é? Pode dizer!

         – Não deixe de ler o livro que Monsenhor lhe emprestou, ouviu?

         –  Está bem, Mario. Farei isso por você.

       E, sem compreender no momento o motivo, Cesário reparou que o amigo se afastava com uma viva alegria nos olhos.

        Apenas para cumprir o prometido, começou a leitura do livro no dia seguinte.

         Vie du Père  Charles  Fouchaud,  por  un  fils  de son ordre. Era a história de um rapaz, oficial do exército francês, que acaba trocando aquela vida pelo deserto africano… Depois funda uma ordem religiosa e é trucidado pelos nativos.

       O biógrafo resumia; mas adivinhava-se facilmente, por detrás dos fatos, uma trajetória acidentada e heroica. Uma experiência impressionante.

       Empolgou-o.  Deixou  de  lado  o estudo das matérias e decidiu terminar a leitura no mesmo dia. À tarde estava nos últimos capítulos e possuído de um forte entusiasmo.

         Ao fechar o livro, à última página, este entusiasmo punha-o fora de si. Um dia ele também iria salvar indígenas às areias quentes do Saara e morreria por lá…

          Eram assim os seus entusiasmos, tocando sempre os extremos

 

 

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