Xavier Placer
No "estudo" da noite foi procurar o diretor espiritual.
Como das outras vezes, Monsenhor Henrique começou a entrar em detalhes sobre a sua vida espiritual. Então Cesário resolveu entrar abruptamente no motivo que o levava ali;
– Monsenhor, estou resolvido a deixar o Seminário.
O padre teve um movimento de surpresa, que procurou dominar.
– Comecemos então pelo princípio, meu filho. Vamos ver, quando lhe surgiu pela primeira vez essa ideia?
– Pela primeira vez, Monsenhor? Talvez… (ficou um instante indeciso). Não sei precisar, Monsenhor. Tenho a impressão de que esta resolução instalou-se em mim imperceptivelmente e foi-se desenvolvendo sem eu o sentir…
– É possível, meu filho. Mas não se lembra de nenhum fato, de nenhuma circunstância que pudesse ser o ponto de partida, que pudesse ter influído?
– Pelo menos neste momento não, Monsenhor.
– Compreendo-o meu filho. Mas ultimamente, como foi que se apresentou ultimamente ao espírito essa ideia?
Cesário relatou ao padre sua impressão ao entrar à tarde no cubículo. O diretor espiritual ouviu-o com atenção, e assim que ele se calou:
– Meu filho, em vista do que o senhor acaba de me dar conta, acho que somente me compete esclarecer-lhe o seguinte: tudo isso não passa de uma tentação do inimigo.
Cesário encarou o padre.
– Não estranhe, meu filho! O senhor – repito-lho – está sendo vítima de uma forte tentação. Noto que sua vontade não entrou nessa decisão. Decisão? Que digo eu? A decisão é uma fase do ato voluntário. E o que não houve nisso tudo, foi exatamente intromissão da vontade. O inimigo apresentou-lhe essa ideia, e o senhor, talvez espiritualmente desprevenido, não teve forças para resistir. Mas tudo isso não é senão uma provaçãozinha que Nosso Senhor lhe envia, pode estar certo. E justamente para fortificar ainda mais a sua vocação. Ao senhor cumpre portanto corresponder a essa graça, compreende?
Cesário fez um gesto afirmativo com a cabeça. O padre continuou:
– E sabe qual a melhor maneira de se tornar agradável a Nosso Senhor, meu filho?
– Pelo cumprimento de meus deveres de estado…
– Exatamente. Pelo cumprimento de seus deveres de estado, o senhor disse muito bem. E sabe qual o mais salutar remédio contra as tentações de toda a ordem? A assiduidade aos sacramentos, meu filho. Tem-se aproximado ultimamente com regularidade dos sacramentos?
– Para ser franco, não, Monsenhor.
– Viu! Eu não disse que talvez o demônio o houvesse surpreendido desprevenido? Está aí. Pois aproxime-se com mais assiduidade dos sacramentos e verá como a presença de Nosso Senhor em sua alma fará essa má ideia afastar-se. Desta vez não, mas na próxima que vier aqui, quero que o senhor me esclareça uns pontos sobre a história de sua vocação, ouviu?
– Pois não, Monsenhor.
– Então não deixe passar muitos dias sem aparecer-me e pense bem nisso durante esse intervalo, está ouvindo?
– Pois não, Monsenhor.
– Ergueu-se, aproximou-se de uma de suas estantes, e depois:
– Está aqui este livro. O senhor vai levá-lo. Não tenho pressa dele, pode ficar o tempo que entender. Essa leitura vai ajudá-lo muito nesta circunstância. Leia-o e depois me dirá… Então, estamos entendidos por hoje, não é meu filho? Vou deixá-lo porque tenho que sair para uma conferência aos congregados, que foi transferida para agora à noite. Mas apareça ainda esta semana, ouviu? Na próxima vez conversaremos mais longamente.
Cesário murmurou um “sim senhor” e tomando-lhe a benção:
– Boa noite, Monsenhor.
– Boa noite, meu filho. Que Nossa Senhora o abençoe!
Saía pelo corredor evitando pensar na entrevista que acabava de ter com o diretor espiritual. Mas não pôde dominar-se muito tempo e, irritado, pensou em não ler o livro, em tomar uma decisão extrema, imediata.
Aproximava-se de seu cubículo, quando viu surgir Mario Dias em direção oposta.
– Estive com Monsenhor Henrique neste momento, Mario.
– É?
– E resolvi deixar o Seminário, sabe?
– Que me diz, Cesário?
– Se você também é desses que se escandaliza, não lhe conto mais nada…
– Mas você se entendeu com Monsenhor, a coisa está assim assente?
– Não me entendi com Monsenhor, não
– Mas então?
– Então é que eu estou muito enganado se esperar compreensão dele.
– Mas porque, Cesário?
– Olhe aqui! (estendeu-lhe desdenhosamente a brochura). Vou lá em busca de compreensão, esclarecimento, contato de alma e ele não cessa de me falar em tentação, necessidade de frequência aos sacramentos, e por fim, me mete nas mãos isto!
Mario Dias tomou-lhe a brochura, esteve olhando a capa, folheou-a calmamente, terminando por devolver-lha sem proferir palavra.
– Você pensa que eu vou ler? Estou farto de leituras. Sobretudo de leituras piedosas! Bem conheço o espírito desses livrinhos! Mediocridades, frioleiras…
– Oh, Cesário!
– É isso mesmo, Mario. Não se iluda. No fundo esses livrinhos não passam de uma apologia da dor cristã com promessa do céu, ao último capítulo…
– Cesário! observou o outro num tom repreensivo.
– Ou coisa pior! Muito bom o quietismo sem drama de Monsenhor Henrique… Mandou que eu voltasse breve. Quer saber detalhes da história de minha vocação. Histórias de minha vocação! Sabe o que lhe vou responder? Vou dizer-lhe grosseiramente que antes queria ser padre e que agora não o quero, está aí a história de minha vocação. Já que ele não me compreende, vou pô-lo a distância de minha resolução.
– Mas Cesário, com isso você está dando provas de uma má vontade intencional.
– Má vontade? Você acha? Será que você ainda não compreendeu Monsenhor Henrique?
– Padre espiritual é um santo! Será que você ousa negar isso?
– É um santo, Mario, de acordo. Mas que espécie de santo? Um acomodado, uma vida interior que não se difunde, que não aproveita senão a ele próprio… Boa santidade! Posso lá esperar alguma coisa daí, hein?
Mario Dias fez um trejeito; não concordava, delicadamente porém não discordava.
Agora que se havia expandido com inteira liberdade, Cesário sentia-se mais sereno. Deixou-se também ficar em silêncio ao lado do amigo. Foi o toque do sino para a oração da noite que os veio separar.
– Bom, até amanhã, Mario!
– Cesário, voltou-se o amigo, possa fazer-lhe um pedido?
– Um pedido, Mario? O que é? Pode dizer!
– Não deixe de ler o livro que Monsenhor lhe emprestou, ouviu?
– Está bem, Mario. Farei isso por você.
E, sem compreender no momento o motivo, Cesário reparou que o amigo se afastava com uma viva alegria nos olhos.
Apenas para cumprir o prometido, começou a leitura do livro no dia seguinte.
Vie du Père Charles Fouchaud, por un fils de son ordre. Era a história de um rapaz, oficial do exército francês, que acaba trocando aquela vida pelo deserto africano… Depois funda uma ordem religiosa e é trucidado pelos nativos.
O biógrafo resumia; mas adivinhava-se facilmente, por detrás dos fatos, uma trajetória acidentada e heroica. Uma experiência impressionante.
Empolgou-o. Deixou de lado o estudo das matérias e decidiu terminar a leitura no mesmo dia. À tarde estava nos últimos capítulos e possuído de um forte entusiasmo.
Ao fechar o livro, à última página, este entusiasmo punha-o fora de si. Um dia ele também iria salvar indígenas às areias quentes do Saara e morreria por lá…
Eram assim os seus entusiasmos, tocando sempre os extremos
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