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Quando lhe teria surgido  pela primeira vez aquela ideia? No dia da chegada? Talvez. Mas aí teria sido de uma maneira muito vaga, pois não tinha a menor lembrança. E uma ideia daquelas era para impressioná-lo! Ou seria na tarde em que Mario Dias chegara com a notícia da saída de Gabriel? Ficou uns instantes indeciso. E depois: Também não se lembrava de nada. Mas que lhe importava isso? Não seria mais acertado reconhecer que aquela ideia fora-se cristalizando aos poucos? Sim, ainda que a coisa somente agora se apresentasse tão claramente, a verdade era essa. Não seria possível que ele, Cesário, queria aquilo?

        Terminara pouco antes a aula de Moral. Voltava naquele momento do salão geral e, ao entrar no cubículo, reparara casualmente em sua figura… achando-se de súbito, esquisito. Olhara-se de novo, estivera a considerar-se naquelas vestes, passando a mão lentamente na “voltinha” para ajeitá-la, puxando o punho branco da camisa (como era chocante aquele contraste entre o branco da camisa e o negro da batina!) e pensara:

       “Esta batina preta… eu metido dentro dela… que coisa esquisita! Não, decididamente eu estou errado. Não é este o meu caminho!”

        Mas ao mesmo tempo surpreso: “Meu Deus, que tolice! Que tem a batina com a minha vocação? Isto é ridículo!”

      E depois de alguns instantes: “É ridículo mas é assim, Gabriel… Mariano! É verdade, porque sairia Mariano? Vou conversar com ele sobre isso”.

        Não pôde suportar o cubículo, e saiu sem saber o que fazer. Já no corredor, lembrou-se de ir olhar as horas no cubículo do deão.

         – Que há, Cesário?

         – Nada, “Padre” Angelo. Vim ver as horas!

         – São quase cinco… Não demora em tocar para o jantar.

         – Será que o Monsenhor Henrique está aí, “Padre” Angelo?

         – Vi-o  sair  agora   mesmo, Cesário. Vai fazer uma conferência para os congregados marianos na cidade.

         Enquanto falava com o deão, Cesário havia decidido consigo, caso o diretor espiritual estivesse no Seminário, ir procurá-lo imediatamente.

        Agora porém que sabia  Monsenhor ter saído, estava dando graças a Deus, pois (justificava-se ele a si mesmo), não era por culpa sua que o deixara de procurar naquele momento crítico.

       Não voltou ao cubículo, porque o sino tocou para o jantar. Durante a refeição, aqueles pensamentos não o largavam.

      “Resolvi  deixar  o  Seminário!.  Não,  não  é   possível, eu estou sonhando! Impossível que não esteja… E com que serenidade reflito sobre um passo que, uma vez dado, será decisivo em minha vida! É estranho, esta serenidade! Sempre imaginei que se um dia tivesse tal ideia, meu espírito recebê-la-ia abismado. No entanto… Quem sabe se esta resolução não está arraigada em meu espírito muito mais fundamente do que suponho… Preciso conversar com Mariano. Talvez a experiência dele me sirva de alguma coisa, quem sabe!”

        E no recreio do jantar, depois de ter habilmente encaminhado a conversa para o assunto:

           – Então, Mariano, que história foi essa que houve com você?

           O colega fez-se de desentendido.

           – A que se refere, Cesário?

           – Não sabe? Ou não devo perguntar?

           – Ora, Cesário, isso a que você alude foi muito sem importância…

           – Mas não se pode saber, Mariano?

          – A você eu contaria! Mais tarde, porém mais tarde eu lhe contarei tudo…

           – Quer saber porque pergunto, Mariano?

           O colega olhou-o com curiosidade.

           – Ando com ideias de me afastar do Seminário.

           – Não diga, Cesário! Você?

           – Eu, porque se admira? Acaso sou melhor do que os outros?

       – Cesário, não faça isso! O mundo lá fora não é o que a gente imagina, visto daqui…

           – É essa a lição de sua experiência?

           – Talvez uma delas… Mas que motivos tem você para sair?

       –  Mas eu não vou sair, Mariano, você está indo também longe demais…

       –  Ah,  logo vi,era então para me fazer contar o que se passou comigo. Você, Cesário!

          – Não era, Mariano! Ou talvez fôsse, vá lá…

          – Era para isso mesmo… Você não pode ter motivos para um gesto desses, você, um seminarista tão…

       –  Já  sei,  Mariano:  um  seminarista  tão  bem comportado, tão estudioso, etc, etc. Mas me diga uma coisa: será esse o verdadeiro Cesário?

          – Não, Cesário, você não pode ter motivos para sair…

        Estiveram alguns instantes calados. E Mariano, na intenção de ser útil ao colega:

        – Você tem razão! Eu não tenho motivos para sair… Ou por outra, bom… deixemos!

       – Escute, Cesário, vou contar a você o que se passou comigo. Foi uma tolice inqualificável! É incrível! A gente faz cada asneira… Em resumo foi isto: No começo das férias peguei a notar uma mocinha que via todos os dias na paróquia… não sei como, um dia vi-me a conversar com ela, depois da missa… no outro dia nova conversa… e quando dei conta de mim estava gostando dela…

        – E o seu vigário não via nada?

      –  Não sei,    Padre   Francisco  não  dá  muita  importância   aos seminaristas da paróquia dele… O fato é que ela acabou confessando que também gostava de mim, fui conversar com meu bispo e deixei a batina…

         – Mas tudo tão rápido?

        – Que quer você? Tal qual… Um acontecimento atrás do outro… só agora é que eu vejo como foi tudo tão absurdo, ridículo…

         – Bom, você tirou a batina e depois?

        – Aí é que começa a minha volta para o Seminário… Tirei a batina e comecei a observar que ela (chamava-se Aydée… mas tratavam-na de Déa…) havia esfriado para comigo… já não era a mesma…

        – Isso parece um enredo de romance, Mariano!

      – É  o  que  eu  também  acho, Cesário… Mas  está  ouvindo, ela começou a esfriar e mostrar-se indiferente… Em resumo: entramos em explicações, tudo acabou e eu voltei…

        – Mas como? Porque acabou?

      – Era  uma  tolinha, Cesário! O  que  ela  amava  em  mim  era o “mistério” da batina, compreende? Uma vez sem ela ela, eu era um homem como outro qualquer.

        E após um breve silêncio:

        – Éramos dois tolos, Cesário!  Eu, o que amava nela, era a liberdade que desconhecia… É bem pouco essa liberdade que aqui dentro se imagina. Não é nada, quando se toca de perto.

      – Escute, mas isso tudo não escandalizou o seu bispo? Aceitou-o segunda vez, sem mais nada?

      – Mamãe esteve com ele, e arranjou tudo..,. Mas Cesário, eu não contei isto a ninguém. Olhe lá. Pelo amor de Deus!

         – Ora, Mariano.

         – Então, ainda pensa em sair, Cesário?

         – Não sei, Mariano. O meu caso é outro.

        – No  fundo  é  o  mesmo.  Cuidado  não vá  dar  um passo errado. No fim a gente se arrepende sempre. É tão tolo o mundo lá fora! Agora uma coisa, Cesário. Será que essa resolução não tem uma influência, ainda que longínqua, de Gabriel?

        – Mario Dias também já me disse o mesmo, Mariano. Respondo que não. Porém se vocês quiserem levar a coisa para esse lado, que posso fazer?

       Mariano  protestou  que  não  e,  exaltado com a ideia de salvar o colega, entrou a fazer longas considerações sobre o seu caso. Quando o sino tocou, dando fim ao recreio, bateu-lhe nas costas:

         – Então, Cesário, será que você ainda pensa em sair, hein? Cesário ia dizer: “ os meus motivos são outros, Mariano”, mas preferiu sorrir.

         E separaram-se em silêncio.

 

 

XXIV

 

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