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Na manhã seguinte ao entrar na capela para a missa, a primeira coisa que fez foi procurar o amigo com os olhos. E com grande espanto, não viu Mario em seu lugar.

          Antes de seguir para o refeitório, foi ao cubículo do deão.

         – “Padre” Angelo, sabe me dar notícias de Mario Dias? Não o vi na capela!

         – Está doente, Cesário. Veio de manhãzinha me avisar que não iria à missa.

          – Mas sabe o que ele tem? Será grave?

       – Não, não sei. Disse que estava se sentindo mal. Não deve ser grave; são essas recaídas de sempre.

     Agradeceu ao deão e correu para seu lugar na fila, que já se deslocava em direção ao refeitório.

         “Mario está doente! Não esperava por esta! Só assim não precisarei pedir-lhe desculpas hoje! É verdade que quanto mais dias se passarem mais difícil se vai tornando esta absurda situação… Em todo caso ainda não será hoje!”

      Dois dias depois, começaram os exames, que levaram a semana inteira.

         A seguir veio a Semana Santa, com saídas diárias à Catedral.

        Repleto  de múltiplas  ocupações  neste período, não tocou uma só vez em seu “diário”.

      Mas com o reinício das aulas, após uma semana de descanso, as anotações continuaram com a mesma regularidade.

12 de Abril

       Recomeçaram as aulas. Farei tudo para me conservar em dia com as matérias do curso. Ao menos as principais. Que Nosso Senhor abençoe esta minha disposição!

12 de Abril, 9 horas da noite

    Monsenhor reitor adquiriu ultimamente uma máquina de projeção cinematográfica. Acabamos de assistir a uma pequena sessão. Uma comédia sem graça, traindo a intenção educativa e um filme um tanto fantástico da evolução dos mundos.

      Eu  havia  procurado  sentar-me ao lado de Padre Tobias, que viera para nossas cadeiras, e assistia a este último filme com bastante interesse. A certa altura não pude conter-me e transmiti a Padre Tobias a minha impressão com esta frase: “Mas que coisa impressionante!” Na tela continuavam a projetar-se os mais esquisitos animais, a caminhar em geleiras, a devorar-se uns aos outros… a transformar-se. Depois vinha uma chuva implacável que destruía tudo e as ossadas daqueles animais desmoronavam entre o solo que se abria. Em seguida, novas formas, mais aperfeiçoadas, que vinham viver no novo habitat. Padre Tobias não me ouvira. Repeti a observação, ele sorriu e disse: “Interessante, e nós mesmos – o homem – somos essa revolução”. Era o que eu estava sentindo sem o saber!

 

13 de Abril

           Que monótono o primeiro dia de aula, depois de um intervalo! Agora vai começar o ramerrão terrível. A vida de comunidade! Sinto-a cada vez mais insuportável. Não, não compreendo as palavras do salmo: “Ecce quam bonum et quam jucundum habitare fratres in unum”. Melhor sinto São Bernardo: “Mea maxima poenitentia, vita communis est”. Poderei aspirar ao apostolado com esses sentimentos? (conversar com Monsenhor Henrique a este respeito).

14 de Abril

        Não comunguei hoje. Escrúpulos? Não. Tenho certeza de que estou em estado de graça. Minha consciência não me acusa de nenhum pecado grave – podia ter comungado. É estranho! Porque não me apresentei à mesa eucarística? Deixei-me ficar pregado no genuflexório, a olhar os colegas se aproximarem do altar, a observar a pronúncia italiana do latim de Monsenhor reitor e, nessa indecisão, o momento passou sem que eu me decidisse. Horrível. Porque isto? Será que eu não acredito mais na presença real de Nosso Senhor na Eucaristia? Tenho medo de mim próprio.

      Amanhã é o dia de aniversário de Padre Tobias. Assistir a missa e comungar em sua intenção.

15 de Abril

         Fiz a comunhão desta manhã com bastante fervor. Graças a Deus! Ir ao quarto de Padre Tobias logo mais à noite dar-lhe um abraço. Conversar com ele sobre o espírito de fraternidade e caridade cristãs.

        3 horas. Acabam de entregar-me uma carta de casa. Um pequeno post-scriptum de Tilda comunicando-me que desfez o noivado.

 

16 de Abril

 

        Estive ontem à tarde com Padre Tobias. Conversamos muito. Ele tem cada uma! Está escrevendo uma série de artigos sobre Anchieta e deu-me o primeiro, já publicado. Quando terminei a leitura quis saber minha opinião. Se não o conhecesse, isso me surpreenderia, de que lhe pode servir uma apreciação minha? “Gostou?” “Muito, Padre Tobias” “E?” fez ele, voltando-se para o meu lado. Eu então animei-me e continuei: “Agora acho uma coisa (na verdade sou um grande tolo!) talvez não seja um tanto, ou melhor, não é nada afirmativo, como talvez fosse de desejar, tratando-se, sim, tratando-se de um trabalho assinado por um padre”.

     Ele teve um largo sorriso que vindo de outra pessoa me teria susceptibilizado: “Você acha que não está bastante afirmativo, é?” Calei-me. Padre Tobias é sempre imprevisto para mim, às vezes me desnorteia… Não sei porque, mas já reparei isto: ao anotar minhas conversas com ele, sou sempre capaz de as recordar perfeitamente.

      Não  comunguei  hoje.  Preciso  confessar-me. Fazê-lo com o confessor ordinário logo mais à tarde.

 

17 de Abril

           Frei Santana não veio ontem. Bem podia ter me confessado com um padre da casa.

       Um fato interessante: depois que nos aproximamos novamente, Mario Dias tem-me dedicado um interesse verdadeiramente fraternal. Aliás o mesmo vem se dando, de uns tempos para cá, da parte de Deusdedit.

 

18 de Abril

 

        Três dias sem comungar! Já devo estar sendo notado. Paciência. Depois de amanhã, 20, haverá retiro mensal. Confesso-me nesse dia.

 

20 de Abril

 

      Retiro mensal.  Oh,  as  doçuras espirituais  de  um  dia de recolhimento… Sinto-me perfeitamente reconciliado com tudo. Nestas ocasiões, até a própria ideia da morte perde para mim o seu aspecto sinistro… Tenho o sentimento de que é um começo e não um fim.

 

26 de Abril

 

          Porque será que passei estes dias sem precisar fazer confidências ao meu diário? E porque será que volto de novo a ele? Estive relendo a carta de Gabriel e rasguei-a. Arrependi-me imediatamente de o ter feito.

 

27 de Abril

            Hoje a missa da comunidade foi celebrada por Padre Tobias. Talvez por isso é que eu a assisti com mais fervor. Interessante, já tinha ouvido falar nisso e não havia dado crédito: Padre Tobias celebra bastante depressa a missa! Se a lentidão dos movimentos litúrgicos é um sinal de piedade… Por outro lado, notei-lhe durante a cerimônia um sorriso ingênuo nos lábios. Lembro-me que me disse, uma vez, que o seu grande sonho é deixar o Seminário e trabalhar numa paróquia. Entrar em contato com o povo, com a gente humilde, tão esquecida. Padre Tobias! Como eu lhe quero bem!

 

28 de Abril

 

         Carlos Alberto foi mandado embora. Embarcou à tarde. Monsenhor reitor proibiu qualquer comentário a respeito. A discrição está sendo mantida, ainda que ninguém ignore o porque desse gesto.

 

29 de Abril

 

         Depois de amanhã começa o mês de Maio. Foi afixada a lista dos que falarão durante esse mês sobre Nossa Senhora. Graças a Deus, não fui escolhido!

 

1 de Maio  

 

          Acabo de voltar da capela. Terço, sermão de Josias sobre Nossa Senhora, benção solene. Melodias soturnas ou alegres de canto-chão, sutil perfume de rosas no ar, volutas de incenso subindo e se perdendo para sempre, semanas santas, meses de maio, ah, a vossa magia para quem vos viveu na idade das informes aspirações! Mais do que as prédicas e advertências, mais do que as confissões semanais, as pequenas mortificações ou as árduas lições de Apologética, eu vos sinto na minha alma de seminarista! Volto hoje a ter doze anos.

 

2 e 3 de Maio

 

           Há muito que não me sentia espiritualmente tão afervorado…

 

4 de Maio

 

        Arranquei hoje do Deusdedit o segredo da conduta dele e Mario para comigo. Tanto insisti, que acabou me contando tudo. Mario Dias convenceu-se de que a minha vocação está em perigo. Contou-lhe a grosseria que eu lhe havia feito, desculpando-me sempre, e acabou pedindo a Deusdedit que o ajudasse neste trabalho que julgava obrigação moral de sua parte: “rodear-me de carinho e conforto espirituais”!  Admirável Mario.

 

5 de Maio

 

          Sinto que uma nova crise se está preparando surdamente em mim. Procurar hoje mesmo o meu diretor espiritual.

 

6 de Maio

        Uma verdadeira surpresa para todos: a volta de Mariano para o Seminário. Estávamos no recreio do almoço, quando ele apareceu. A surpresa foi tanto maior quanto ninguém havia tido notícia de nada. Voltou mais magro, e conserva uma atitude retraída, quase de uma pessoa envergonhada… Também o que “murmura” sobre ele, não é para menos! Em todo caso, tiveram todos uma conduta discreta em sua presença.

      Estive  ontem  com  Monsenhor  Henrique.  É inútil, não nos entendemos. Dá-me a impressão de “espírito organizado em função de classe”, de “virtude técnica”... Estarei sendo injusto?

 

7 de Maio, 4 horas da manhã

 

        Que estranho o que acaba de se passar comigo! Estaria mesmo sonhando? Sim, porque duvidar? Quando recobrei perfeita consciência não me vi sentado à beira da cama, com os pés no assoalho frio, a esfregar os olhos? Depois não reparei que a janela do cubículo estava fechada, não a abri e não me deixei ficar debruçado para fora algum tempo olhando as manchas lácteas que a claridade da lua punha nos vultos imprecisos dos eucaliptos? Não resta a menor dúvida, estava dormindo, sonhei durante o sono e agora estou perfeitamente lúcido. Que sonho, meu Deus! Lembro-me perfeitamente. Mas seria mesmo um sonho? Bom, pouco importa. Vou anotá-lo tal qual.

     Via-me diante de uma planície muito longa, onde flores (não conseguia é identificar a espécie) brancas, azuis, vermelhas, agitavam-se nas hastes flexíveis. Como o movimento era bom àquela hora matinal! Estava fazendo (pensava eu) a minha promenade sentimental. Nenhuma lembrança inoportuna! Apenas uma profunda alegria de ser eu, de existir, de estar ali… Pronunciei o próprio nome em voz alta: Felix! Que ironia se eu não me chamasse Felix! pensei. Pensava sem palavras. Era estranho, tinha o conhecimento rápido e presente de tudo. Isto deixava-me surpreso, maravilhado. Então quis comunicar a alguém (para que não se perdesse, exatamente para que não se perdesse, murmurava comigo) aquele momento de estranhíssimas emoções.

      Disse muitas palavras numa linguagem exótica, que entretanto compreendia. Fiz gestos. Tudo inútil! A distância ainda me pareceu maior, pois nem o eco daquelas palavras, nada. Só o ruído da voz é que agitou de leve, como um calafrio, as tulipas (um perfume viera até mim – eram tulipas!).

        Então olhando em redor, compreendi que estava só e comecei a sentir-me estrangeiro ali.

          Até um azul transparente, que estivera dentro e fora de mim – era singular aquele céu! – ao mesmo tempo desaparecera.

       Ah, é que me achava em um país longínquo, talvez na ilha de Canabulú, e era  assim aquele país… Mas como viera parar ali?

         Quis fugir, porque começava a ter medo. Fiz um esforço de quem remove toneladas. Inútil, inútil… Os membros não obedecia,. Estava enraizado àquele lugar adverso como um vegetal milenar. Meus braços cresciam, cresciam desumanamente para o alto, imitavam galhos. Eu era – meus olhos assistiam serenos àquela metamorfose – a árvore  colorida que vira em meu compêndio de história natural, anos atrás. Mas o compêndio fora escrito por um nome célebre. Goethe, Ghunter! Fiquei repetindo uma infinidade de vezes os dois nomes, depois eram sílabas, afinal baralhavam-se numa só palavra arrevesada e incompreensível, que não significava mais nada.

        Porém uns sons lentíssimos (estranha música que estivera até ali ouvindo em surdina) invadiram de súbito a planície. E um ritmo de canto-chão envolvia tudo. Eu considerava friamente: esta música vem das catacumbas dos primeiros cristãos!

          Depois os sons foram diminuindo. E à medida que silenciavam, iam humanizando as tulipas. As cordas enormes transformavam-se magicamente em rostos. E as hastes esguias eram corpos. Silhuetas de mulheres. Muitas, muitas, todas de branco. Eram as virgens cristãs, as onze mil virgens cristãs de Santo Ambrósio, considerei eu. Eram elas! E como sorriam! Aquele sorriso era o sinal da Graça! Mas quem era aquela que não sorria e se retraia tímida, quem era? Tilda! Aquele jeito de olhar, aqueles cabelos, só podia ser ela! Lembrei-me de chamá-la pelo nome.

         Não chamei! Achava estranho que Tilda estivesse ali, adolescente, numa época tão remota, numa época tão… Pousei a cabeça entre as mãos e murmurei para mim (devia evitar que ela me ouvisse) mas Tilda não compreende isso? Porque não se vai daqui? Porque, meu Deus?

        E aquele pensamento começou a preocupar-me, a absorver-me de maneira angustiosa. Até que uma parte muito remota de meu ser, ordenou que levantasse a cabeça.

      Estava, menino, sentado à mesa da sala de jantar, com um livro aberto sob os olhos. Era noite. Em minha frente, Monsenhor Henrique. Cabeça pendida para a mesa, o velho padre cobria com uma letra em arabescos uma larga folha. Aproximei-me dele: Onde está Tilda? E o padre: Que Tilda? Insisti: Tilda!  O padre respondeu: Está morta! Eu arregalei os olhos: Morta? Ele confirmou: Sim, por isso é que você a viu entre as virgens cristãs. E você também vai morrer, ouviu? Morrer? murmurei eu fixando-o. Sim, porque você está em pecado mortal, então não se lembra que olhou com olhos de desejo para as virgens cristãs? Eu? Você sim, e vai direitinho para o inferno, fique sabendo! Muito envergonhado, baixei a cabeça. Impassível, Monsenhor recomeçara a escrever. Nem parecia agora dar pela minha presença. Como aquele alheamento me feria! Queria falar, defender-me da acusação do padre, contudo absorvia-me a agilidade com que os dedos dele se moviam sobre a larga folha branca e as palavras morriam-me na garganta. Aquelas mãos! Como estavam brancas! Não seriam de Tilda, aquelas mãos? E se as tocasse, estariam frias, estariam quentes, aquelas mãos? Perdia-me na insistência desta ideia, quando Monsenhor parando bruscamente o trabalho, ergue a cabeça e apontou para o título no alto da folha. Inclinei-me para ler, mas não compreendia nada. Que é isso? pude enfim perguntar. Mas o padre não respondeu, nem era mais ele que estava ali, e as palavras da folha branca começaram a crescer em minha frente, a agigantarem-se, e depois desmoronaram com fragor sobre mim… E tudo se ia tornando confuso de novo ignorava onde estava, só trevas, trevas...Agora estava sendo arrastado por túneis que terminavam nunca…

          De repente um estremeção e tudo se dissipou abruptamente.

 

8 de Maio

         Achei a missa de hoje tão demorada! Parecia-me que não acabava mais… Tentei acompanhá-la em meu “Livro do Seminarista” mas foi inútil.

     Depois da “elevação” pus-me a folhear os livros de piedade, a examinar com tédio os detalhes das vinhetas e foi um verdadeiro alívio quando ouvi a voz do “Padre” Angelo puxar a oração final.

 

9 de Maio

 

         Monsenhor reitor está viajando. Padre espiritual ficou celebrando a missa da comunidade em seu lugar.

      Não comunguei ontem nem hoje. Já compreendi o meu mal: a imaginação. Porque descabelados caminhos me tem arrastado estes dias! Faz de mim o que quer. Estou ocupado no interesse mais grave possível e, de súbito, lá vem ela, estendendo-me a mão. Não resisto, estendo-lhe a minha… E eis-nos por descampados sem fins, à aventura, numa viagem maravilhosa, indescritível… Mas quando menos espero, horror! – abandona-me brutalmente com a consciência acabrunhada de tudo o que se passou. Sinto vergonha de mim próprio, me desprezo…

 

11 de Maio

           Ó mundo dos sentidos, nós não te pertencemos, mas eu sofro a tua mágica atração, eu te adivinho! E, eu sei que tu não és impuro, eu sei que te caluniam… Pecado! Pecado! Que quer dizer esta palavra? Quisera viver o meu próprio temperamento e caminhar para a frente com o ímpeto de uma chama se devorando a si mesma… Que coisa horrível ter que estar, a cada momento, justificando intelectualmente sentimentos que não se sentem!

 

14 de Maio

 

          Três dias sem coragem de tocar nisto. Estive hoje relendo estas anotações e fiquei horrorizado de tanta miséria… Que significa este diário?

 

19 de Maio

 

           Compreendi nestes dias de afastamento o que significa este diário em minha vida. É a minha maldita fatalidade literária. Não há negar, é isso. Como nós somos senhores de nossos atos! Queimei meus poemas, afastei-me das leituras, julguei-me inteiramente a salvo dessa inclinação, e agora é que estou vendo: transferi tudo para um diário.

             Não o continuarei. Aliás já estava me tornando escravo dele.

         Também não o destruirei. Que fique. Talvez um dia tenha algum interesse em lançar os olhos sobre esta papelada…

 

 

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