Xavier Placer
Naquele dia, não somente não pedira desculpas a Mario Dias, como se havia comprometido, mas evitara mesmo o amigo.
Este ainda tentara aproximar-se e conversa-lo, mas percebendo a atitude de Cesário, deixara agora que partisse dele o primeiro gesto de entendimento.
Essa expectativa alimentara-a ele o dia todo; o dia porém passara, chegara o recreio da noite, em que Mario Dias pusera a última esperança, recolheram-se à capela para o terço, e nada.
“Mas que será isso, meu Deus! pensava Mario Dias. Cesário não é assim! Não veria o meu bilhete? Impossível, aliás li-lhe nos olhos que o viu, sim, ele leu-o… Mas então? Deixara eu escapar alguma coisa que o ofendesse?”
E muito compreensivo, Mario Dias pôs-se a relembrar as palavras do bilhete:
“Seriam aquelas observações sobre a “literatura”? Achará ele que eu estou sendo injusto com Gabriel, ou mesmo caluniando-o, ao atribuir a essa influência a sua saída? Com certeza foi isso! Mas Cesário é tão compreensivo sempre, tão cordato… Não compreendo! Ou zangar-se-ia com as minhas advertências sobre a necessidade de silêncio e tomaria aquilo com uma crítica a sua conduta?
Pôs-se a estudar, ou melhor, tentou fazê-lo, porque ao fim de algum tempo estava de novo a insistir naquilo.
“Quem sabe se Cesário se arrependeu da comédia de hoje de manhã e o ,eu bilhete deixou-o, sim, talvez o deixasse… assim meio envergonhado e por isso me evitou…”
Esteve parado um pouco, admirado daquela ideia, e depois: “Não, isto é absurdo! Envergonhado, porque? Não, tolice…” e abaixou a cabeça sobre o compêndio.
Enganava-se; não era absurdo, como julgava, era exatamente aquilo.
A princípio Cesário decidira pedir desculpas ao amigo. Mas no primeiro recreio não o encontrou no pátio (soube depois que havia ido ao médico), e não pudera fazê-lo. No recreio do almoço, não soube porque sentira um certo acanhamento e acabara procurando intencionalmente um colega que se dava com Mario Dias, o Zélio, só para que o amigo não se aproximasse.
No pequeno recreio da tarde, após o café “fugira” para seu cubículo e no do jantar recolhera-se a ele, antes que o Mario Dias o procurasse. Durante as refeições, tomadas em silêncio, evitara-lhe o olhar… “Mas que criatura absurda sou eu! pensava Cesário. Crio cada situação, e o pior é que depois não me sei sair delas! Se no recreio do almoço eu tivesse me aproximado dele, este mal-entendido estaria de uma vez acabado! Eu não dou mesmo para andar com essas histórias… Como vou fazer agora? Isto é que é pior! Como vou fazer agora? Escrever-lhe um bilhete? Não, esses bilhetes ainda nos vão comprometer a ambos, nada disso! É melhor deixar para amanhã… E que estará pensando ele de tudo isto? Bem, não quero me preocupar com isso, amanhã conversarei com ele no primeiro recreio sim, amanhã…”
Cesário queria estudar, mas não conseguia dominar-se. Durante o dia as ocupações ainda o haviam distraído daquela intranquilidade. Mas com a chegada da noite e o fim dos trabalhos, a lembrança da conduta absurda que tivera com o amigo tornara-se mais viva e impedia-o de dedicar-se ao que quer que fosse. De repente encontrou uma ideia salvadora: lembrou-se de ir procurar Padre Tobias.
Saiu do cubículo, mas quando se dirigia para lá, pensou nos exames mensais e esteve para voltar. Mas reparando acesa a luz do quarto do Padre, continuou. “Ele vive sempre tão ocupado, se eu não aproveitar esta oportunidade talvez muito cedo não tenha outra! Os exames que esperem… Primeiro o meu espírito!”
– Olá, Cesário, que faz aqui a estas horas?
– Ia a seu quarto, Padre Tobias! Ia importunar o senhor…
– Ia? Então não vai mais?
E antes que Cesário respondesse:
– Vá para lá, que eu já volto. Mas não morra de impaciência se eu demorar… acrescentou, afastando-se.
Cesário entrou no quarto do padre; estava a folhear alguns livros nas estantes, pôs-se depois a observar o ambiente.
O quarto de Padre Tobias não se parecia em nada como os dos outros professores.
Que simplicidade! Mais parecia uma cela de frade… Em compensação, quanto livro!
Nas duas estantes, amontoavam-se atabalhoadamente; de cabeça para baixo uns, tomando espaço demais outros… Não fazia mal! Os que não cabiam nelas, empilhavam-se sobre uma mala, atrás da porta, nos cantos… O ar do quarto tinha um cheiro característico. Cesário conhecia-o e habituara-se a ele: era o cheiro penetrante das cigarrilhas que Padre Tobias fumava.
Veio logo, Padre Tobias.
– Vim, mas isso não é sempre. Quando Padre reitor me pega para lhe corrigir as provas do Estatuto…
– Quando sai? indagou Cesário, aproximando-se de um pequeno quadro que ainda não havia reparado à parede. Era uma tricomia e representava o anjo Rafael conduzindo pela mão o jovem Tobias.
– Talvez ainda este mês, depois da semana santa. Está olhando o anjo que me ajudou a atravessar o túnel, Cesário?
O seminarista voltou-se para ele.
– O túnel? Que túnel, Padre Tobias?
– A crise de compreensão que todos nós sofremos. Você, por exemplo, está atravessando-a agora…
– E o Senhor já a atravessou inteiramente?
– Já. Estou saindo na porta… Há sol, sabe, Cesário? Mas então, que o traz aqui? Tem feito poemas?
Cesário tornou-se subitamente vermelho.
– Nada, não quero saber mais disso! Queimei tudo…
– Hum! Ainda bem!
– Porque diz isso, Padre Tobias? O senhor já os fez também…
– Sim, Cesário. Mas naquele tempo eu fazia poemas, hoje esforço-me por viver poesia. Que acha, não ganhei na troca?
– Então não era sincero consigo mesmo, naquela época?
– Era. Mas há muitas maneiras de ser sincero. Tanto o era, que um dia acabei renunciando, entrei para o Seminário, e hoje sou padre!
– Padre Tobias, acho o senhor um homem tão diferente de toda a gente. Eu gostaria de ser como o senhor! Já observei que no fundo é a necessidade desse contato que me trás aqui…
O padre riu. Cesário sentia-se também contagiado por aquele riso. Mas Padre Tobias tomou de repente um ar sério.
– Não é a primeira pessoa que me diz isso, Cesário! Mas não me tome como exemplo, eu posso servir para tudo, menos para exemplo, ouviu?
– Oh, porque fala assim, Padre Tobias? O senhor, por outro lado, não é um sacerdote como os outros?
Padre Tobias meneou a cabeça e encarando-o:
– Você tem ainda muito de menino, Cesário! Isto foi como um jato de água fria sobre o seu entusiasmo. Ficou confuso e, muito vermelho, baixou a cabeça.
– Vejo que estranha esta observação sobre o seu caráter, hein! Mas esperava por ela e está envergonhado… <as não tem motivos para tal. Olhe para mim, Cesário! Repare que eu não me refiro, longe disso, a atraso mental com relação à idade, absolutamente, mas à sua maneira íntima de ser, compreende?
Cesário continuou a olhá-lo atentamente.
– Eu quero dizer o seguinte. Ou melhor responda-me a isto: nunca notou em você uma certa falta de jeito para desenvolver uma determinada conduta de conveniência, e quando o tenta fazer, pense bem, não tem tentado muitas vezes fazê-lo com insucesso?
– Realmente, Padre Tobias, tem sido assim mesmo…
– Pois é, tem sido e sê-lo-á sempre. Cesário. Mas não fique triste por causa disso, ouviu? Fique sabendo que isso é uma das suas qualidades.
Ele sorriu.
– Sim, qualidades, não ria. Já observei isso em você ainda que nunca lhe tivesse falado. E agora quero dizer-lho, agora que se apresentou a ocasião oportuna.
– Padre Tobias, interrompeu-o Cesário, Monsenhor Henrique me conhece intimamente há tanto tempo e nunca ouvi dele uma linguagem assim… O senhor está me dizendo coisas que eu próprio já havia percebido sem compreender, e que tinham até… me desgotado de mim mesmo.
– Mas está errado Cesário. Não se desgoste com o que é o melhor de si próprio. As crianças ignoram o que convém e o que não convém, são seres diretos, naturezas ainda não deturpadas pelas engrenagens da vida, daí uma franqueza ingênua que elas põem (exatamente como você faz) para escândalo dos adultos corrompidos, em tudo o que dizem e fazem. Você queria ser um maldito adulto grave, cheio de “sabedoria” e de bom-senso, não é?
Fez um gesto indeciso com a cabeça.
– É assim, Cesário. Os homens acham ridículo ser simples, e ainda que bem lá no fundo de cada um seja simples, todos afetam complicação. Não conhece a anedota da criança na corte?
– Não Padre Tobias, conte!
– É muito simples, mas como todas as coisas simples, muito sábia. Um dia o rei entrou despido em sua corte. Sensação, escândalo? Não, nenhum cortesão reparou que o rei estava em trajes do Éden...
Padre Tobias calou-se.
– Ué! Mas é só? E a criança?
– Ah, é verdade, eu disse que havia uma criança na corte. Pois foi a única que viu o rei despido. Viu e gritou: “Mamãe, o rei está nú!”
Houve um breve instante de riso.
De súbito Padre Tobias tomou um ar sério (era muito dele, esta transição) e num tom lento e sereno:
– “Se não vos tornardes como as crianças não entrareis no Reino dos Céus…”
Cesário teve a impressão de que ouvia aquele velho conselho sobre o qual passara tantas vezes sem ver nada de profundo, pela primeira vez, e sentiu que ele encerrava um alto e novo sentido.
– Isto foi dito pelo mais alto espírito que a humanidade conheceu! Tenha sempre em vista isto, meu amigo: você será tanto melhor quanto mais se convencer que não deve trair sua natureza, sob esse aspecto realmente privilegiada, ouviu?
– Padre Tobias, eu não encontro palavras com que agradecer tudo o que o senhor acaba de dizer sobre mim! Neste momento, sob a ação de suas palavras, eu tenho, eu sinto como que uma compreensão de tudo. Tudo me aparece de repente sob um outro prisma. Obrigado, Padre Tobias!
Cesário estava comovido até às lágrimas, lágrimas de uma alegria que nunca experimentara, e era à força que as dominava.
– Então, meu amigo, está aí o melhor agradecimento que você me pode fazer: dar-me a certeza de que, se alguma influência exerço sobre seu espírito, é uma boa influência. A nossa comum aspiração não é fazemo-nos “aprendizes de santos”? Vamos fazê-lo juntos! Eu também quero que você me ensine o que sabe!...
– Eu não sei nada, Padre Tobias (e Cesário aproximou-se dele, segurando as mãos) o senhor é que é um santo, disse, e num transporte em que ia toda a sua terna admiração por Padre Tobias, beijou-lhas e saiu precipitadamente do quarto.
Recolheu-se à capela.
“Que homem admirável, pensava ele, que criatura estranha este Padre Tobias! Os primeiros cristãos, os cristãos das catacumbas não seriam de outro jeito… Cada vez me sinto mais perto dele, que alma!”
O sino bateu e começaram a entrar os colegas. Enquanto não começava a oração da noite, Cesário ainda pensou: “Interessante, já o ano passado reparei numa coisa: todas as vezes que volto de uma conversa com ele, tenho o sentimento de que não estou em meu lugar… Que será isso? Gostaria de não voltar assim da presença dele! Que será isso?”
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