Xavier Placer
-Mario, estou à espera que você se resolva a contar-me o caso do Gabriel, disse ao amigo, no outro dia, vendo que o recreio da manhã terminava sem ele tocar no assunto.
– Vou contar, Cesário, replicou Mario Dias. Mas ao que vejo você está dando uma importância que não tem ao fato… Já ontem à tarde observei isso. Em que nervosismo você anda! Que bicho o morderia?
Cesário olhou-o espantado e só então se lembrou daquilo:
“Será que Mario já teve conhecimento dessa história ridícula com Cônego Melo? Vou falar, gracejar, vou ser menos extravagante só para não lhe dar oportunidade de uma pergunta à respeito”:
E executando imediatamente a ideia:
– Uma importância que não tem? Não foi você mesmo quem disse ontem que me queria contar detalhadamente o caso do Gabriel?
– Eu…
Cesário não o deixou falar.
– Depois um amigo comum deixa o Seminário e você diz que não tem importância? Eu não conhecia “esse“ Mario Dias!
– Cesário, você bem sabe que eu não ignoro que você está representando…
– Eu, representando? insistiu Cesário, evitando o olhar do outro, e sentindo que a pergunta sobre o seu fiasco da aula ia sair, que era irremediável.
– Escute, Cesário, vamos começar pondo as coisas em seus lugares… Que história foi essa com Cônego Melo?
– Quem contou a você?
– Ninguém.
– Ninguém? Então você adivinhou?
– Não adivinhei. Mas você já viu alguém cobrir o sol com um peneira?
– Hum! Não sabia que você também apreciava a sabedoria dos ditados! Ah, ah, ah… pôs-se Cesário a rir, ainda que o olhar do amigo o estivesse chamando silenciosamente à atitude que convinha.
Mario deixou-o acabar a pilhéria e tomando um ar ainda mais sério:
– Cesário, eis aí o caso tão desejado do Gabriel, uma vez que você…
– Agora não me interessa; guarde lá o seu caso, Mário!
Impassível como se o outro não houvesse dito nada, Mario Dias continuou. Tentou continuar, porque Cesário interrompeu-o:
– Mas eu já não disse Mario, que isso não me interessa? Já sei: Gabriel refletiu, viu que o sacerdócio não lhe convinha e fez o que esta corja de medíocres não tem coragem de fazer, saiu!
– Que linguagem é essa? Francamente, eu não compreendo! Será que você…
– Pode terminar.
– Cesário, será que você quer deixar o Seminário pelo fato de Gabriel o ter feito?
– Você me julga tão imbecil? Que tenho eu com Gabriel oi quem quer que seja?
– Então o que significa tudo isto? Você está incompreensível! Seja franco, que quer dizer esta farsa?
– Eu estou falando sério, Mario! Quer saber de uma coisa? Isto aqui é um ninho de malucos, você, eu… todos nós… Até logo! Tenho um livro muito interessante para ler em meu cubículo, estou perdendo tempo! Não suporto mais essas asas de anjo que crescem cada vez mais em suas costas, até logo!
Mário Dias ficou plantado no chão, sem dizer palavra, enquanto Cesário, sem mais o olhar, encaminhou-se para o cubículo. Mal entrou, porém o viu, o livro aberto sobre a mesa teve tal desgosto de si próprio, que não suportou o cubículo. E fechando a porta, dirigiu-se para a capela. Para a capela… que era o seu refúgio nesses momentos.
Vinte minutos depois, quando se recolheu de novo ao cubículo, um pouco mais sereno, reparou no chão um pequeno papel dobrado.
Abaixou-se para apanhá-lo com um movimento de surpresa. Mas ao abri-lo reconheceu imediatamente a letra fina e desenhada de Mário Dias. Sorriu. “Como esta letrinha se parece com ele! É a sua calma, o seu equilíbrio, o seu desejo constante de ser padre, é a certeza de que o será…”
O bilhete havia sido escrito às pressas; as correções à cada linha traíam a emoção do pulso que o redigira.
Ele leu:
Cesário,
Não é para insistir no absurdo de há pouco. O que passou, passou…
Apenas o que mais me entristeceu nessa história, foi esta conclusão a que cheguei: você nunca foi meu amigo. A nossa amizade foi um milagre de Gabriel entre nós ambos. Tão logo a presença dele faltou, a verdade revelou-se brutalmente. Como é doloroso isto! Mas paciência! Há dessas fatalidades. Não pense que eu estou querendo dar-lhe uma lição com um gesto preconcebido de humildade. É espontâneo isto: sou e quero ser amigo de você, apesar de tudo… E como amigo, é que lhe faço esta advertência, que receio não vir a tempo: para o sacerdote a literatura nem chega a ser secundário… é quaternário. A literatura, eis aí o seu mal, não o negue! Foi essa entrega sem reservas à literatura que perdeu Gabriel. Entre parêntesis: para mim ele tinha vocação, mas perdeu-a. No mundo ele será um valor fora de seu lugar. O que equivale a um desvalor.
Ah, meu caro Cesário, não se iluda. O que é preciso é muito silêncio. O silêncio é o pudor das almas sábias. Dentro dele cabe tudo que é grande: amor, beleza, cultura. É o sulco guardando a semente, e dando-lhe fecundidade.
Ora, mais do que ninguém, nós estamos no período em que urge arar a terra. É evidente que não entendo por silêncio um simples efeito de boca fechada. Trata-se, você me compreende, da “disciplina da alma”, pois daquele silêncio pode muito bem sair uma saraivada de palavras…
Enfim, que tudo isto fique dito de coração a coração. Agarre-se a Nossa Senhora, Rainha dos Apóstolos, e conte com as minhas humildes orações. Lembre-se sobretudo disto: que a vida passa muito depressa para se gastar o tempo precioso em outra coisa que não seja conhecer a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Quem devemos dedicar um amor levado até a paixão, inflamada, vivida… maníaca.
MARIO
Ia esquecendo: Depois de ler este bilhete, rasgue-o. Quero conversar com você no próximo recreio. Até já.
M.
Cesário terminou a leitura do bilhete, releu-o, e enquanto o relia, pensou:
“Seria eu capaz de dirigir palavras tão serenas a quem zombasse de mim? Sim, o que eu fiz não foi outra coisa senão zombaria. Como Mario é superior! E Gabriel, como se portaria Gabriel num caso destes? Não, Mario está muito acima de nós dois… No próximo recreio vou pedir-lhe desculpas. Que a literatura vá para o inferno! Para começar, não continuarei a leitura do livro que me enviou Gabriel! Quem sabe sabe se Mario não veio justamente, como instrumento da Graça, chamar minha natureza ao seu verdadeiro caminho?”
Ia começar nesse dia o período de exames mensais. Possuído de novas ideias, Cesário sentou-se à mesa começando por fazer a distribuição do tempo para o estudo das matérias. Depois, com a mesma disposição, abriu o compêndio e pôs-se a estudar a lição de Teologia.
E suspendendo de quando em quando o trabalho, surpreendia-se repetindo: “Pedir desculpas a Mario. Sim, pedir desculpas a Mario, no primeiro recreio”.
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