Xavier Placer
Mas que explicações você dá a isso, Mario? apressou-se em indagar Cesário, quando o amigo lhe devolveu a carta.
– Por que saiu Gabriel, pergunta você?
– Sim, porque saiu Gabriel, porque se pode resolver deixar a batina depois de tantos anos, hein?
– Temos muito que conversar, Cesário. Depois eu quero contar detalhadamente o caso a você. Ah! a propósito: sabe que Padre José apostatou?
– Padre José?
– Sim, Padre José, não se lembra dele?
– Mas Mario, que notícias você me traz! É incrível tantos acontecimentos dessa espécie ao mesmo tempo! Que houve com Padre José, sabe?
– Dizem que se apaixonou por uma filha de Maria na paróquia… Mas deixemos isso! É melhor mudar de assunto.
– Não! Isso tudo me interessa muito! falemos sobre isso, Mario. A saída de Gabriel e a apostasia de Padre José vêm de repente chamar-me a atenção para coisas que eu nunca julguei tão graves. Fazem-me sobretudo abrir os olhos sobre mim próprio…
– Olá, Mario! Bravos! gritou uma vez.
Ouviram-se barulho de passos e outras vozes.
– É a comunidade! murmurou Cesário.
– Então, que houve com o nosso Gabriel? indagou o Alexandre, falando alto e abraçando Mario com exagêro.
Este não lhe deu resposta, porque chegavam outros seminaristas, quase toda a “divisão”, fazendo-se uma larga roda.
Mario tornara-se o interesse de todos. Cesário deixou-se ficar de lado, observando.
O colega voltou à pergunta:
– Bem, Mario, e Gabriel?
– Não voltou.
– Não voltou?
– Vocês já sabem, não?
– Não, o que há? disseram alguns com curiosidade.
– Saiu.
Houve um “ô…” de surpresa.
– Souberam o motivo? falou Amintas.
– Que motivo? Não quis mais continuar, ora essa! retrucou Mario com certa impaciência.
– Puxa! mas o Gabriel…
– É mesmo, hein!
– Ora, ele era melhor do que os outros?
– Não é melhor, é claro. Mas a verdade é que foi surpresa para todos.
– Para mim, não… comentou Josias.
– Ah! você é sempre diferente dos outros, quem não sabe disso? observou-lhe Cesário.
– Você não vai dar uma lembrança de seu diaconato à gente, Mario?
Era o Andrade que assim falava, aproximando-se.
Mario tirou do bolso um pequeno maço de “crayons”, que foi passando para os colegas.
– Você escolheu um versículo bem expressivo, comentaram alguns.
– Como é? quiseram saber outros que ainda não haviam recebido o pequeno “crayon”.
– “Sequere me”!
– “Sequere me”? De onde é isso?
– De São João, observou alguém.
– Também vem de São Lucas, foi daí que tirei, interveio Mario Dias. É aquela passagem em que Jesus, passando diante do telônio, viu um homem e lhe disse: “Segue-me”! Eu gosto muito dessa passagem.
– ´É, é interessante! Você não acha, Cesário? disse o colega, voltando-se para ele, que se conservava em silêncio no meio do alvoroço.
– A escolha foi ótima, não há dúvida.
Mario Dias agradeceu-lhe com um olhar.
Depois a roda de seminaristas foi-se dispersando. Apenas uns quatro ou cinco colegas detiveram-se em torno de Mario, indagando-lhe coisas. Por último ficou somente Andrade.
Cesário continuava calado, respondendo por monossílabos às perguntas que lhe faziam, e com a mão no bolso machucava a carta, pensando em Gabriel, fazendo conjecturas sobre a sua saída, recordando certos acontecimentos entre ele e o amigo distante… “Gabriel deixou o Seminário!” como aquelas palavras lhe pareciam absurdas formando assim um sentido… No entanto, era já agora um fato consumado… Da leitura da carta, apenas esta frase lhe calara fundo: “A minha saída em nada deve afetar a nossa amizade, ouviu?” Ele sentia justamente o contrário. Naquele momento o caminho se bifurcara e cada um seguiria por seu lado… Mas teria ele coragem de seguir sozinho?
Compreendeu por que caminhos aquele sentimento o estava levando ou poderia levar, e tentou reagir, interessando-se pela conversa entre Mario e Andrade.
Mas quando o sino tocou, dando fim ao recreio, Cesário viu-se dominado pelo mesmo sentimento. E detendo o amigo pelo braço:
– Mario, pelo amor de Deus, escreva-no no “estudo” da noite. Quero saber de tudo que se passou com Gabriel, ouviu? Ou melhor, não escreva, vá ao cubículo de “Padre” Angelo que eu apareço lá, sim? Mas vá mesmo, ouviu? Você vai?
– Vou… murmurou Mario Dias.
Seguiram ambos para seus cubículos, afim de vestir a sobrepeliz para a “via sacra”, pois era uma sexta-feira.
Mario Dias teve ainda um leve sorriso ao pedido do amigo. Mas Cesário, na sua agitação, nem o percebeu.
Ao saírem da capela, após a “via sacra”, Mario Dias murmurou baixinho ao amigo:
– Cesário, não é preciso ir ao cubículo de “Padre” Angelo. Amanhã conversaremos com calma, não é melhor?
– Está bem, respondeu ele, que já se arrependera do que havia feito.
Mas chegando ao cubículo, em vez de estudar as lições do dia seguinte, começou a reler a carta.
Relia-o pela quarta ou quinta vez, tentando encontrar nas palavras do amigo o motivo de sua saída, quando ouviu alguém bater à porta. Sem saber porquê, pensou em Mario Dias e levantou-se para abri-la na certeza de que era ele.
– Que há, “Padre” Angelo?
– Que espanto é esse, Cesário? Não há nada, Monsenhor reitor quer falar com você.
– Comigo?
– Sim.
– Sabe para que Monsenhor me mandou chamar “Padre” Angelo?
– Não, Cesário.
– Será que ele está na reitoria ou no quarto?
– A esta altura talvez esteja no quarto, não sei… Mas você está assustado?
– É esquisito! Que quererá de mim Monsenhor reitor? Ele não faz destas chamadas…
Cesário seguiu pelos corredores. Ao chegar ao quarto do reitor, ajeitou a voltinha, puxou a faixa, e depois de passar a mão no cabelo, bateu.
– Entre!
Cumprimentou o reitor, que estava sentado a ler a correspondência dos alunos.
– Como vai, Cesário? falou o reitor, quando o seminarista lhe tomou a benção.
– Vou bem, Monsenhor. O senhor me mandou chamar, não é?
– Sim, sente-se aí!
Cesário sentou e observou que sobre a mesa havia um pequeno embrulho com seu nome. Reconheceu a letra de Gabriel e lembrou-se com satisfação do livro que este lhe prometia na carta.
– Cesário, chamei-o aqui para perguntar-lhe uma coisa: porque tem conservado a luz de seu cubículo acesa, à noite, além das horas permitidas pelo Regulamento?
– Monsenhor, eu não pensava que a havia conservado até tão tarde assim!
– Eu não gosto de andar vigiando ninguém; os senhores, aliás, conhecem bem o meu feitio. Mas ultimamente, à noite, antes de deitar-me, tenho dado uma volta pela casa. E observei que alguns dos senhores têm esse hábito. O senhor é um deles, o que estranhei bastante. Ontem, por exemplo, eram dez horas quando o senhor resolveu apagá-la. Estive passeando no corredor e quase bati à porta de seu cubículo. Será que o senhor não sabe a que horas deve apagá-la?
– Sei, Monsenhor.
– Então? E em que se ocupa durante esse tempo?
– Em nada, Monsenhor.
– Em nada?
– Em pensar, em…
– Mas para pensar precisa de luz acesa? interrompeu ele, contendo um ligeiro sorriso.
– Em mil coisas… às vezes leio.
– às vezes lê! Está muito bem que se leia, desde que essas leituras sejam dirigidas por seu diretor espiritual; o que eu lhe exijo. então, é que se faça dentro de horas regulamentares, ouviu?
– Está bem, Monsenhor. A luz de meu cubículo será apagada quando der o último sinal de silêncio. Aliás, isso só me aconteceu esta semana… Eu não tenho esse hábito.
– Bom, mas de qualquer forma, foi um descasozinho à disciplina, Cesário.
– De fato, Monsenhor. Mas espero que por esta vez me releve a falta.
E lançou um olhar interessado ao pacote.
– Sim, é seu. Mas me diga uma coisa: quem é esse Marcel Proust? Será um autor que um seminarista possa ler? Naturalmente, se lhe faço a pergunta é porque espero que seja franco; quero que os meus seminaristas se habituem a conduzir-se sempre por espírito de lealdade consigo próprios e não por coação. Por isso é que eu retirei esse critério de notas em conduta… Mas como lhe havia perguntado, que me diz desse autor?
Cesário esqueceu-se da situação em que estava e, entusiasmando-se:
– Ah! é um grande romancista moderno, Monsenhor. Um poeta em prosa!
Mas já arrependido de se ter expandido e para justificar o seu entusiasmo de seminarista pelo autor profano: Sobretudo um grande psicólogo! Aprende-se muito com ele nesse terreno…
– Está bem. Mas ao lado dessas qualidades todas, não terá nada de inconveniente para um seminarista? Já leu algum livro dele?
– Já, Monsenhor.
– E que me diz?
Cesário lembrou-se de certas passagens do livro, e, indeciso, não quis opinar.
O reitor tomou o embrulho:
– Está aí, aconselho-o a consultar o seu diretor espiritual, ouviu?
– Está bem, Monsenhor, obrigado.
Pôs o embrulho debaixo do braço, beijou a mão que o reitor lhe estendia, e saiu.
– Mas ao chegar à porta de seu cubículo o sino tocou para a oração da noite e teve que abandonar o livro sobre a mesa. Deixou-se, porém, ficar folheando por uns instantes. Quando entrou na capela encontrou a comunidade já reunida e o deão a puxar, com sua voz alta e reta, a oração da noite.
Ajoelhou-se em seu lugar. A voz do deão dizia agora:
“Ponhamo-nos na presença de Deus e examinemos os pecados em que hoje caímos por pensamentos, palavras, ações e omissões, detendo-nos particularmente naqueles a que somos mais avezados”.
Calou-se; um silêncio de cinco minutos para o exame de consciência cotidiano.
Cesário começou a examinar os seus primeiros atos daquele dia, para ver se encontrava neles alguma falha, mas dentro em pouco estava pensando no livro.
E foi com a imagem dele na cabeça que fez a oração da noite.
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