Xavier Placer
Fazia exatamente um mês que haviam voltado para o Seminário.
Naquela tarde a comunidade saía da capela, após o jantar, quando Cesário viu aparecer e sumir rapidamente no corredor, um vulto comprido e magro.
“É Mario!” pensou ele. “Aquele jeito de entrar na porta, o movimento do braço… Graças a Deus, ei-los aí! Hoje não vou com a comunidade ao passeio da tarde. Fico no pátio à espera deles! Se “Padre” Angelo vier a saber, paciência…”
A comunidade saiu com alvoroço; deixou-se ficar. Pouco depois aparecia o amigo.
– Oh, Mario! exclamou Cesário, abraçando-o com efusão.
O amigo acolheu com uma certa reserva o abraço entusiástico; mas ele, feliz em tê-lo ali, não deu com aquilo, e expandia-se.
– Mas vocês, hein! Pensei que não voltassem mais. Que férias, sim senhor!
E contemplando o amigo com satisfação:
– Você está tão abatido, Mário!
– Você acha? É possível. Tenho andado com uma falta de apetite horrível…
Cesário arrependeu-se do que tinha dito, pois bem sabia quanto Mario era impressionável quando se tratava de qualquer alusão à sua saúde, que era fragilíssima, e procurou disfarçar:
– Isso é da viagem… tolice minha! e sem mais paciência de guardar a pergunta que o perseguia: Então, e Gabriel?
Mario Dias sorriu, pensando: “Se ele soubesse a notícia que trago! Como vai ficar admirado… Não vai querer acreditar!”
Cesário insistiu:
– Ficou arrumando as coisas lá em cima, não é? Mas que camarada desatencioso, porque não deixa isso para logo mais à noite?
O amigo tornou a sorrir.
– Você perdeu a fala, Mario? Que há com você?
– Nada.
– Então para que esse ar de mistério?
– Estou com ar de mistério? Em compensação você está bastante expansivo, Cesário.
– É? Será devido à chegada de vocês… Não é natural? respondeu Cesário, neutralizando o efeito daquilo com um sorriso. Mas escute, Mario, enquanto Gabriel não aparece vá me contando as novas, ande!
O amigo inclinou-se para ele:
– Gabriel não está lá em cima, não, Cesário.
– Não está?
– Não. Mas eu tenho uma carta dele para você…
– Uma carta dele? Que significa isso? Ele não veio? Doença? Que há?
– Nada disso, respondeu Mario. E destacando bem cada palavra: Gabriel deixou a batina, Cesário.
– Não é possível, Mario! Eu conheço você, está brincando… Que há, ande!
– Antes estivesse! Mas olhe a carta dele, disse, passando-a às mãos do amigo.
Cesário retirou-a do envelope e, meio descrente a princípio, leu:
Meu ótimo Cesário,
Você esperava este desfecho, talvez que não ex-abrupto como se realizou. Mas não vai ser lá grande surpresa, certamente. Ele tinha que vir. Veio logo.
Para arrancar esta pressão angustiosa que me afogava; para restituir, de novo, a primitiva originalidade das minhas faculdades e realizar a sonhada liberdade de criar.
Não me fizeram recuar as altas barreiras que se puseram ante mim, os compromissos morais, o receio do desconhecido. Os percalços múltiplos e de toda a ordem não me taparam a boca, e assim falei a linguagem da verdade, passando por cima do intelectualismo formalista e definidor que me cercava.
Agi com a minha consciência, estou certo de que agi sobrenaturalmente. Fui coerente comigo mesmo. Estou tranquilo.
Como selar um compromisso eterno se as ondas tumultuam impossíveis, fazendo-me tremer a cada passo? Quase diácono, quem diria? Que terrível inconsequência me ia levando de “ordem” em “ordem”! E assim, timidamente, eu acabaria no sacerdócio…
Mas depois? Ah, meu querido Cesário, depois a tremenda realidade e uma situação sem remédio.
Pois bem, debrucei-me sobre mim mesmo, meditei muito e, enquanto era tempo, decidi-me. A luta, a perene luta que Bourget tão lucidamente pintou nas fortes páginas do “Le Démon du Midi”; a dualidade interior, aquela mesma que eu tentei retratar uma vez naqueles poemas que tanto o impressionaram (Tudo é dois. A vida é proibido, lembra-se?) obrigaram-me a tomar a posição em que melhor possa combater.
É a escolha inadiável.
Num ensaísta nosso, que eu desconhecia, li há tempos, esta nietzschiana que me ficou na memória: “É preferível a escolha do erro a nenhuma escolha”. Como isto neste momento fala a mim! A escolha! Já pensou, meu querido Cesário, como em qualquer circunstância é grave escolher? Todo o homem (exceto, é claro, aqueles de quem São Paulo diz: “cujus deus venter est” mais cedo ou mais tarde vê-se diante do dilema terrível. É o grande momento da existência. Único, mas sobretudo terrível, porque não se repete. Esse instante é que vai decidir toda a vida. Quem tiver coragem de olhá-lo de frente, está salvo. Quem não tiver, esse breve momento pode tornar-se fatal. Quantas existências – não digo falhadas, pois ninguém pode afirmar que alguém falhou – quantas existências desajustadas, realizando-se dentro de um processo errado, cristalizando-se dentro de pontos de vista falsos, porque partiram de um erro inicial, de uma aceitação a priori, hein? Nunca o impressionou a constatação dessa verdade?
Neste tom, iria longe. Teria mesmo prazer de caminhar mais interiormente com você, com você meu querido amigo. Mas tenho medo de impressioná-lo. Atualmente (é a experiência que me está advertindo disto) palavras minhas não lhe serão de nada proveitosas.
Por isso, eu paro.
Peço muito encarecidamente que aos pés dessa querida imagem de Nossa Senhora, você lembre o meu nome. Com fraternal carinho. E o nome da minha pobre mãe. Infelizmente não pôde compreender meu gesto – como é doloroso fazer sofrer aqueles a quem amamos!
Obrigado e um abraço do
GABRIEL.
Post-scriptum: Enviei-lhe ontem pelo correio o “Le Temps Retrouvé” do nosso caro Proust. Penso que terá sobre ele a mesma impressão minha. Bom, de qualquer forma, escreva-me. Importante: a minha saída em nada deve afetar a nossa amizade, ouviu? Desculpe a ortografia desta carta. À última hora estive para não lha mandar. É horrível. Se a gente pudesse passar uma esponja no passado e recomeçar! Bem, adeus. Um novo abraço.
G.
Assim que terminou a leitura da carta, Cesário encarou o amigo sem dizer palavra. Mario Dias compreendeu a estupefação daquele olhar e não se fez indagar.
– A coisa foi muito simples, Cesário. Entramos em retiro no Palácio Arquidiocesano para a recepção do diaconato e no último dia, à noite, ele me dá a notícia que você já conhece. Havia conversado, disse-me, com o sr. arcebispo e tudo estava definitivamente (foi o termo dele) resolvido. Gabriel me bateu nas costas e com um sorriso doloroso: “Paciência, Mario, é a vida!” Mas que diz ele aí?
– Você ainda não leu?
– Ainda não.
Cesário passou a carta para o amigo, que se pôs a lê-la, por sua vez, em silêncio.
Como se haviam deixado ficar parados, desde o primeiro momento, Cesário propôs, com uma necessidade súbita de movimento:
– Mas vamos andar, Mario!
O outro obedeceu-lhe sem desviar a atenção da carta e começaram a passear ao longo do pátio deserto.
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