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Nem Gabriel lhe escrevia, como prometera, nem lhe chegava notícia de espécie alguma dos dois amigos.

         As aulas entretanto haviam começado. Sob a ação de retiro, nas primeiras semanas, Cesário atirara-se com ardor aos estudos; mas como os dias fossem passando, a ausência de Mario e Gabriel punha-o inquieto e esmorecia-lhe o entusiasmo.

           Começou abreviando as obrigações.

        Após  as aulas, já não fazia mais os resumos e só preparava as lições de Teologia. Mas por último nem isso fazia, ou, por descargo de consciência, limitara-se a lê-la uma ou duas vezes, quando pressentia que ia ser inquirido.

          Enervante insatisfação! Entrava em seu cubículo, após o recreio da manhã, punha-o em ordem sem gosto nenhum, sentava-se à mesa, abria o grosso compêndio de Moral, lia um longo trecho tentando compreender… e quando recobrava consciência de si, surpreendia-se a pensar em coisas diferentes.

    Recomeçava imediatamente a leitura, num novo esforço de compreensão, mas via que era inútil.

          Levantava-se e, entediado, desgostoso consigo mesmo, fechava o livro, pondo-se a andar nervosamente no cubículo, pensando, Pensando em quê? Se lho perguntassem, ele próprio ficaria surpreso. A imaginação cabriolava por longe, saltando de uma ideia para outra, e num momento percorria mil coisas sem se deter em nada.

            Lembrava-se então de ir à capela.

           Ao surgir-lhe esta ideia ficava contente por alguns instantes, vendo diante de si uma ocupação que lhe era agradável executar. Deixava precipitadamente o cubículo. Para prolongar o caminho. tomava pela galeria externa.

         Mal chegava à porta da capela, porém, arrependia-se de ter vindo. Que diabo viera fazer alis? A oração do manhã, a meditação, a missa… não o haviam retido durante quase duas horas na capelas? Mas já que estava ali, entrava. Fazia uma curta visita ao Santíssimo e recolhia-se de novo ao cubículo.

          Voltava agora pelos corredores internos. Estavam desertos àquelas horas e sob o silêncio geral cada um preparava as lições. Às vezes, ao passar, ouvia o rangido de uma porta que se abria. Era um colega saindo do cubículo; mas – o que Cesário não podia deixar de observar – lá ia ele com um livro aberto na mão!

         “Só eu, considerava, só eu a estas horas por aqui! Porque não me deixo ficar, como os outros, no cubículo a preparar as lições? Na arguição da terça-feira eu me saí mal, Cônego Melo chamou-me de novo na quinta… e não fui menos infeliz. O ouvi significativamente. Dou-lhe razão: já não sou o aluno dos anos anteriores! Mas que fazer, que fazer, se eu sinto que me falta qualquer coisa?  Isto não está em mim, não depende de mim...”

          E o fiasco que pressentia não se fez demorar.

      Era um sábado. O sino tocou para a aula e Cesário, apanhando maquinalmente os livros, dirigiu-se para o salão geral. “Se Cônego Melo, pensava ele, tiver a infeliz ideia de me chamar hoje, estou perdido

perdido. Nem sei qual é a lição… Mas é possível que não me chame! Não chama! Vou tomar um ar bem displicente, responder à chamada com firmeza e, quando ele procurar alguém para inquirir, encaro-o ousadamente…”

         Este “não chama” Cesário dizia-o a si mesmo para não ouvir a voz da experiência, que lhe insinuava exatamente o contrário. Bem conhecia os métodos didáticos do Cônego Melo e mais de uma vez fora objeto de seus imprevistos.

      Sentou-se  na  carteira  com o coração  batendo.  Enquanto o professor não chegava, leu de corrida a lição. Mas Cônego Melo, que ao contrário dos outros professores não se fazia nunca esperar, entrou pela porta adentro. Puxou a oração de antes das aulas, e enquanto todos se sentavam, abriu o livro das “notas”, começando a chamada. Ao chegar ao nome de Cesário, ergueu a cabeça para certificar-se de sua presença. Também, ele havia respondido tão baixo!

         Terminando, correu os olhos pelo salão, como se estivesse ainda em dúvida sobre quem chamar.

            – Audiamus dominum…

      Cesário encolheu-se por detrás do colega da frente e, por um momento, teve a esperança de que o perigo passasse “Nossa Senhora, salvai-me desta vez!” murmurou.

      – Dominum  Caesareum  Machado,  acrescentou  o cônego, erguendo-se um pouco da cátedra para fixá-lo.

        Deixou-se abater na carteira como um condenado que acaba de ouvir a própria sentença.

       – Domine  Caesari.  Adest,  hic dominus Machado? continuou Cônego Melo.

             Houve um movimento de cabeças para ele.

            – Adest, cur non? Incipiamus ergo domine Caesari Machado.

         Ele sentia as faces em fogo e, contrariando o hábito, exprimiu-se em português.

       – Não estudei a lição hoje, Cônego Melo. É inútil perder tempo comigo…

           – Studivistine hodie? Quid dicis? Tibi defuit tempus?

           – Tive tempo, sim senhor, mas faltou-me vontade…

          Uma expectativa geral pesava no salão. A maior parte dos colegas (Cesário notou-o) havia baixado discretamente as cabeças. Naquele insólito silêncio, o diálogo entre ambos se destacava mais constrangedor.

          Era a primeira vez que Cesário se via numa situação como aquela. Tinha a impressão de que se despenhava por precipícios, conservando uma consciência cada vez mais lúcida da vertigem…

           Cônego Melo afetava não perder o bom humor:

        – Cecidistine animo?  Quaeso,  quid  hoc est? Sed etiam nescis quod sermone latino loqui debes?

           Cesário conservou-se paralisadamente calado.

           – Dexisti animo cecedere tibi, non? Aut audivi male, domine?

         Deusdedit olhou-o furtivamente. Cesário compreendeu que aquele olhar era um pedido: “Responde! Que é isso Cesário? Você está louco? mas ele continuou calado.

          – Sed animus hoc quousque tamdem deerit tibi? Hoc modo incipies curriculum?

           Houve um momento de silêncio geral.

         Depois, como se nada tivesse acontecido, cônego Melo procurou outro nomes:

            – Domine Deusdedit!

        Com espanto para todos, Deusdedit confessou também que não havia preparado a lição.

       Cônego  Melo  fechou  o compêndio, levantou-se e, sem dizer palavra, saiu pela porta afora.

            – Xi!...  Vai queixar-se a Monsenhor reitor!  murmurou alguém.

            – Nada! Cônego Melo não é desses… ajuntou outra voz.

           Cesário levantou-se e tornou a seu cubículo. Chegando ali, atirou o livro sobre a mesa, pousou a cabeça entre as mãos e incapaz de refletir sobre o que acabava de acontecer, deixou-se ficar. Como uma mariposa em volta de um foco luminoso, sua imaginação se debatia em torno desta única ideias: “Mas que foi isto? Como foi? E porque?”


 

          Passou o resto da manhã com febre e faltou por conta própria às aulas que se seguiram. À hora do almoço, não compareceu ao refeitório.

           Ninguém lhe observou nada.

         Da cama, onde se atirara, acompanhava mentalmente os atos da comunidade.

           “Estão de volta do refeitório… agora entram na capela para a ação de graças… Ajoelharam-se. A voz de “Padre” Angelo puxa a oração”. E dali a pouco: “Saíram para o pátio”.

        Começara o recreio do almoço. O falatório dos colegas chegava agora confusamente a seus ouvidos.

            Ergueu-se, fechou as janelas e atirou-se de novo à cama.

            De súbito ouviu distintamente:

      – É bem sabido que ele foi sempre mais inteligente do que estudioso…

            – E você sabe que Deusdedit tinha preparado a lição, hein?

            – Tinha, é?

          – Pois  ele me  emprestou  o  resumo no recreio da manhã… Se tinha!

          – E logo Deusdedit que goza de tão boa fama com cônego Melo, hein!

       – Um idiota!  Eu  é  que não fazia isso pelos belos olhos de Cesário… nem de ninguém!

       Houve  uma  risadinha  e  um comentário que não conseguiu perceber.

           E de novo:

           – Será que cônego Melo deu queixa deles a Monsenhor reitor, que acha você?

          – Não digo que dê queixa, mas que conte em conversação, é que não duvido. Aliás, cônego Melo tem dessas manias.

           – Como?

        – De repetir as coisas… Eu o ano passado me confessava muito com ele… Mas uma vez que me levou a ajudar-lhe a missa lá fora, pegou a fazer alusões a coisas que eu havia confessado…

          – Não teria sido impressão sua?

          – É fato. Eu acho mas é…

          – O que?

          – Que está ficando gira. Aliás…

        A esta altura houve nova risadinha. Cesário levantara-se; atrás da veneziana, seguia a conversa e, ardendo de curiosidade, pensava: “Quem serão. meu Deus? Quem tem o hábito de repetir aliás é o Alexandre....Mas pela voz não parece ele. Ei-los que recomeçam! Eu não devia fazer isto, em todo caso…”

             – … mas o nosso amigo voltou completamente outro!

             – E você não percebeu ainda as razões?

       – Que  pergunta!  Será  que  é preciso ser  tão  sutil  para compreendê-las?

           – Não, não estou dizendo isto. Mas às vezes a gente não repara certas coisas…

             – Ora…

             – Ele anda assim porque lhe faltam Mario e Gabriel!

       –  Mas é claro! Assim que chegarem os dois é só reparar a mudança… Aliás, essa amizade nunca me cheirou lá muito bem, sabe?

            – Oh! isso não… Você está fazendo um juízo temerário. Não diga isso, Josias!

            “Ah!  é  o  Josias… Mas que sujeitinho! Sim senhor, que juízo faz de minha amizade com Mario e Gabriel! Vou abrir a janela só para ele ver que ouvi… Quem será o outro?”

        –  Não sabia  que diante da evidência também se faz  juízo  temerário  – essa é boa!

             – Bom, mas no caso deles, três… Se fossem só dois!

             – Mas ali a amizade é entre os dois somente…

             – Entre os dois?

        – Sim, entre Cesário e Gabriel. O Mario, coitado, com aqueles óculos… hi, hi, hi…

             – Puxa, Josias, mas você…

             – Bem não se fala mais nisso! Sabe que mandei fazer uma batina outro dia?

             – É?

             – No dia da saída.

                – Eu fiz durante as férias… Por sinal que ficou ótima.

          – Eu também ia aproveitar as férias… Mas fui adiando, e acabei não fazendo…

           “E  se  eu  abrisse  a janela para ver quem é o outro? – Mas que coisa indigna tudo isto! Eles falando mal de mim, eu à escuta por detrás da veneziana… Não quero saber quem é. Mas que juízo fazem de minha amizade, sim senhor! Vou abrir. Não, é melhor ignorar! Mas quem será?”

          Atirou-se  de  novo  à  cama. Não queria pensar na observação injusta do colega sobre a sua amizade com Gabriel, mas aquilo não lhe saía da cabeça.

           Na parte da tarde compareceu às aulas amparado interiormente pela ideia de ir conversar à noite com o diretor espiritual. E ao saírem da capela, apressou-se em dirigir-se ao quarto do velho padre.

        Bateu de leve à porta, o ouvido atento àquele “entra” tão seu conhecido.

           Monsenhor Henrique passeava no quarto, rezando à meia voz o breviário.

            – Com licença, Monsenhor! murmurou o seminarista, encostando a porta com cuidado, por mais de uma vez a perturbação fizera com que ele a deixasse bater com estrépito.

             – Pois não. Sente-se aí, meu filho. Um momentinho, que eu estou terminando um salmo e já o atendo.

            Cesário obedeceu; porém, mal se havia sentado na cadeira junto à mesa, posta ali para aquele fim, uma inexplicável sensação o dominou: “Mas que vim fazer eu aqui? Já não estive com Monsenhor Henrique na semana passada, no dia em que tinha obrigação de fazê-lo? Não devia ter vindo! Interessante, passei a tarde de hoje tão confiante nesta entrevista e agora tudo se desfaz… estou arrependido de ter vindo. Que hei de dizer quando ele me perguntar como vou de vida espiritual? Que vou bem? Mas eu vou bem?

             – Então, meu filho, como vamos de vida espiritual? disse o padre, colocando o breviário sobre a mesa e sentando-se.

         – Vou bem,  Monsenhor . Isto  é. vou como sempre… emendou rápido.

          – Está certo. Isto é que se quer, meu filho. Na estratégia da vida espiritual, vai-se progredindo por etapas. E quando não se consegue avançar  – claro, o ideal é caminhar sempre para a frente – já é uma grande coisa conservar a posição conquistada. Tem, então, se aproximado com assiduidade dos sacramentos, não é, meu filho?

           – Sim, Monsenhor. Confesso-me uma vez por semana, às quartas e comungo diariamente.

           – Muito bem, muito bem. Continue assim. Se para os simples fiéis, o cânon 863 formula o voto da comunhão frequente ou se possível, diária, “etiam quotidie”, que se dirá tratando-se de um seminarista, não é exato, meu filho?

       Cesário fez um sinal de assentimento com a cabeça. O padre continuou:

            – E ao lado da Santa Eucaristia, está o sacramento da Penitência, é claro. Oh, esse divino tribunal onde o homem se lava de todas as culpas! acrescentou com um acento grave na voz e juntando as mãos. Já meditou bem sobre a grandeza incomparável desse Sacramento, meu filho?

         – Medito, Monsenhor. Aliás a sua conferência de quinta-feira foi sobre isso…

            – Pois foi. E a próxima vez que me dirigir aos senhores ainda será sobre o mesmo tema. É um ponto em que nunca é demais insistir, a confissão. Os santos bem o compreendiam! Ah, o exemplo dos santos! Esses homens tão ciosos da beleza de sua alma tinham por regra a confissão frequente. Eu tenho aqui (tirou de um livro um pequeno cartão) umas notas que pretendo desenvolver. Ei-las: Santo Inácio de Loiola, São Carlos, Borromeu, São Francisco de Sales, São Vicente de Paulo confessavam-se regularmente cada manhã. São Leonardo de Porto Maurício confessava-se duas vezes por dia. O piedoso cardeal Bona, em seu tratado “Do Santo Sacrifício da Missa”, quisera que todo o sacerdote habituado a celebrar diariamente, se confessasse pelo menos duas vezes por semana. Está vendo, meu filho?

              – Realmente, Monsenhor.

              – É uma regra fundada na experiência. Está averiguado que uma confissão, mesmo bem feita, só influi sobre o proceder do penitente uns três ou quatro dias, no máximo, tornando-se depois necessário novo e contínuo recurso ao Sacramento, se ele quiser sentir, por mais tempo, os efeitos da graça sacramental. Pois bem considerando, que é o homem, meu filho?

              – O homem, Monsenhor?

              – Sim, o homem, a criatura humana?

              Cesário ficou olhando o padre, sem resposta.

              – Não é um verme que se deixa dominar por todas as tendências do mal e do orgulho?

              – É....

             – Eis por que Nosso Senhor, na sua infinita bondade, nos deixou esse santo Sacramento. Por ele o pecador torna-se de novo filho de Deus e herdeiro do Céu. Eis a razão pela qual eu não me canso de insistir nesse ponto, compreende?

              – Compreendo, Monsenhor.

             – Pois bem. Mas como já deve ter reparado, eu gosto de ser bem objetivo nestas entrevistas. Diga-me pois uma coisa, meu filho: gosta do Seminário?

             – Gosto, Monsenhor.

             O padre teve um longínquo sorriso no canto dos lábios.

       – O  senhor diz : “gosto, Monsenhor!”  mas de maneira tão indiferente… Eu pergunto se gosta de fato, com vivo zelo, como é preciso gostar, isto é, afetiva e efetivamente, digamos assim, responda-me.

             – Monsenhor, a falar verdade…

             – Sim, pode dizer.

            – Eu gosto. Mas não gosto com uma certa continuidade, nem sei como me expressar. Há momentos…

             – Dê um exemplo, meu filho.

          O padre tocara sem o saber no ponto sensível. Cesário sentiu o coração opresso, hesitava.

             – Não sei, Monsenhor, Eu…

       – Não sabe, meu filho? Abra-se sem reservas ao seu diretor espiritual, vejamos, fale!

          Como Cesário não respondesse, fez-se um estranho silêncio. Os olhos ardiam-lhe.

             – Então, meu filho?

           – Monsenhor, eu não me compreendo… respondeu num arranco Cesário, ao mesmo tempo que lágrimas, lágrimas quentes e abundantes, correram pelas faces em fogo.

            – Que é isso, meu filho? acudiu inquieto o padre, erguendo-se de sua cadeira. Que é isso?

            Cesário deixara cair a cabeça sobre o braço e, apoiado na mesa, abandonava-se àquela explosão súbita de sentimento.

         O padre compreendeu que havia qualquer coisa e preferiu não insistir. Calado, pôs-se a passear de um lado para outro no quarto, à espera de que aquilo passasse.

       A crise foi aos poucos serenando… O ruído dos passos de Monsenhor trouxe-lhe a consciência da situação.

               Era melhor retirar-se

             Então levantou-se e enxugando os olhos, pediu-lhe licença para o fazer.

             – Pois não, meu filho. Mas volte aqui amanhã. Amanhã ou outro dia qualquer… quando o coração lhe pedir, ouviu?

         – As  coisas  giraram  confusamente  diante  Cesário.  “Sim, amanhã!” pensava dirigindo-se à pressa para seu cubículo. “Amanhã virei conversar de novo com Monsenhor, amanhã. E isto era a única ideia que lhe surgia clara em meio à confusão que o dominava. “Sim, amanhã! Amanhã!”

       Entretanto,  horas  depois,  já  senhor de si, recompondo mentalmente a cena, atormentou-o devida se tinha ou não respondido às últimas palavras do diretor espiritual. E não conseguiu precisar. Uma coisa apenas recordava ao certo; na precipitação de sair, nem tomara a benção a Monsenhor, que ficara plantado no meio do quarto…

 

 

XVIII

 

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