Xavier Placer
Aquele retiro havia tocado profundamente o seu espírito. No último dia, no mesmo intervalo de 9 às 10 da manhã, encaminhou-se para os eucaliptos.
“Quantos como eu – meditava possuído de intenso entusiasmo espiritual – quantos como eu, não têm a graça de encontrar-se numa situação como esta! Sob aqueles tetos – seu olhar perdia-se no telhario da cidade ao longe – quantas criaturas, absorvidas na luta pela vida, que nunca tiveram uma só ocasião em suas existências, para pensarem em seus destinos, para se encontrarem a sós com as suas preocupações mais íntimas, com as suas almas! E eu, eis que me encontro nesta situação privilegiada, que Nosso Senhor me concede exclusivamente para este fim! Seria uma ingratidão desperdiçar esta graça… Quem sabe, afinal, se não será o último retiro que faço em minha vida? Que me dirá que eu viverei muitos anos anos ainda, um ano sequer, alguns meses, uma semana ou um dia, se chegarei mesmo ao fim deste retiro?”
E uma das suas preocupações mais comuns, a consciência sempre presente da morte, surgiu-lhe ao espírito com todas as ideias que a acompanhavam…
“Mas não, tenho a consciência tranquila de que o aproveitei como devia!” disse a si próprio, esforçando-se depois de alguns instantes da apreensão, em libertar-se do círculo daqueles pensamentos lúgubres.
“Deste retiro – continuou – sairei renovado, despertará em mim um outro Cesário! Que terá, em suma, impedido que eu seja de fato o seminarista que todos vêem em mim? Interessante, porque não se demonstram certas tendências, ou porque não têm olhos para vê-las, concluem daí que não a temos… Como se enganam! No entanto, isso também não é hipocrisia de nossa parte. Uma vez que o mal existe, ainda seria pior a ostentação dele. Demonstrá-lo para sofrer a humilhação? Mas esta humilhação não evitaria o escândalo…”
Indo e vindo tranquilamente à sombra dos eucaliptos, abandonava-se a pensamentos deste gênero.
Em certo momento, as palavras que ele conhecia de cor dos Evangelhos, despertadas por uma coerência a cujo processo ele ia assistindo com a lucidez de sua paz interior, vieram-lhe à memória: “Nemo potest duobus, dominis servire: aut enim unum ódio habebit, et altero diligent; unum sustinebit, et altero contemnet. Non potestis Deo servire et Mammonae”. Sim, no meu caso a literatura. Ideo dico vobis, ne soliciti sitis animae vestrae quid maducetis, neque corpori vestro qud induamini. None anima plus est quam esca… Não há dúvida, isto se aplica a mim, à minha alma; a salvação deve estar acima e fora de toda a veleidade literária! Vou esclarecer bem este ponto, depois do retiro, com Monsenhor Henrique… Ou será melhor com Padre Tobias? Talvez com ele… Porque será que Padre Tobias renunciou à literatura? Está aí uma coisa para fazer pensar… Bom, mas o texto? ah, nonne plus est quam esca et corpus plus quam vestimentum?”
Não se recordava direito como continuava o texto; lembrava-se apenas do trecho em que encontrava sempre uma sugestão infinita de poesia.
Tentou reconstitui-lo: “Et de vestimento quid,,, solicite estis? Considerate lília agri quomodo crescunt: non laborant neque nent. Dico autem vobis, quoniam nec Salomon in ommi gloria sua coopertus est sicut unum existis”.
– Último dia, hein. Cesário!
Sorriu para o colega, para não deixá-lo sem resposta, e passou adiante, disposto a levar até o fim o seu propósito de guardar o mais rigoroso silêncio naquele retiro. Mas este encontro o afastou por alguns instantes da linha de seus pensamentos. Pôs-se a observar a paisagem, a que não dera maior atenção até ali.
Um vento forte soprava sobre o capinzal da elevação para além dos eucaliptos. As espiguilhas de capim estavam maduras, amarelecidas, e ao soprar sobre elas, o vento provocava ondas macias (era a impressão de seus olhos) de veludo…
“Uma paisagem impressionista – pensava ele – esbatida, fugaz, a ação do vento num instante, num rápido instante apenas perceptível à nossa visão e que se perde para sempre…”
Estas impressões levavam-no, sem perceber, ao encontro dos pensamentos de há pouco.
“Oh! as minhas ingênuas tentativas em fixar esses momentos! Qual a seria a expressão guardando a mesma vida que a realidade contém desse vento, por exemplo, soprando sobre o capinzal? Tão simples e tão belo! No entanto, como a arte trai essas pequeninas grandes emoções. Parece que no próprio ato de querer fixar há uma transição de planos – e nesse processo, a perda da grande poesia. Com relação a nós, a arte é isso – o que se consegue fixar. Mas o que não se consegue e se deve desprezar em favor… como dizer?... da técnica… não será, quem sabe o melhor? Agora que compreendo: é por isso que eu, diante de qualquer manifestação do sentimento artístico, nunca me deslumbrei, nunca me senti plenamente convencido e jamais pude dizer intimamente: “Está aí – era exatamente isto que eu procurava!” A arte! Porque se faz arte? Uma fatalidade de certos temperamentos? Uma outra maneira de viver? Ou acima de tudo, uma fuça? Mas porque? Porque não assimilar ao nosso espírito toda beleza transcendente e exterior, mas assimilá-la como uma experiência viva, um enriquecimento apaixonado, de modo que o homem todo fosse o objeto de sua arte? Quem sabe se os verdadeiros artistas não serão certos seres obscuros, simplicíssimos, que se limitam a viver, a viver intensamente, sem jamais se preocuparem com o processo? Porque não perdura, ou não se comunica, essa forma de arte será menos bela? E afinal de contas, haverá beleza que não perdure ou que fique escondida? Cristo nunca escreveu nada. Entretanto… E os anacoretas, os monges, todos os grandes imitadores seus, que buscaram exclusivamente a perfeição da própria alma não são hoje símbolos de uma poesia viva?”
Todo entregue a estas cogitações, resolveu voltar ao cubículo, ansioso de ver o texto nos Evangelhos.
Lembrou-se de que o livro estava na capela e entrou aí. Depois de ter folheado os outros evangelistas, achou o texto que procurava em São Mateus – só então reparando que as palavras que ainda há pouco tanto lhe ocupavam o pensamento, faziam parte daquelas páginas que lhe pareciam a mais sábia e a mais bela mensagem de Amor aos homens.
Ajoelhou-se e, com a cabeça entre as mãos, começou a ler, desde o início, o Sermão da Montanha:
Vós sois o sal da terra… vós sois a luz do mundo… Quantas vezes não ouvi estas mesmas palavras aplicadas ao sacerdócio! E eu que me proponho um tal fim, levo eu, uma vida coerente com esse objetivo?
Deixa a tua oferenda aí diante do altar e vai reconciliar-te com teu irmão, para depois vires fazer a tua oblação… Sim, eu compreendo, devo esquecer-me a mim mesmo, abdicar de todo o meu ser, para que a minha oferta seja agradável a Deus… Certamente é este o sentido destas outras palavras: Se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e lança-o de ti, porque é melhor perder um dos teus membros do que todo o teu corpo ser lançado ao inferno… Que vida dissipada levei nestas últimas férias! Como dei largas aos meus sentidos e em vez de me corrigir ainda fiz disso “literatura”... Quando orais não vos porteis como os hipócritas… Não ajunteis para vós tesouros na terra onde há ferrugem e traças que os consomem e onde há ladrões que os roubam… (sorriu ironicamente, lembrando-se que uma vez escolhera esta passagem para epígrafe de um poema). Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis aos porcos as vossas pérolas… Sim, eu sei o que querem dizer estas palavras, eu as tomarei daqui para a frente a sério! para que não suceda que as pisem aos pés e voltando, vos dilacerem… Pedi, e vos será dado… Meu Deus! eu sei que só tu me compreendes, só em ti buscarei auxílio! Pois todo o que pede… Quantas vezes não fui objeto das predileções de tua Graça, Senhor! O que procura acha; e a quem bate abrir-se-á… Eu entendo… Isto foi dito para mim. Não é da doutrina da Igreja que Jesus não teria deixado de vir ao mundo ainda que fosse para salvar uma só alma? Estas palavras são para mim!
Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçosa a entrada que conduz à perdição; e muitos são os que entram por ela… Nada mais claro: a porta estreita é o sacrifício, o sacrifício total e generoso de mim mesmo, que devo fazer a Deus nas mãos da Igreja! Só ela é sábia, só ela é depositária da palavra divina através dos séculos e só ela a conserva intacta…
Assim toda árvore boa dá bons frutos; e a má árvore dá maus frutos; toda árvore que não dá bom fruto é cortada e lançada ao fogo; portanto, por seus frutos, é que os conhecereis… Nem todo o que diz: “Senhor, Senhor!” entrará no reino dos céus, mas sim o que faz a vontade de meu pai… Caiu a chuva e transbordaram os rios e sopraram os ventos, e investiram contra aquela casa ; e não caiu porque estava assente sobre a rocha. Estava assente sobre a rocha, releu Cesário, mas eu estou sobre a areia movediça do meu pouco amor e é por isso que os ventos, ao baterem sobre mim, levam-me ao seu sabor… Mas não, meu Deus, eu não fecharei mais os ouvidos às tuas palavras! Só tu me cumulas de Graças e me compreendes, só tu és o Caminho, a Verdade e a Vida; tu, somente tu, Senhor, és o único objetivo digno de ser vivido! Aniquila em mim a pobre criatura cheia de mesquinhos orgulhos, de tolas veleidades… e sobre esses destroços ergue um novo homem!”
Sob a ação daquele fervor, levantou-se, voltando ao cubículo para anotar os propósitos daquele retiro. Antes de o fazer, porém, lembrou-se de uma coisa que à primeira vista lhe pareceu extravagante, mas que obedecia a uma grande coerência íntima: “E se eu queimasse a minha papelada? Não estou interiormente convencido de que não me devo meter mais com essas tolices? Sim, vou queimar tudo e vou fazê-lo já!” Se não destruísse a coisa material, teria a impressão que não realizava o seu propósito. Por isso, pôs-se a procurar imediatamente, entre os cadernos do curso. aquele em que reunia poemas e, de uns tempos para cá, um esboço de novela cheia de pretensões psicológicas.
“Que ridícula esta literatura! Eu, um seminarista…” pensava ele, enquanto buscava entre os livros, algumas folhas que sabia estarem ali.
Desfolhou o caderno com um prazer mau, folha por folha; reuniu tudo num amontoado só e, colocando-o no peitoril de mármore da janela, riscou um fósforo.
A chama começou fraca, dúbia, até que se foi aos poucos alastrando nos papéis.
Cesário ficou de lado, assistindo com um sorriso irônico àquela fogueira de poemas. “E dizer que há semanas atrás isto era toda minha razão de ser!...”
Um pedaço de folha não atingida ainda pelo fogo mostrava-lhe uma linha de poema.
Sorriu, e lembrou-se da continuação do poema, que se chamava Anotação:
E de repente,
a ânsia de apagar em mim os vestígios
do menino que eu fui, do adolescente.
Desejo de ser compreendido,
de chorar em silêncio,
de saber se Deus existe…
“Literatura, literatura, literatura…” repetiu Cesário com raiva. “É incrível que eu tenha escrito tanta asneira!” E puxou para o centro do fogo os papéis chamuscados que relutavam em desaparecer.
Por um breve momento a pequena fogueira, que ia morrendo, acendeu-se numa chama mais viva e os últimos fragmentos de folhas, retorcendo-se, tornaram-se côncavos e negros.
Ainda quis ter o prazer de tocar naquele cadáver de sonhos. “Agora estão mortos, ao pé da letra…” pensou, e, sorrindo, amassou com a mão aberta o esqueleto frágil das folhas enegrecidas, que se desfizeram em cinzas…
Depois saiu dali e tirou da gaveta o seu “diário” com intenção de anotar nele os propósitos que aquele retiro lhe inspirava.
Não o fez logo, contudo. Casualmente abriu-o numa página que, pouco depois de ter escrito (e sem compreender então o motivo) havia inutilizado de maneira a tornar a anotação quase ilegível, pondo-se a decifrá-la:
31 de Dezembro
Spiritus ubi vult spirat. E em verdade – terrível eleição! – o Paráclito baixou sobre a cabeça de todos nós, todos! Não foi por acaso que nos encontramos reunidos quando o grande ruído, impetuoso como um ciclone, encheu toda a casa – já éramos fatalmente irmãos!
Línguas de fogo caminharão sempre à nossa frente. Inútil cerrar os lábios, possuímos o segredo de todas as línguas, inclusive as desaparecidas há milênios e as que virão! Somos a decadência de uma aristocracia e os inauguradores de outra – é azul o sangue de nossas veias e fidalgo o nosso brasão. Legenda: “Amai-vos uns aos outros”
Em verdade somos o sol e a luz, e porque somos riquíssimos, nada possuímos. Aceitação, mãos juntas, Ave Maria gratia plena. Dominus tecum! Depressa, que a grande nau que nos conduzirá à Ilha vai largar!
O alto céu, e as ondas, e a fraternidade na viagem… Mas o dístico! Ah não poder esquecer o dístico: Proibido sonhar em fuga através das ondas! E a voz dos peixes: nós somos o alimento! E a visão das asas dos pássaros lavadas pelo Sangue! Miserere, miserere mei Domine! É inútil, a sentença foi lavrada no Livro para todos!
Amputaram-nos as mãos e os pés, estamos condenados a morrer – para ressurgir no terceiro dia.
Em verdade, escravos de nossa destinação, não mais nos pertencemos. Somos os grilhetas do Espírito, os grilhetas!
Compreendeu o que aquilo – um dos seus muitos momentos de exaltação interior – queria dizer, e porque se apressara naquela ocasião em aniquilar tais palavras, mas a sua perturbação não foi além de um sorriso – tanto aquele retiro o identificara (ou pelo menos acreditara ter identificado) ao que ele julgava ser o verdadeiro “eu”... Então abriu o caderno numa folha em branco, apressando-se em anotar os seus propósitos:
10 de Março, quarta-feira.
Compromissos que faço comigo neste retiro. Que Nosso Senhor os abençoe.
I – Propósitos de ordem geral. Para começar bem o meu dia: levantar-me logo que tocar o sino; preparar cuidadosamente as lições de cada dia, sobretudo as matérias que menos gostar; fugir da solidão. Nunca ficar em meu cubículo nas horas em que puder estar em contato com os outros. E entre colegas, procurar a companhia dos que menos me agradam.
II - Vida espiritual. Confessar-me uma vez por semana, no mínimo, às quartas-feiras; comungar diariamente; procurar o diretor espiritual de quinze em quinze dias.
III - Resumo: estudar seriamente a minha vocação e fugir sempre das ocasiões que a ponham em perigo. Cesário Machado. 1931.
Guardou o caderno, levantou-se da mesa e, contente consigo próprio, debruçou-se à janela, olhando a manhã, à espera de que o sino tocasse.
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