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E  assim havia passado o resto da semana.

     Era sábado de manhã. Acabados de chegar do refeitório, os seminaristas haviam-se espalhado pelo pátio.

           Começavam  a organizar-se jogos; a maior parte deixava-se ficar a conversar, quando Monsenhor reitor apareceu no recreio. Os seminaristas aproximaram-se.

       Ele  foi  abençoando  a  cada  um  e  quando  acabaram  os cumprimentos, dirigiu-se à roda que se formara em torno.

           – Então, já sabem quem vai pregar o retiro dos senhores?

          –   Quem  é, Monsenhor? apressou-se em indagar Deusdedit, que se pusera a seu lado.

           – Quem vocês estão pensando que é? Vamos ver!

           – Padre Joaquim!

           – Monsenhor Viana!

           – Frei Olivério!

            Monsenhor sorriu.

            – Ninguém acertou. É Padre Hernandez!

            – Padre Hernandez?

            – Não  conhece,  Brandão?  Disse  Monsenhor,  voltando-se  para ele.

            – Não me lembro quem é, Monsenhor…

          –  É um jesuíta espanhol. Aliás não me foi fácil arranjar pregador este ano. Atualmente a arquidiocese está em grande falta de sacerdotes. Foi preciso que o sr. arcebispo se dirigisse pessoalmente ao superior dos Padres Jesuítas. Mas o pregador não podia ser melhor…

            – Ótimo, Monsenhor!

      –  Esse Padre Hernandez é um que fez o ano passado uma conferência na semana de Ação Católica, aqui no Seminário, Monsenhor? perguntou Cesário.

            – Não me lembro. O ano passado?

        –   Ele  é baixo e gordo, não é esse, Monsenhor? interrompeu Andrade, que teimava qualquer coisa com outro.

           –  Ao  contrário,   disse  Monsenhor. É muito alto e magro… Logo mais à tarde ele está aí. Muito culto e, sobretudo, um homem de muita vida espiritual. Desejo que todos façam um bom retiro! Bem, com licença!

          – Até  logo,  Monsenhor!  repetiram  várias  vozes. Alguns ainda saíram atrás dele para fazer-lhe pequenos pedidos.

          Após o terço e a benção, à noite, teve lugar a abertura do retiro espiritual, que Cesário vinha esperando com ansiedade.

           Foi  solene.  O próprio reitor e alguns professores (ele notara, ao sair da capela, a presença de Padre Tobias) haviam-se abalado de seus quartos para assistir à conferência inaugural.

           Ao  terminar,  recolhendo-se  a  seu  cubículo  –   depois  desta primeira prédica com que Padre Hernandez, seguindo o método de “nosso beatíssimo pai Inácio de Loiola”, como ele repetia a cada instante, com  uma  pequena  vênia,  os  tivera  suspensos  quase hora  e meia  – Cesário pensava, possuído de intenso fervor:

            “Cinco dias de recolhimento e silêncio… Que bom! Vou tomar este retiro muito a sério!”

        E para convencer-se melhor, repetia: “Muito a sério! Que Nosso Senhor abençoe esta minha boa vontade! Depois, no último, anoto os propósitos e hei de observá-los rigorosamente (sublinhava “in mente” o advérbio) durante o ano letivo. Ah, desta vez fui apanhado de surpresa! Que período horrível, nem me quero lembrar… Mas de agora em diante!...,”

           Padre Hernandez  havia  tomado  para  tema de sua conferência esta passagem de São Paulo: “Statutum est hominibus semel mori”.

     E as ideias que desenvolvera  em  torno disto, voltavam insensivelmente à imaginação. Brevidade da vida, o inevitável da morte, os novíssimos do homem, a eternidade.

            Pendurou   a  sobrepeliz  no  cabide,  atrás  da porta, e voltou à capela. Estava lendo um capítulo da Iniciação, quando o sino tocou. Começavam a entrar os colegas e, pouco depois, a voz de “Padre” Angelo puxava a oração da noite.

             Com que profunda paz, com que imensa tranquilidade de espírito terminava para Cesário aquele dia!

             Ao voltar para o cubículo, como deixara as janelas abertas desde cedo, encontrou-o impregnado de friagem de fora. Sem saber porque, era grato até àquele frio; deitou-se sem as fechar. Já na cama, depois de fazer as suas orações particulares, deixou-se ficar olhando o céu, enquanto a imaginação o levava, levava…

            “Que coisa misteriosa a vocação! Que imenso ideal, o sacerdócio! Ser um outro Cristo! E é para isto que eu me estou preparando… Eu! Terrível dignidade! Como isto me enche o coração, mas me faz tremer, como me assusta ao mesmo tempo…”

            Naquele  momento, o sobrenatural não era para Cesário somente a sua fé; mas as palavras “vós sois o templo vivo do Espírito Santo”, tinham como que uma realidade quase palpável, física, uma certeza para além dos argumentos da razão. Estranha alegria! Apenas o remorso de a estar vivendo a sós se insinuava como uma sombra entre as sombras que iam enchendo de sono as suas pálpebras.

           “Como se quisera poder salvar todos os homens, até ao sacrifício de mim mesmo, se preciso fosse; a todos, indistintamente!...”

           Mas a mão pesada do sono foi atirando para um limbo confuso e neutro aquele emergir de sentimentos. Adormeceu.


 

        No outro dia, Cesário estava em seu cubículo e acabara de se aprontar, quando teve de súbito uma ideia.

          Foi  consultar  o  programa do retiro fixado no pátio; tempo vago entre 9 e 10 horas da manhã, resolveu ir andar para o lado dos eucaliptos.

           Havia ali um estreito caminho de pedras, longo e fresco, por onde a comunidade passava todas as tardes, durante o ano letivo, nos pequenos passeios pelos arredores do Seminário, após o jantar.

           Como estavam em retiro, era permitido sair dos cubículos e andar por todos os sítios da casa.

      No pátio, seminaristas movimentavam-se lentamente, exterior recolhido e grave, a rezar dois a dois o ofício de Nossa Senhora; nos bancos, junto à parede, viam-se outros, braços cruzados, o olhar perdido longe, ar de quem medita; aqui e ali, um entretinha-se, sentado nos degraus da escada, a riscar com tédio o chão; mais adianta, debruçado no tanque do centro, outro atirava bolinhas de pão aos peixes…

         Cesário  passou  pelos  colegas, subindo a pequena ladeira a caminho dos eucaliptos e teve a impressão de que todos, como ele, estavam possuídos das mesmas boas intenções.

           “Aliás não fazemos mais do que a nossa obrigação. Não é para isto que nos achamos aqui?” monologava, caminhando tranquilamente. “Somos todos seminaristas maiores… e queremos ser padres. Nosso único fim, portanto é o sacerdócio. Mas sacerdócio é apostolado. É sacrifício, e é também, falemos claro, santidade. Afinal para que vestimos batina? Certamente não é para conquistar posição social nem para ganhar a vida… Isso já faz o homem comum, sem se proclamar defensor do espírito… O que eu preciso fazer é, como disse o Padre Hernandez, criar o hábito da virtude, sem a qual não há construção interior, não há nada… Hoje eu estou no Seminário, tudo é relativamente fácil; o próprio ambiente predispõe-nos aos bons sentimentos e tudo vai muito bem. Mas um dia, ah! um dia eu me verei no mundo, entre gente desconhecida, talvez numa paróquia do interior, isolado, sozinho, entre gente simples e ignorante, e que será de mim se não contar com uma sólida formação espiritual?”

         Pensando assim. Cesário chegara sem o notar ao local. Dois seminaristas apenas tinham tido a mesma ideia e, os braços para trás, cabeças baixas, passeavam naquele momento ao longo da pequena planície.

           Como havia chovido de madrugada, os eucaliptos, agitando de leve os galhos esguios, apresentavam um aspecto lavado; um vento frio arrepiava agradavelmente a epiderme.

         Além  do  renque  de troncos esbranquiçados, continuava a pequena elevação, que ia morrer mais adiante, numa descida brusca. Àquela hora, um empregado queimava ali outra coisa: uma cortina muito alva de fumaça elevava-se serenamente para o céu azul; à direita, muito longe, o telhario irregular dos bairros, com a nota mais viva das construções recentes vermelhando ao sol.

          Era  longe  a  cidade. Pela da Catedral, situava-se o centro. Cesário começou a ir e vir, contemplando o panorama, quando de repente, assaltou-o aquela recordação: “É verdade, hoje é dia 7 de Março. Festividade de Santo Tomás de Aquino! Faz hoje anos que eu entrei para o Seminário! Deixa eu ver… Sete… sete anos! Sim senhor, sete longos anos que eu entrei pelos portais a dentro do velho casarão do Seminário Menor…”

              A seus ouvidos chegava o ruído dos eucaliptos sussurrando ao vento, e ele se deixava levar por um fluxo de intensa saudade, que lhe apertava com violência o coração.

                “Como o tempo foge, meu Deus, parece que foi ainda ontem…”

           E  revia  mentalmente  aqueles  anos. Lembrava-se menino, calças curtas e cabelos assanhados, dez anos inexperientes, os olhos observadores abertos curiosos para a vida…

            Como  se  recordava  perfeitamente  do  dia da recepção da batina! Até os menores detalhes… A primeira vez que vira o arcebispo, o início das aulas, a amizade com que Gabriel, terceiranista, o acolhera, a ele, novato… E hoje, seminarista maior, em vésperas de começar a receber as “ordens”... “No entanto nada mudou. Ou apenas mudou exteriormente… Mas com que pureza um antigo eu, que julgávamos desaparecido, ressurge de repente em nós! Este eu que assim emerge, a certas circunstâncias, esse, não seremos nós? Como é estranho tudo isto! Como é estranho e doloroso, meu Deus!”

           E  deixou  depressa  aquele  lugar que, como a música, o transportava a um passado cuja lembrança o fazia sofrer…

           Ao  chegar  ao  pátio  o  sino tocou; era para a segunda conferência de Padre Hernandez. Já mais calmo, Cesário recolheu-se à capela.

 

 

XVI

 

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