Xavier Placer
Às onze horas estavam no portão do 515.
Do interior da casa ouvia-se uma voz cantarolando tranquilamente uma música de igreja.
– Eis-nos de volta! Terezinha! gritou Amintas, voltando a cabeça para o andar de cima.
– Você, Amintas? respondeu uma voz alegre de mulher.
– Já vamos, meu filho! acrescentou outra voz mais fraca.
Amintas dispunha-se a subir, quando a senhora de preto desceu com uma mocinha muito corada, loquaz e irrequieta.
– Como vai, Amintas? Madrinha já me havia dito que você veio de manhã! dizia ela, enquanto se abraçavam trocando um beijo rápido nas faces.
– Esse é um amigo meu, Cesário…
A mocinha estendeu-lhe a mão.
– Muito prazer! e voltando-se para o primo:
– É aquele seminarista do Rio, de quem você costuma falar, não é ?
Amintas confirmou.
– Em que bairro o senhor mora? Mas sente-se, esteja à vontade! falou ela, com desembaraço.
Cesário encolheu-se timidamente numa poltrona, murmurando o nome do bairro.
Pela sua imaginação passava a imagem remota da mocinha de azul, começava a arrepender-se de ter aceito o convite de Amintas e, sem saber claramente a razão, sentia vontade de sair correndo dali… Tinha a impressão de que o olhavam como uma avis rara.
– Ah, em Botafogo? Então somos vizinhos: eu sou da Urca! Como são adoráveis esses bairros à beira mar, não é? Eu adoro o Rio!
– Trouxe uma coisa para você, Terezinha! interrompeu-a à altura, Amintas.
– Que é? voltou-se ela, num movimento gracioso.
– Veja se adivinha!
– Adivinhar é proibido! Mostre logo, ande!
Amintas foi dizer ao ouvido da mãe, que estava sentada na poltrona em frente, o que continha o embrulho.
– É uma coisa que você queria, Terezinha! disse a senhora de preto com um sorriso onde não era difícil notar a satisfação com que contemplava a cena.
– Uma coisa que eu queria? Um terço de madrepérola! disse pondo-se de pé.
– Não!
– Uma piazinha de água benta?
– Também não! Está vendo Cesário, é uma coisa que ela queria e agora não se lembra…
Cesário mexeu-se na poltrona com um sorriso.
– O que é? disse ela, afetando impaciência e consultando Cesário com o olhar.
– Não Cesário, não diga!
Cesário ia dizer que também não sabia o que era, mas num movimento inesperado, a mocinha abraçou-se ao seminarista tomando-lhe o objeto, que ele relutava em entregar. Sentou-se de novo.
– Ah que amorzinho, não é madrinha? Uma imagem de Santa Terezinha! e eu não adivinhar, veja só. Tanto que desejava uma imagem dela!
Levantou-se e foi sentar-se nos braços da poltrona da senhora de preto. Esta examinava agora a imagenzinha enquanto a moça falava, voltada para os dois seminaristas:
– Ainda ontem estive relendo a biografia de Santa Terezinha. Uma vida tão linda, mas tão triste, não acham?
– Então você gostou do presente? perguntou Amintas, aproximando-se.
Nesse momento o criado apareceu à porta da sala, anunciando o almoço.
Entraram todos para a jantar.
Um senhor de cabelos grisalhos, vestindo-se com apuro e de maneiras distintas, apresentou-se sorridente na sala.
Amintas deixou um instante a prima, com quem conversava em voz baixa, e, abraçando o pai, apresentou-lhe Cesário.
– Então os senhores estão hoje de passeio? disse, dirigindo-se cortesmente a Cesário, que Amintas deixara, para dar atenção à prima.
– É, Monsenhor reitor deu-nos o dia todo para compras, respondeu Cesário, esforçando-se por dominar o constrangimento que o perturbava.
Estavam se sentando à mesa, quando um garoto de cara petulante entrou, num alvoroço, atirando o casquete de colegial e os livros sobre o aparador.
– Quero ir à “matinée” hoje, mamãe! Oh. Amintas está aí? Bom dia, seu reverendo, como vai o papa?
– Psiu! Que é isso, Raulzinho ! Você não respeita ao menos o amigo de seu irmão?
O garoto aproximou-se de Cesário, cumprimentando-o com um aperto de mão.
– Sente-se aqui, ande! apressou-se em dizer a senhora de preto. Sente-se aqui ao meu lado!
– Quer dizer que “seu” Amintas hoje tomou o meu lugar, não é isso? disse o garoto, vendo o irmão ao lado da prima.
– Pronto, chegou Dom Magriço, acabou a tranquilidade nesta casa! Veja se ao menos um dia você se porta direito, Raulzinho! falou a mocinha.
O garoto fez-lhe uma careta que provocou o sorriso de todos, inclusive do criado, que entrava com os primeiros pratos.
– Seu malcriado!
O criado começou a servir.
– O sr. é daqui de São Paulo? perguntou a Cesário o pai do colega, curvando-se atenciosamente para ele.
– Não senhor, sou do Rio.
– Ah! bem me pareceu, bem me pareceu que não era paulista…
– Em que ano você está? interrompeu-o Raulzinho.
– Vou fazer o primeiro ano de Teologia. Sou primeiranista.
– Você vai fazer o segundo ano, não é, Amintas? perguntou o garoto.
– É… respondeu-lhe o irmão, que se empenhava em contar qualquer coisa à prima.
– Já estiveram na Catedral depois que chegaram das férias? perguntou-lhe a senhora de preto.
– Ainda não. Mas já falei com o Amintas, vamos hoje à tarde visitá-la.
E voltando-se para o colega.
– Vamos logo mais à Catedral, não é, Amintas?
– Hein? Ah, vamos sim! Mas tem tempo…
– As obras vão bastante adiantadas, continuou a senhora de preto. Internamente está tudo quase pronto. Está ficando muito bonita, muita linda!
– É toda de pedra! disse Raulzinho entusiasmando-se. Outro dia um padre esteve no Ginásio fazendo coleta para as obras. Mister Stephen ficou danado…
– Raulzinho, ninguém está perguntando nada ao senhor. Quer fazer o favor de calar-se, disse-lhe a mãe.
– Então até a ordenação de Amintas a nova Catedral já está pronta, e será lá, hein, Amintas? falou o pai, voltando-se para ele.
Terezinha prorrompeu a rir do que Amintas lhe acabava de contar.
– Que é que o senhor disse, papai?
– Olha esse “flirt” ai, Terezinha! Pensa que eu não estou vendo! Padre não pode casar, hein!
– Você é bobo, Raulzinho! Tenha um pouco mais de educação! disse a mocinha, contendo subitamente o riso. Cesário percebeu que Amintas se fizera vermelho e que o havia examinado num olhar de relance.
E fechando a cara para o irmão:
– Você sempre o mesmo, não é, seu Raulzinho! Do que está precisando bem eu sei…
– O que é? Você é meu pai?
– Cale a boca, Raulzinho, disse o pai, severo. Fez-se um silêncio pesado e incômodo; o criado pôs-se a servir uma maionese.
– Não quero, não quero! Você não sabe que eu não gosto disso, Marinko? murmurou o colegial.
Ninguém dizia palavra; naquele silêncio, o barulho dos talheres e os passos leves do criado entrando e saindo, se destacavam enormemente.
Cesário sentiu-se ainda mais constrangido. Procurava desesperadamente na imaginação qualquer coisa que dizer no momento, mas continuava, como os outros, calado. Aquele ambiente cerimonioso e complicado, tão diferente da sóbria simplicidade de sua casa, deixava-o como um peixe fora d'água.
Foi um alívio para ele quando a mãe do colega falou:
– Então Amintas, já sabe quando vai receber a tonsura?
– Ainda não. Mas é possível que seja em maio.
– Mas as “ordens” não são somente no fim do ano?
– São. Mas podem ser dadas em qualquer época. Em maio, por exemplo, vão receber o presbiterato dois seminaristas que, por questão de idade, não puderam receber em dezembro. O Cid e o Mozart, não é, Cesário?
Cesário confirmou. A mãe do colega voltou-se para ele:
– Interessante, então há idade mínima para as “ordens”?
Amintas pôs-se a explicar, com detalhes, a questão. A atmosfera ia-se dissipando; apenas Raulzinho se deixava ficar em silêncio.
– E para a tonsura? indagou o pai, que seguira com interesse a explicação.
– Para a tonsura não há idade. Basta que o seminarista tenha começado o estudo da Teologia. Cesário, por exemplo, poderá recebê-la daqui a uns dias; basta ter assistido a uma aula de Dogma ou Moral. A tonsura não é “ordem”, não é sacramento, compreende? É apenas um sinal exterior, como a batina…
– Você já fez a conta, Amintas? Você não vai ter idade para se ordenar… disse a mocinha.
– Não, Terezinha.
– Como? perguntou o pai.
– Eu termino o curso, o quarto ano de Teologia, em dezembro… isso daqui a três anos, e faço vinte e dois anos em janeiro do ano seguinte… Sabia disso, Cesário?
– Não. Mas quanto a isso não há dificuldade…
– Ah! não. Basta requerer licença à Santa Sé, é claro.
– Hum! é assim? perguntou o pai.
Amintas esclareceu:
– O próprio prelado, aliás, em caso de necessidade extrema, pode até supor essa licença e depois então comunica a Santa Sé. O ano passado o sr. arcebispo fez isso com um seminarista, já diácono, que não tinha idade e, caindo gravemente doente, quis morrer sacerdote. Lembra-se, Cesário, do Fernando Camargo?
O criado servia o café. No relógio oval, à parede, soou uma pancada solitária. Uma hora da tarde. A conversação corria natural. Mas o telefone tocou, e Raulzinho, que se levantou para atendê-lo, disse que chamavam o pai.
Ergueram-se da mesa, e dali a pouco, o pai do colega despedia-se à pressa de Cesário. Raulzinho desaparecera.
– Terezinha, você vai hoje ao Conservatório, minha filha? falou a senhora de preto, enquanto se dirigiam para a sala.
– Madrinha, e se eu não fosse hoje?
– Mas minha filha, você já tem faltado muito estas duas últimas semanas. Assim não. Vá botar o vestido grená, ande!
A moça subiu ao quarto com um gesto de enfado.
– A que horas começa a aula, mamãe? indagou Amintas, que saíra para a varanda com o colega e a senhora de preto.
– Às duas, meu filho! mas enquanto vai e não vai, toma condução… Aliás, não é querendo mandar vocês embora (voltou-se para Cesário) por que não vão agora à Catedral? Podiam até sair com Terezinha, já que fica à caminho.
– É isso mesmo! Vamos! acrescentou Amintas com um ar decidido.
A mocinha não demorou em aparecer e logo saíram os três, sob o olhar maternal da senhora de preto, que ficara à janela.
Na rua, ouviram de repente a voz de Raulzinho atrás deles:
– Psiu! Psiu! Esperem aí!
– Aonde é que você vai, Raulzinho? perguntou-lhe a moça, olhando-o com antipatia.
– Não sabe que eu estou acompanhando “O Cavaleiro Voador” no Alhambra?...
Seguiram os quatro em silêncio. Na Praça da Sé, despediram-se.
E ao Terezinha desaparecer no interior de um ônibus, Amintas dirigiu-se ao colega:
– Vamos voltar para o Seminário?
– Mas tão cedo? A gente não ia à Catedral?
– Fazer o que na Catedral?
E foi Amintas, por fim, quem venceu. Às duas e meia estavam de volta ao Seminário e eram os primeiros a chegar.
“Afinal de contas, para que saí?” pensava Cesário, dirigindo agora a seu cubículo. “Que ganhei com isto? Nada. Não fui senão aborrecer-me de maneira diferente… Não compreendo como há colegas que se interessam – e são a maioria – tão vivamente por estes passeios… Ou será que em tudo isto existe algum segredo que a mim não é dado perceber? É o caso de pensar. Ou não haverá nada, e apenas eles sabem o que eu não sei, e com que teimo em não me conformar: perder o tempo, vivendo simplesmente, sem exigir muito das coisas? É, é isso” concluiu.
Parando no meio do cubículo, sem saber o que fazer, repetiu ainda: “Sim, deve ser isso” e atirou o chapéu sobre a mesa, num gesto desanimado. A seguir estirou-se na cama e pôs-se a contar as tábuas do teto...
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