Xavier Placer
Na manhã seguinte, a comunidade acabava de responder à ligeira Ave-Maria de antes do café, quando o deão, em vez de dar logo “Deo gratias”, como vinha fazendo todos os dias, deixou que todos se sentassem.
Olhares impacientes voltaram-se para ele.
“Padre” Angelo lá estava, de pé, na cabeceira da mesa dos diáconos.
– Ué! Não vai haver “Deo gratias”? murmurou alguém na mesa de Cesário.
– “Padre” Angelo está com uma cara! cochichou outro.
– Mas que está olhando ele com tanta insistência para aquele lado? observou baixo o que falara primeiro.
– Ah! são dois segundanistas discutindo… Olhe o Brandão e o Alfredo… “Padre” Angelo está à espera de que se calem… Hi, hi, hi… ainda não perceberam nada!
– Mas onde, Alexandre? perguntou Viana, esticando o pescoço.
– Na sexta mesa...Eles ainda não perceberam, hi, hi, hi… À direita! Até que enfim!
“Padre” Angelo puxou o pigarro (era um cacoete dele, quando devia dirigir-se à comunidade) e começou pedindo atenção:
– Acho que ninguém ignora que o Monsenhor reitor prometeu uma saída à cidade. Pois bem. Ficou marcada para hoje (ouviu-se um murmúrio de satisfação em todas as mesas do refeitório). Atenção! falou novamente “Padre” Angelo. Monsenhor reitor manda avisar que a saída é livre. Quem quiser pode almoçar no Seminário, contanto que esteja aqui na hora…
A esta altura, Monsenhor reitor, que todos os dias se deixava ficar na capela, dando ação de graças após a missa que celebrava para a comunidade, surgiu à porta do refeitório.
Todos se levantaram.
Tomando seu lugar na mesa dos superiores, ele se apressou em fazer um gesto com a mão, para que os seminaristas se sentassem.
O deão dirigiu-se a ele. inclinou-se para Monsenhor reitor, que estava passando manteiga no pão, e pôs-se a explicar-lhe com gestos qualquer coisa. Depois tornou a seu lugar, sob o olhar dos colegas, que esperavam pelo resultado da situação.
Enquanto isso, os serventes da semana – quatro seminaristas escalados cada sábado pelo deão – chegavam da copa com bules enormes e distribuíam o café pelas mesas.
Monsenhor reitor tocou o tímpano; as cabeças voltaram-se. E com aquela sua voz descansada de nortista:
– Ontem à tarde uma turma de seminaristas veio pedir-me para ir à cidade, pretextando a necessidade de pequenas compras. É natural isso. Sobretudo para os de fora. O que não seria justo é que se permitisse àqueles poucos somente. Por isso resolvi resolvi conceder uma saída geral. E para evitar pedidos futuros, terão desta vez o dia inteiro. Agora, pretendo restringir o mais possível, durante o ano letivo, essas saídas. Só mesmo por motivos graves, como ir ao médico, etc. O lugar do seminarista é no Seminário… Portanto, terão hoje o dia todo para ir à cidade. Saiam à hora que bem entenderem, façam lá as suas compras, visitem os parentes – contanto que estejam aqui às cinco horas em ponto. às Cinco e um minuto (sorriu) só me entrarão no Seminário com uma carta do sr. arcebispo…
Correu um riso discreto pela comunidade. Todos conheciam os métodos de Monsenhor Lourenço; ainda que tivesse suas atitudes severas, quando estas se faziam precisas, no fundo era um bom. Sabia sempre ficar no justo meio termo. Talvez por isso é que tudo corria às mil maravilhas, e desandava quando ele se afastava alguns dias do Seminário.
– Bom, espero que ninguém tenha que dormir na escadaria… E, quanto à conduta lá fora dos meus caros seminaristas, não quero insistir. Aqui ninguém mais é criança! Estou certo de que cada um está perfeitamente compenetrado daquilo que é, e procurará conduzir-se exteriormente tal como o deve ser interiormente. Benedicamus Domino!
– A resposta encheu o refeitório:
– Deo Gratias!
Começaram as conversas em voz alta.
Os mais sôfregos pretendiam sair logo após o café; alguns achavam mais conveniente depois do almoço. “porque afinal há tempo de sobra – a tarde inteirinha!”; combinavam companhias, encontros a tal hora, um ou outro que não sairia por isto ou aquilo, encomendava miudezas; enfim, naquela manhã a algazarra no refeitório ia além do habitual.
Para Cesário, a notícia da saída também fora motivo de alegria. Mal dera “Deo Gratias”, Amintas pusera-se a falar-lhe da mesa vizinha.
– Viu? Não disse que era o dia todo? Vamos agora, ouviu?
– Agora? Não seria melhor depois do almoço?
– Que depois do almoço, que nada! Saindo daqui, já sabe! apanhar o capote e o chapéu no cubículo e a caminho! disse o outro, fazendo um gesto característico, que sublinhava aquele “a caminho”.
Os seminaristas ergueram-se, o deão puxou nova Ave Maria e a fila seguiu com atropelo pelo alpendre.
Naquela manhã, o movimento de seminaristas no pequeno pátio da entrada, lembrava o dia da chegada.
Grupos saíam a cada momento.
Seriam umas oito horas quando Cesário e Amintas deixaram o Seminário.
Um ônibus que passava levou-os para o centro da cidade.
Pela rua já se encontravam batinas, misturadas ao movimento matinal.
Estava frio e a garoa de sempre envolvia as coisas, tirando-lhes a realidade crua e desagradável. Vendedores ambulantes empurravam carriolas, apregoando alto legumes e frutas; carrocinhas de leite tlin – tlin, tlin – tlin… seguiam ao lado do meio fio, movimentadas por homens de grossos sapatões e blusa mescla; pelas calçadas dos bairros, crianças com livros e pastas na mão, caminhando aos grupos, faziam algazarra…
Sentados um ao lado do outro, os dois seminaristas observavam tudo em silêncio. De súbito, Amintas falou:
– Estou doido para chegar em casa!
– Não será cedo? admirou-se Cesário.
– Cedo, nada! Que é que você está pensando? Lá em casa todo mundo é madrugador. A esta hora – devem ser oito e pouco, não? – minha mãe deve estar de volta da missa das seis e meia, com Terezinha… O mano mais velho, Luiz, formou-se o ano passado, casou e não mora mais com a gente… O Raulzinho, esse você conhece, é aquele garoto que vem me visitar…
– Sim, conheço.
– Pois é, levanta-se às cinco horas todos os dias para estudar as lições e ali pelas sete, sai com papai para o Ginásio… De maneira que nós vamos encontrar em casa mamãe e Terezinha…
– Sua irmã, não?
– Quase isso. É uma prima, afilhada de minha mãe, com quem eu fui criado… Somos mesmo que dois irmãos. Muito boazinha. É até carioca, sabe? Chama-se Maria Tereza, mas a gente só a trata de Terezinha… Oh estou deixando passar a casa!
Cesário deu o sinal.
Caminhavam agora pela calçada da rua da Liberdade.
– Nós mudamos de casa nas férias, pegou a falar Amintas. É no outro quarteirão, 515… e tirando o chapéu para uma senhora à janela de um segundo andar, todo tristonho:
– Minha tia, essa senhora! Estamos quase chegando. Aqui! disse, metendo-se de repente pelo portão de uma casa de jardim, enquanto entrava batendo palmas e anunciando-se alto.
Uma senhora de meia idade, vestida de preto, apareceu na varanda;
– Oh, meu filho! Você por aqui hoje? Que alegria! e abraçando o rapaz com efusão, beijou-o várias vezes.
– Minha mãe! disse Amintas, voltando-se para Cesário, assim que se desembaraçou dela.
E foi-se metendo pela casa a dentro;
– Terezinha não está? Terezinha saiu? Terezinha?
– Ela ficou na cidade depois da missa! respondeu-lhe a mãe, que acabara de abraçar Cesário, beijando-o, chamando de “meu filho”.
Iam para a sala, mas Amintas voltou indagando com um interesse, que surpreendeu Cesário.
– E vai demorar, minha mãe?
– Talvez só venha na hora do almoço, meu filho. Foi à casa de uma amiguinha. É até bem possível que almoce por lá, ficou de telefonar…
– Então nós vamos dar uma volta pelo centro e à hora do almoço, apareceremos. Você não acha melhor assim, Cesário?
– Ótimo.
– Não comer alguma coisa? Vocês já tomaram café? perguntou a senhora de preto, voltando-se delicadamente para Cesário.
– Amintas tomou-lhe a dianteira;
– Já minha mãe. Vamos, não é, Cesário? Eu quero ir à casa Santa Clara (era a loja de artigos religiosos) para comprar um terço. Vamos indo! Ah, como vai Marinko, mamãe?
– Está bom. Foi ao mercado. Então venham ao meio dia, ouviram?
– Viremos sim, mamãe, não se preocupe! Vamos, não é, Cesário?
A senhora de preto beijou mais uma vez o filho; Cesário cumprimentou-a, e saíram ambos, a pé, pela rua da Liberdade.
– Que há com você, Amintas? não pode deixar de perguntar Cesário, estranhando no colega o mutismo em que se fechara de repente.
O outro teve um sorriso contrafeito e um gesto de impaciência:
– Nada…
Cesário julgou ter-se equivocado em sua impressão e, para ser agradável ao colega, começou a puxar conversa.
– Você tem jogado muito voleibol estes dias, Amintas?
– Um pouco.
– Ah! é verdade, no dia da chegada você não falou que queria conversar comigo?
– Você não aparece nos recreios. Não sei que diabo se possa ficar fazendo no cubículo!
Cesário resolveu tocar, ele mesmo, no assunto:
– Quer saber de uma coisa, Amintas, ainda não percebi porque você ficou no fim do ano passado sem a tonsura.
– Muito simples, o sr. arcebispo quer me “experimentar”, não compreende?
– Mas porque, afinal você…
– Para você ver! O sujeito se porta direito, dá conta de suas obrigações (baixou o tom de voz) modéstia à parte, que diabo! se a gente não reconhecer os próprios méritos não são os outros que vêm a nós reconhecê-los… em suma, a gente se esforça para ser um bom seminarista e, quando acaba, fica-se no “gancho”!
Havia uma irritação no tom com que aquilo fora dito, que não se referia propriamente àquele motivo. Cesário sentiu isto, sem conseguir atinar com a razão e, continuando em sua intenção de ser agradável:
– Talvez em maio você receba, não?
Amintas fez um movimento de ombros e após alguns passos;
– No entanto um sujeito como o Sá, um verdadeiro asno, que no exame final de Dogma nem soube quantas naturezas há em Cristo e acabou dizendo que o Espírito Santo procede somente do Pai, a heresia de Photius, quem não sabe disso?, o “seu” Sá é o que se vê…
– Não tinha ainda ouvido falar nessa história do exame do Sá… Não será história mesmo? murmurou Cesário.
– Que história! Você tem a mania de justificar tudo, Cesário! Eu vi, estava na cadeira de trás, enquanto ele era interrogado por cônego Dionísio. Isto não é nada! E no sermão de maio?
Cesário ficou olhando-o à espera.
– Não se lembra, que ele disse, com aquela eloquência besta, que Nossa Senhora é mais poderosa do que o Divino Filho porque lhe deu o ser?
– Ora, Amintas, isso são entusiasmos do momento… Mas Amintas, com seu hábito de passar de repente de um assunto para outro com um “a propósito” que às vezes nada tinha de coerente, não dera resposta àquilo e falava:
– A propósito, sabe que Monsenhor reitor trás Carlos Alberto de olho?
– É?
– Mas meu Deus, você parece que vive em Marte! com essa maneira de ser, você, não sei não, Cesário… Olho vivo e confiar desconfiando.
– Mas como é que você soube disso, Amintas?
– Bem, isso já é outra coisa. Conta-se o milagre mas não se diz o santo… (e Amintas disfarçou um sorrisinho superior que não passou despercebido a Cesário e chegava mesmo a ofendê-lo porque sabia que significava isto) “Você nem merece ser tomado a sério, uma vez que não pega nada destas coisas…”
– Vamos mais devagar, Amintas! disse Cesário, detendo pelo braço o colega, que andava a largas pernadas.
O outro diminuiu o passo.
Haviam chegado ao Largo da Sé.
– Seria interessante a gente dar uma chegada à Catedral para ver como vão as obras, hein, Amintas?
– Não, vamos agora à casa Santa Clara.
Calados, atravessaram a praça. Ao chegarem à esquina da rua Direita, esbarraram com o Sá, que saía de uma loja.
– Olá! vão a algum lugar?
– Vamos à casa Santa Clara… Eu preciso fazer umas compras. Quer vir com a gente?
– Às dez horas preciso estar na Cúria, não sei se não vai ficar tarde…
– Que nada! É muito cedo. Depois, é um instante! Venha fazer companhia à gente.
Sá acabou rendendo-se à insistência de Amintas.
Com a sua loquacidade cheia de gestos, Sá pôs-se a contar o atropelamento de um velho por um caminhão, que acabara de presenciar minutos antes, na praça.
– Vejam vocês! ia eu chegando na esquina, quando os meus olhos dão de súbito com aquele quadro: o homem sendo apanhado pelas rodas do pesado caminhão. Que espetáculo dramático!
– Você parece que ainda está nervoso… observou Amintas.
– Ah! fiquei lívido. Não era para menos… Uma visão dantesca!
Como houvessem chegado à loja de artigos religiosos, Amintas dirigiu-se ao rapaz do balcão, enquanto Sá ficou a conversar com Cesário a um canto.
– Está aí uma cena admirável, que se pode meter num sermão, hein, Cesário?
– Você gosta um bocado de sermões, não, Sá?
– Ora, mas então… A eloquência sagrada é um instrumento eficientíssimo, Cesário! Já observei que você não dá à oratória o valor que ela tem. É uma injustiça! Se você lesse a obra de um Bossuet, de um Vieira…
– Sabe que eu estou com um receio enorme que me escalem, em maio próximo, para um sermão sobre Nossa Senhora?
– Ora, não há motivo, Cesário! Um grande orador grego, se não me engano Demóstenes…
– Então, vamos? disse Amintas, guardando um pequeno embrulho no bolso e voltando-se com amabilidade para o Sá: Quer vir almoçar em casa?
O outro declinou do convite, lembrando que tinha que ir à Cúria e talvez se demorasse por lá.
Na rua, depois de falar ainda com entusiasmo em Bossuet, Vieira e “outras águias da eloquência sagrada”, Sá despediu-se.
– A gente critica muito o Sá no Seminário, mas afinal de contas ele tem talento para orador, não é, Cesário? disse Amintas com convicção.
Cesário teve um leve sorriso silencioso, que não chegava a ser irônico, e lembrou-se de propor ao colega uma ida à Biblioteca Pública.
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