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-Dá licença, Padre Tobias!

             –  Você, Cesário?

      O  Padre interrompeu o que estava fazendo e, erguendo-se, abraçaram-se.

        Beijando-lhe  a  mão,  o  seminarista procurou imediatamente justificar-se:

             – É a terceira vez que venho cá, sabe, Padre Tobias?

          –  Ah,  eu tenho andado atrasadíssimo lá por fora, Cesário! Mas então, como foi de férias?

             – Bem.

           – Foi  bem  mesmo  ou  isso é maneira de dizer? Cesário sorriu, sem saber no momento que responder.

          – De  fato , Padre Tobias! Talvez pudessem ter sido melhores… Andei lendo muito –  acrescentou num tom rápido, como quem sustém de repente qualquer coisa.

        O  padre  sentara-se  de novo e observava-o com um sorriso atencioso.

          –  É!  As  férias  são para descansar… Mas senta aí, Cesário! Ponha no chão aqueles livros e puxe a cadeira aqui para junto da minha mesa.

              O seminarista obedeceu.

         – E  o  senhor,  Padre  Tobias, como passou as suas? Ah! é verdade: recebi sua carta… (Passou-lhe pela ideia agradecer o que ele havia dito a seu respeito, mas teve pudor de tocar naquilo). Não respondi porque chegou justamente à hora do embarque…

           – Está bem, Cesário. Você pergunta por minhas férias. Foram o que eu lhe disse na carta –  uma ida ao Sul.

              – Mas durante os dois meses?

            – Não. Uns vinte dias de fevereiro somente. Dezembro e janeiro andei o sr. arcebispo numa visita pastoral pelo interior de São Paulo.

             – Então adeus seus planos de ir passar as férias na Fazenda do Seminário Menor, não é?

             – Não foi possível… Por isso é que eu não gosto de fazer planos com antecedência. Comigo fracassam sempre, os mais sem importância… Você vá aproveitando suas férias enquanto é seminarista. ouviu? Vá aproveitando, porque assim que se ordenar…

        – Quando o senhor era estudante, que fazia nas férias, Padre Tobias?

      – Que fazia, Cesário? Nada; flanava muito, me lembro bem, respondeu o padre sorrindo.

            – Mas isso não o aborrecia?

      – Naquele tempo nós passávamos os meses de férias numa Fazenda, de maneira que havia uma porção de coisas para encher o tempo… E como eu sempre gostei de esportes, organizava times de voleibol, basquete… Você parece que não se interessa muito por essas coisas, não é?

            – Não me atraem, não, Padre Tobias.

        –  Pois seria bastante útil a você, sabe? A vida interna já é tão parada, tão igual, que se vocês não encherem os recreios com essas distrações, só podem mesmo deixar-se ficar conversando… Você nunca experimentou meter-se nessas partidas?

            – Já. Mas sou uma negação.

            – Uma negação? Não faz mal! O que importa é o exercício.

            – Quem sabe, talvez experimente…

          – Gostaria  de  vê-lo  voltado  para essas coisas também, ouviu? Acho você muito interiorizado, Cesário.

         – Mas  eu  fui  sempre assim, Padre  Tobias. Será que se pode modificar o temperamento?

            – Para que? Não se pode, não adianta, nem é preciso…

            – Mas então, Padre Tobias?

         – Você pensa que eu estava defendendo a vida ao ar livre como uma solução? Não se equaciona a vida, Cesário. Nós não somos bonecos. Cada um vive a fatalidade do próprio temperamento… Até certo ponto, é claro. Eu queria dizer o seguinte: É preciso um pouco mais de caridade para com nós mesmos, que diacho, o corpo também tem as suas exigências. Aliás (e Padre Tobias sorriu) se não tivermos boa vontade para conosco, quem há-de ter, não concorda comigo? Quanto ao mais, “cada um como o fez o fez”...

            – Como, Padre Tobias?

            – Não conhece a história do “cada um como o fez o fez”?

            – Não, Conte.

            – A história em si não tem importância…

            – Bom, mas conte, insistiu Cesário.

         O padre levantara-se, remexia numa mala de viagem que estava sobre uma estante e ia falando:

        – É uma história sem graça. Diz que um dia o diabo se meteu disfarçado em cavalheiro num baile e pegou a tirar damas, a divertir-se. Mas aconteceu que uma criança estava sentada no chão e reparou nos pés chatos dele, pés de pato. Aí falou: “mamãe, olha o pé daquele moço!” A mulher repreendeu o garoto: “Cala a boca, meu filho, cada um como Deus o fez”... Parece que acabaram, não encontro…

            – E aí, Padre Tobias?

        – Então diz que o diabo, para não pronunciar o nome de Deus, resmungou (e Padre Tobias arremedou o diabo com uma voz grossa e sombria) “cada um como o fez o fez”... Ah, estão aqui!

            – Que é, Padre Tobias?

            – As minhas cigarrilhas…

            Tirou uma e pousou o maço sobre a mesa, pondo-se a acendê-la.

          – Tire aí uma para você, Cesário. Ou não fuma? Se fuma é bem tolo fazer cerimônia. Não são más, não… Cesário agradeceu e mudou de conversa.

        – Então o senhor pensava que eu ia para o Seminário de Belo Horizonte, hein, Padre Tobias?

            – É verdade, Cesário. Como os boatos se espalham…

          Cesário levantou-se e examinava pela milésima vez os títulos dos livros de Padre Tobias, nas duas estantes;

           – Foi o Andrade quem arranjou isso. O Gabriel escreveu para ele fazendo uma brincadeira e o Andrade já sabe…

         – Mario e Gabriel ficaram para a recepção das “ordens” não foi? indagou o padre.

        – É, ficaram.  Aliás  achei  Gabriel meio esquisito, sabe, Padre Tobias?

            – Esquisito, como?

      – Não sei. Falou em possíveis novidades, não me pareceu o mesmo… Meio enigmático.

            – Não seria impressão sua?

           – Penso  que  não, Padre  Tobias. Que acha o senhor da vocação do Gabriel?

        – É difícil  dizer,  Cesário.  A  gente se engana tanto! Depois, a vocação nada tem a ver com certas coisas… Não tenho um juízo exato formado sobre o Gabriel. Gosto muito dele! Não resta a menor dúvida de que é uma criatura sensível e inteligente. Talvez mais inteligente que sensível… E o Mário, você já reparou, é exatamente o contrário dele.

        – Não  havia  reparado, mas estou  percebendo  agora.  É isso mesmo Padre Tobias! Nunca vi uma pessoa tão organicamente boa quanto o Mario. Interessante, Padre Tobias: Já observei uma coisa –  eu me sinto muito mais amigo de Gabriel que do Mario, por que será?

     – Porque será? Afinidades, simpáticas, mil imponderáveis do sentimento. Deixe para lá. Cesário! Que mania tem de você de levar a análise a tudo…

           – Então o senhor é contra o conhecimento, Padre Tobias?

         – Absolutamente, Cesário. Eu acho é que você coloca demasiado no círculo da razão essas questões, enquanto a verdade, ou melhor, a vida, está para além dela.

          – Está bem, Padre Tobias. E por falar em pessoas, o senhor já leu a vida de São Felipe de Neri?

         – Já, mas há muito tempo. Acho que foi até no meu último ano de Seminário Maior…

           – Lembra-se de alguma coisa?

          – Vagamente. Era um santo de gênio folgazão; um dia parece que deu como penitência a uma mulher, que tinha o hábito de falar muito da vida alheia, sair pelas ruas da cidade, espalhando penas e depois voltar recolhendo-as todas, se fosse capaz…

          – Justamente, é esse. Eu li no começo destas férias uma pequena biografia sobre ele e achei-o um santo muito curioso, muito humano. Ele aconselhava e praticava uma alegria em Cristo que às vezes parecia meio extravagante, mas que afinal dava certo. E quer saber de uma coisa, Padre Tobias?

          – Diga.

          – O senhor tem muito de São Felipe de Neri…

         – Coitado do santo com um tal sósia! disse ele, pondo-se a rir para disfarçar um certo embaraço.

          – É sério, Padre Tobias. O Senhor…

         – Vá embora, Cesário! Eu tenho que terminar ainda hoje a redação de um capítulo do novo Estatuto do Seminário, para entregá-lo a Monsenhor reitor. Sabia que se está tratando de um novo Estatuto?

          – Já ouvi qualquer coisa, sim.

        – Pois bem. Mas apareça ouviu? Acho que você me conhece bem para compreender este pedido, não?

          – Ora, Padre Tobias!

       – Apareça  mesmo! – repetiu ele, enquanto Cesário lhe beijava a mão.

          – Fechou a porta e saiu pelo corredor deserto.

         Que estranha sensação era aquela? As pernas o levavam rápido e ia cantarolando em voz baixa, muito baixinho, um motivo que se repetia sempre. Lá-ri-lá-lá… Ri-lá-lá-ri…

         Onde ouvira aquilo? Não se lembrava, nem queria saber. Sentia-se leve, leve e feliz demais para se deter e pensar. Lá-ri-lá-lá… Ri-lá-lá-ri.

 

 

XIII

 

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