Xavier Placer
"Que período horrível, meu Deus! É incrível como eu o tenha suportado e até alimentado com o meu pretensioso cerebralismo!” considerava Cesário, recordando dias depois, a última semana em casa, a viagem, a manhã da chegada.
“Aliás nada daquilo importa!” continuava ele, dando de ombros. “As minhas revoltas não foram, afinal, senão intelectuais… Sim, intelectuais. Sinto-me bem; aquilo eram fantasias após um intenso período de leituras. O verdadeiro Cesário existe ainda, está vivo em mim, e é bem diferente! Ou ao menos esforço-me para que o seja… Depois tudo passou. Sim, graças a Deus, tudo passou, tudo!” repetia a si próprio, ao sentir agitarem-se no fundo de seu espírito, e procurando reduzi-los ao silêncio, os últimos reflexos de sua crise.
A verdade era que, desde a confissão à noite, no dia da chegada, vinha comungando todos os dias; assistia com piedade e gosto aos exercícios espirituais, e ia mesmo à capela fazer pequenas visitas ao Santíssimo, nos fins dos recreios. Em resumo, sentia-se possuído do antigo fervor e era com satisfação que o observava renascer em sua alma.
Esta alegria, contudo, não era completa: assombrava-a aquele ponto negro, em que ele próprio evitava tocar – a ausência dos amigos.
“Interessante – observava – esta curta separação serviu-me de experiência… Revelou-me um traço que eu desconhecia de meu caráter; porque não resta dúvida: eu não estou inteiramente feliz por me faltarem eles… Quer dizer, eu sou um indivíduo que, sentimentalmente, depende e precisa dos outros… É curioso, não me sabia assim! Será um mal isto? Bem, seja lá o que for! é o meu feitio…”
E, sem perceber a coerência que havia entre o estado de espírito em que punha a ausência dos amigos e esta lembrança, pensou em ir conversar com Padre Tobias.
Naquele ano ainda não se avistara uma única vez com o padre, e este, ainda que Cesário de nada soubesse, já havia indagado por ele aos colegas, ao vê-lo de volta.
Para Cesário, este padre era a grande admiração sem restrições no Seminário; e a tal ponto que chegava a ser motivo de comentários maliciosos de certos colegas.
Mas Cesário, que não ignorava isto, tomara desde muito, vencendo-se orgulhosamente, uma atitude de superioridade indiferente para com as “murmurações”.
Padre Tobias de Almeida era um homem de seus trinta e sete anos, alto, sadio como um desportista, e sempre jovial. Filho de um Estado do Sul, notava-se pelos seus olhos azuis e seu tipo aloirado, a ascendência estrangeira.
À primeira vista lembrava apenas um desses belos animais raciados, mas, conversando-o, esquecia-se logo esta impressão, tanto aquela natureza se espiritualizara. Quando ele aparecia nos recreios, o que amiudadas vezes acontecia, os seminaristas faziam logo uma roda animada em torno dele.
– Olhem Padre Tobias! Padre Tobias está aí, pessoal!
Se era nos recreios longos dos dias de sueto, convidavam-no para o voleibol. Ele aceitava sempre. Pedia a alguém para ir buscar-lhe o boné no quarto e era o primeiro a interessar-se pela partida.
Não havia aluno que não o estimasse, ainda que nem todos o compreendessem. E tinha sempre uma palavra de atenção para cada um, uma série de pequeninos fatos curiosos para todos.
Nessas ocasiões, Cesário não tirava os olhos dele; observava-o, uma ternura naquela admiração que só os laços do espírito ligavam.
Não era sem razão que os colegas diziam que ele havia assimilado maneiras de Padre Tobias. E Cesário, ainda que sempre reagisse contra essas observações (e às vezes brutalmente), no íntimo sentia-se lisonjeado. Se assimilava gestos dele, raciocinava, era porque no fundo se parecia com ele. Porém, o que mais o seduzia em Padre Tobias, a par de tudo isto, era a sua “história”.
Tendo-se casado muito moço ainda com uma prima, esta morrera poucos anos depois, deixando-lhe um filho que os avós maternos passaram a criar. Mas a criança não viveu mais que quatro anos; uma vez livre, Padre Tobias, já então com trinta anos e dois livros de poemas publicados, convertera-se. No ano seguinte entrava para o Seminário.
Muito tempo Cesário desconfiara de algum sacrifício sentimental por detrás daquela história, mas tendo-lhe o próprio Padre Tobias contado certa vez, o seu passado, convencera-se do contrário e o amigo conquistara um lugar definitivo em seu coração.
Era o quarto dia após a chegada. Terminara o terço, que se rezava às sete horas; os seminaristas foram aos poucos recolhendo-se aos seus cubículos.
Dispunham agora de quase duas horas, antes de voltar à capela para a oração da noite.
Durante o ano letivo, este estudo era ocupado no preparo da lição de Teologia, para a manhã seguinte, enquanto não começava o retiro, porém, ao qual se seguiriam as aulas, ninguém tinha nada que fazer.
Cesário esteve anotando em seu diário (esta ideia de um diário, nascera-lhe nas férias e ia, com espanto para si próprio, levando-a adiante) os acontecimentos daqueles últimos quatro dias e assim que terminou, deixou o cubículo.
Um bom número de colegas andava àquela hora matando o tempo pelos corredores. Uns enchiam moringas nos filtros, outros passavam objetos para o vizinho ou conversavam em voz baixa pelos cantos…
Quando ouviam um ruído de passos, o corredor tornava-se de súbito deserto. Mas era um colega que havia surgido… E as conversas, o movimento, recomeçavam.
Aliás os encarregados da disciplina, compreendendo que ainda era cedo para exigir a observância do regulamento, à risca, faziam vista grossa sobre o alvoroço dos primeiros dias.
No próprio cubículo do deão, um grupo de seminaristas conversava animadamente.
Para descargo de consciência. “Padre” Angelo repetia de quando em quando:
– Bem, hein! Mas vamos saindo… Já está ajuntando gente demais aqui!
Ninguém dava atenção ao aviso. Este mexia-lhe nos livros, aquele pedia emprestado um objeto, outro insistia em perguntar-lhe qualquer coisa que ele deixava sem resposta, alguns conversavam na porta, atravancando a entrada, outros deixavam-se ficar à janela.
Com a vasta cabeleira para trás, a mão metida na faixa, Amintas estava ao fundo, encostado à janela, calado, ar de quem observa.
Quando viu Cesário, que parara olhando aquele ajuntamento, sorriu e fez-lhe um sinal.
– Já sabe?
– Já sabe o que?
– Saída à cidade amanhã.
– É? exclamou Cesário, observando os colegas em torno, como se procurassem neles a confirmação da novidade. Mas já é certo mesmo?
– Se é certo? Certíssimo. Vai ver que você é o único que ainda não sabe…
– Realmente, não sabia de nada. Ouvi uns comentários no refeitório, mas pensei que fosse simples boato.
– Uma turma foi pedir a Monsenhor reitor no recreio do jantar. Se não chover, será amanhã.
– Que bom, hein! Eu precisava mesmo fazer umas compras.
Amintas fez um gesto como quem diz: “Isso de compras”. E observou:
– Esta saída não podia vir em melhor ocasião. Imagine que eu ia pedir a Monsenhor para dar um pulo em casa.
– Mas o tempo está ruim, não? disse Cesário, disse Cesário, debruçando-se para fora.
– Nada, isso de chuva é o menos. Você quer sair comigo?
– Está bem.
– Quer 109
– Quer? Então fica combinado assim: Se a saída for o dia todo, deixamos o Seminário logo depois do café, se for à tarde, logo em seguida ao almoço. No primeiro caso, você irá almoçar lá em casa.
– Combinado.
– Mas esteja pronto na hora, ouviu Cesário? Bom, eu vou indo para o meu cubículo. Você vai ficar aqui?
– Não, aliás ia passando quando você me chamou.
– Ia à capela?
Cesário sentiu-se como que apanhado de surpresa; não queria dizer que se dirigia ao quarto de Padre Tobias, mas também queria evitar de mentir.
Enquanto deixavam o cubículo do “Padre” Angelo, Cesário murmurou qualquer coisa que o outro entendeu como uma confirmação de sua pergunta.
– Também vou com você.
– Onde?
– Você não disse que ia à capela?
– Não. Vou ao quarto de Padre Tobias! disse, diminuindo instintivamente o tom de pronunciar o nome do padre, ao mesmo tempo que procurava justificar-se: – Ainda não estive com ele depois que cheguei das férias, sabe? Anteontem fui lá, mas não o achei; ontem tornei a procurá-lo e nada… Vou ver agora!
– Hum! fez Amintas, deixando escoar um sorriso, pelo canto da boca, que Cesário bem sabia o que queria dizer – aquele sorriso que ele temera quando tentara, pouco antes, ocultar a sua ida ao quarto de Padre Tobias. E para que o colega não insistisse:
– Escute, Amintas, você no dia da chegada disse que queria conversar comigo…
– Pois é! Mas você não aparece nos recreios…
Haviam chegado ao fim do corredor, e a um rumor de passos:
– Acho que é Monsenhor reitor… murmurou Cesário.
Cumprimentaram com uma pequena vênia a Monsenhor reitor, que passou por eles com um sorriso paternal, e cada um tomou seu rumo.
Cesário ia pensando no convite do colega e sentia certo remorso diante da delicadeza do outro.
Pois não restava dúvida de que , tivessem Gabriel ou Mario voltado com ele, o Amintas continuaria a ser um daqueles muitos colegas de quem apenas notava a presença física…
Mas já se encontrava no pavilhão dos professores e estava diante da porta do quarto de Padre Tobias. Não chegou a bater. Quando o ia fazer, Carlos Alberto abriu a porta, saindo.
“Que quererá de Padre Tobias?” pensou Cesário à suposição de uma possível amizade entre ambos.
– Vai se confessar, também? – Perguntou o outro, em voz baixa, fechando a porta com cuidado.
– Não, mas escute: Padre Tobias está aí? indagou meio nervoso e sem saber o que fazer.
– Ora essa! Então eu saio do quarto dele e Padre Tobias não há de estar?
Compreendendo o absurdo da pergunta, Cesário não prestou mais atenção às palavras do colega e deu duas pancadas de leve à porta.
– Pode entrar!
O ruído dos passos de Carlos Alberto foi-se afastando no silêncio noturno do corredor.
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