Xavier Placer
Nos corredores internos havia pequenos quadros, compridos e estreitos, com letras negras:
SERVIR AO SENHOR É REINAR.
ou,
DEUS VIDET COR TUUM ET JUDICABIT TE.
Cesário entrava no cubículo, de volta dos banheiros, e seus olhos se detiveram um rápido instante neste último dístico. Abriu a porta, entrou, mas a frase ficou-lhe a bailar na cabeça: Deus vê teu coração e te julgará! Deus vê…
Como aquelas palavras, tão familiares a seus olhos (de tanto as ver já nem atentava em seu sentido…) lhe pareciam entretanto, agora, como se fosse pela primeira vez que as via! O fato de as haverem colocado ali, perto de seu cubículo, ou melhor, o fato de seu cubículo, neste ano, ser perto de um quadro daqueles, evidentemente não significava nada. Aquelas palavras tanto poderiam ter sido colocadas naquela, como em outra qualquer parede. No entanto, estavam ali… E esta coincidência parecia-lhe, naquele momento, esconder um alto sentido, dava-lhe a impressão de uma obscura advertência dirigida a ele, a ele particularmente.
A água fria tirara-o do amolecimento físico em que se encontrava ao chegar e o espírito movia-se num novo plano de ideias e sentimentos.
Sentia-se outro.
E este novo Cesário, que ressurgia, estava a censurar-se por se ter entregue aos pensamentos de ainda há pouco.
"Quanto exagero! monologava ele. "Quanta tolice! Então o espírito, a verdade, Deus, – Deus! não estarão acima das miseráveis contingências humanas, acima do nosso ridículo nervosismo? Terá a tal ponto arrefecido a minha fé, para nesses momentos eu não senti-lo, eu não me agarrar a Ele como a única tábua de salvação? É singular, isto! Mas não, no fundo eu creio. eu quero crer em Deus, e hei de amá-lo sempre, acima de tudo, ainda que contra todos e contra mim próprio, se preciso for! Isto é uma crise passageira e sem maiores consequências… É muito bom, sairei dela, se Deus quiser, mais forte e mais experiente. Sim, sairei…”
Acabou de aprontar-se, abriu a mala grande que o empregado lhe arrastara para o cubículo e, abrindo-a, deixou-se ficar muito tempo a arrumar os livros de estudo na estante, a pendurar a roupa nos cabides, a dispor, enfim, todas essas pequeninas necessidades da vida cotidiana, com um interesse e um prazer que eram raro nele, quando devia entregar-se a essa tarefa.
“Bom, acabando daqui vou à capela! Quinze dias sem confessar-me, parece incrível, eu que, em outros tempos, me aproximava duas vezes por semana desse Sacramento. Maldita literatura! É ela que eu quero conciliar com a minha vida de seminarista, que me desvia dos “deveres de estado” e portanto me afasta da minha vocação e de Deus! Felizmente tive a prudência de não trazer os romances, graças a Deus! Mas, como estava pensando: Vou à capela, faço um demorado exame de consciência e hoje à noite, confesso-me!”.
– Cesário! Cesário! gritou alguém debaixo da janela.
Debruçou-se para fora a ver quem o chamava. A pouca distância seminaristas conversavam.
– Que é, Deusdedit?
– Você tem papel de carta, Cesário? Queria escrever para casa…
– Aéreo?
– Não, desse comum…
Jogou pela janela a caixa de papel de cartas que apanhara na estante, e lembrou-se de indagar do colega pelo almoço.
– O almoço, Cesário?
– Sim! Ou não há almoço hoje, com essa lufa-lufa da chegada?
– Você talvez queira dizer o “café”, não?
– Que horas são?
– Uma e pouco… respondeu o outro, pondo-se a rir. Você está no mundo da lua, Cesário! Não demora é tocar para o “café”, isso sim!
E o seminarista afastou-se, agitando no ar a pequena caixa.
Só então Cesário reparou que havia perdido a noção das horas e, deixando sem demora o cubículo, dirigiu-se à capela.
As portas laterais da capela estavam fechadas, as cortinas corridas; na penumbra silenciosa do recinto ouvia-se apenas o crepitar da lâmpada do Santíssimo ardendo. Pela frescura das rosas, grandes e vermelhas, sentia-se que os altares haviam sido arrumados pela manhã. Pairava no ar um agradável cheiro característico do ambiente.
Cesário entrou, genuflectiu reverentemente diante do tabernáculo, e ajoelhando-se em seu lugar, a cabeça apoiada nas mãos, os olhos fechados, esteve largo tempo rezando orações que lhe iam saindo do coração, sem forma e sem lógica, como ele gostava de fazer, nos seus colóquios com Deus, fora das práticas regulamentares e obrigatórias.
Depois apanhou o seu “Livro do Seminaristas” e pôs-se a fazer a preparação remota para a confissão.
Ao terminar, começou ainda a leitura de um capítulo da Imitação, mas antes de chegar ao fim fechou o livro e levantou-se.
Quem o visse sair assim precipitadamente da capela, não poderia deixar de admirar-se.
Tinha um ar estranho e o andar apressado de alguém que, de súbito, se sentisse possuído de um novo sentimento.
De fato. Experimentava agora uma necessidade de contato com todos…
– Olá, Cesário! Ora viva o nosso jovem filósofo tomista! gracejou José, batendo-lhe amigavelmente nas costas, quando ele associou ao grupo uma conversa no pátio. Cesário sorriu para o colega, com uma profunda gratidão sem saber bem porquê, e, abraçando alguns colegas com quem não se havia ainda encontrado, deixou-se ficar entre eles.
Conversavam sobre as férias.
– Você já arrumou suas coisas, Cesário; perguntou-lhe João de Deus, que se assentara na amurada do alpendre.
– Já… Estive até agora no cubículo.
– Eu ainda tenho o meu numa desordem medonha, observou José.
– Porque não vai arrumá-lo logo de uma vez, seu preguiçoso? falou alguém.
– É mesmo! Vou meter mãos à obra, antes que me dê preguiça…
– Mas como é cacete o primeiro dia hein! A gente ainda não se ambientou, tem uma sensação de vazio, não é? observou um seminarista de olhar inteligente e gestos vivos.
– Será que ainda falta muita gente? falou Alexandre, que estivera calado até ali, – Estão me parecendo tão poucos os “teólogos” este ano…
– Nada! Bravos! exclamaram algumas vozes ao mesmo tempo.
Era um grupo de recém-chegados que aparecera.
– Sabem me dizer se o Amintas já chegou, minha gente? indagou um deles.
– Ainda não veio! esclareceu alguém.
– Veio, sim… Mas voltou à cidade de novo.
Houve abraços, cumprimentos, exclamações…
Os recém-chegados foram aos poucos, deixando o pátio, alguns acompanhavam-nos, e apareciam outros seminaristas que cumprimentavam com alvoroço e tomavam seus rumos.
Cesário continuava a ouvir em silêncio os colegas, a interessar-se por aquelas conversas (que noutros momentos, tinha certeza, o entediariam) com um prazer todo particular.
Mais tarde, lembrando-se daquele momento, sentiu que nunca o universo lhe havia parecido tão harmonioso, nem nunca mais, como naquele instante, realizara melhor a significação da verdadeira fraternidade…
Mas o toque do sino se fez ouvir e os poucos seminaristas que se encontravam no pátio entraram em forma para o refeitório. “Padre” Angelo não apareceu. a fila seguiu em desordem e falatórios.
Eram duas e meia da tarde. A chegada de seminaristas não cessava. Azáfama, papéis pelo chão, barulho, objetos para se transportarem encostados nos cantos, um ar de desorganização em toda a casa…
Quando entraram no refeitório, Cesário olhou para a cerca viva, ao lado, de galhos crescidos a invadirem as janelas, aquele ficus que havia sido esquecido durante dois meses, mas que dali a dias estaria de novo podado, como o vira durante o ano anterior e, voltando-se para o colega que entrava exclamou como que sem propósito e numa ingênua surpresa:
– Olha esse ficus!
– Que é que tem?
– Nada! está crescido… Lembra-me as férias… Podado e certinho parece o ano letivo… Você não tem essa impressão?
O outro abanou a cabeça e sorriu. Aquele Cesário!
À noite, na capela, as palavras de saudação de Monsenhor reitor continuaram este trabalho, que a confissão completaria.
Rezou-se o terço e, antes da bênção solene do Santíssimo, ele se dirigiu aos seminaristas.
Monsenhor Lourenço era uma dessas pessoas, acima de tudo, simples. Simples no trajar (era raro vê-lo com as insígnias de Monsenhor), simples nos gestos e palavras, a sua maneira de ser desconcertava ao primeiro contato: pequeno, magro, sem cerimônia e paternal com todos, indistintamente. Os seminaristas queriam-lhe um bem enorme. Entre o clero – comentava-se – não era muito bem visto. Poucos compreendiam como o arcebispo confiava a direção do educandário mais importante da arquidiocese àquele homenzinho sem físico, que não se salientava pela cultura, nem por outro qualquer dom de êxito social, além de sua imensa bondade.
Era péssimo orador; quando tinha que se dirigir à comunidade, emprestava um ar de conversação ao sermão e ia dando largas ao sentimento sem se importar com os efeitos. Não raro passava de uma ideia geral para um fato particular e vice-versa, sem a menor transição lógica. Mas como os seminaristas o ouviam com prazer!
Estava agora de pé, nos primeiros degraus do altar, voltado para a comunidade.
“Meus queridos seminaristas!
Eis-vos mais uma vez de volta ao Seminário, após um breve descanso que Nosso Senhor vos concede! Antes de tudo, que todos vós, e cada um em particular, sejais objeto das predileções da Graça, durante o novo ano de trabalhos que ides começar.
Esperais por certo uma palavra de vosso Padre reitor. Mas que vos poderá dizer ele, nesta circunstância, senão essa coisa bem simples, que sempre vos repetiu: confiai nele, que antes de ser o vosso superior, se esforça por ser o vosso amigo… O meu coração de sacerdote (Cesário reparava Monsenhor levar a mão ao peito, num movimento lento) que não ignora o quanto é árdua e difícil a vida em comum, quer lembrar-vos neste momento que está sempre ao vosso lado. Não desanimeis, pois! Oh, como é bela a vida religiosa, quando se sabe tirar proveito dela! Não é o Seminário, na intenção de nossa Santa Madre Igreja, um como Cenáculo, onde agrupados e silenciosos, como outrora os apóstolos, esperam os futuros levitas do Senhor as transformações que o Paráclito há de operar em suas almas? Para aí se retirou ele, tocado pela Graça, e assim segregado do mundo, ora se entrega à oração, ora ao estudo, para um dia, afinal, galgar os degraus do altar e oferecer a Deus pelos homens, seus irmãos, o sacrifício incruento do Calvário.
Ah, meus queridos seminaristas, se meditardes bem na grandeza da vossa vocação, só achareis motivos de viver alegres e contentes no Seminário! Todos os santos, aliás, nos dão essa lição de alegria em Nosso Senhor Jesus Cristo. E seguir o exemplo dos santos – eis a suprema regra de toda a nossa conduta de sacerdotes ou futuros sacerdotes do Senhor! Não nos deixemos nunca abater pelo sofrimento; as tribulações que nos assaltam – jamais perder de vista este sentimento! – entram no plano da Providência Divina, que tudo dispõe, tudo faz para bem de nossas almas. Tudo o que acontece, por alguma razão acontece. Nada é gratuito, a Sabedoria de Deus é infinita.
Só o pecado é triste, meus queridos seminaristas! Fujamos do pecado como quem foge do pior dos males. Lembremo-nos de que nossos membros são o templo vivo do Espírito Santo e não profanemos a sua morada. Não se pode servir ao mesmo tempo a dois senhores – e vós já escolhestes a Nosso Senhor Jesus Cristo! Cumpre pois que a vossa dádiva seja total e generosa para que um dia ela se torne fecunda em obras vivas. Por conseguinte, aproveitai estes anos de Seminário – estes anos de mocidade e estudo, que um dia recordareis com saudade –aproveitai-os com vivo fervor espiritual. Não vos contenteis nunca com o meio termo, quando se tratar do aproveitamento de vossas almas ou do enriquecimento de vossas inteligências.
Fugir sempre e sempre, em todos os aspectos da vida, a essa terrível pasmaceira do mais-ou-menos, que é o mal de muita gente medíocre.
Tais criaturas parece que não aspiram o alto e, em matéria de vida espiritual, só evitam pecados graves. É a raça terrível, filha da preguiça, embotada numa atmosfera de egoísmo moral… Mas os desgraçados medíocres não são os verdadeiros filhos da Igreja. Oh, não! A Igreja só é uma escola de fracos para aqueles que a conhecem de oitiva. A Igreja é uma escola de sacrifícios, de abdicação heroica do nosso egoísmo, uma crucificação com Cristo, como diz São Paulo.
É por isso, meus queridos seminaristas, que nós precisamos ser homens de muita vida espiritual. As palavras de nada valem, só o exemplo convence! Só quem se venceu a si próprio poderá vencer o mundo! Mais do que em nada, no Apostolado a que vós quereis dedicar – apostolado de combate ao espírito burguês – é preciso muito espírito de fé e de abnegação completa de vós próprios.
Como nos aconselha a Imitação: in omnibus rebus respice finem. Sim, em todas as coisas tenhamos sempre em mira o fim a que nos propomos. Aqui, caberia voltar as vistas (Monsenhor juntou as mãos fixando o olhar na imagem de Nossa Senhora! Não precisamos nós de um auxílio poderoso que nos leva até Deus? Que auxílio mais seguro do que Aquela que o próprio Cristo, na sua onisciência, nos deu no Calvário como nossa mãe?
Meus queridos seminaristas, abandonemo-nos em suas mãos puríssimas que ela nos guiará até Deus – termo de toda a vida espiritual. Como consequência lógica, virá o resto, começando pela prática das virtudes mais excelentes em que se sobressai Maria. Ela nos fará santos escondidos e anônimos para que de nós o mundo julgue o que não somos e assim não nos orgulhemos do pouco que em verdade, possamos ser… Ad Jesum per Mariam – eis a nossa santa divisa!
Porque assim como uma vez foi mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, ela o é do sacerdote, pois o mistério do sacerdócio é o de uma Incarnação. A graça sacerdotal desce sobre o homem e basta a total entrega de seu coração para que o transfigure. O sacerdócio cristão! Pensar que o homem, miserável e indigno, se transforma realmente num outro Cristo! Maravilha das maravilhas, a obra das obras de Deus!
Porque vede como, na consagração da hóstia e do vinho, a personalidade do sacerdócio desaparece inteiramente. Ou melhor, muda-se na do Verbo feito homem. Hoc est enim corpus meum… não corpus meum do Padre Fulano ou Sicrano, mas de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Meus queridos seminaristas, amai acima de tudo a vossa vocação. Amai-a e estudai-a! Porque seja este quem for aqui na terra, na verdade será tanto, quanto for os olhos de Deus.
Deus videt cor, homo autem faciem… Sim, o homem lê o envelope, mas a carta… só Deus”
Monsenhor fez uma pequena pausa, sorrindo. Um leve murmúrio de riso passou pela comunidade.
Continuou:
“E o que importa é a carta, meus queridos seminaristas! Que estas breves palavras, dirigidas pelo vosso reitor neste começo de ano, fiquem em vossos corações servindo de incentivo nas horas difíceis… Deus vos abençoe. Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo, amém!”
Todos se levantaram.
Monsenhor genuflectiu gravemente diante do tabernáculo, dirigindo-se à sacristia. Seguiram-no alguns seminaristas que iam acolitar a benção.
Cesário passou a mão nos olhos. Estavam úmidos.
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